quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Levantar a mão

Houve tempo em que minha maior preocupação diária, depois de acordar, era desvencilhar-me imediatamente do pijama, tomar uma chuveirada, vestir-me e sair logo, para ir encostar a barriga no primeiro balcão. Nunca fui comerciante, mas nessa época poderia ter sido - e dos bons. Era uma figura mais presente nos bares que os próprios donos. Meu amor a esses estabelecimentos era comovente. Chegava muito cedo e, quando saía, geralmente de madrugada, quase sempre era sob protesto. Às vezes, precisavam pôr-me para fora.
   Duas instituições impediam que eu me entregasse ao copo em período integral: o trabalho e a família. O primeiro me roubava, de segunda a sábado, pelo menos cinco irrecuperáveis horas por dia. A segunda - mulher e, na época, dois filhos - submetia-me à sua tirania especialmente nos fins de semana: eu ansiava por me enfiar em  uma bodega qualquer, para emborcar uns bons conhaques, e acabava indo parar em uma matinê de Tom e Jerry, em um teatrinho infantil ou em um cirquinho de periferia, onde minhas mãos, atacadas de inexplicável tremor nessa época, emborcavam não os cálices almejados, mas os algodões-doces, as pipocas e os refrigerantes que meus filhos me mandavam segurar, enquanto aplaudiam as peripécias da tela, as aventuras do palco ou as eletrizantes atrações do picadeiro.
   Esses contratempos me exasperavam, mas não me desviavam de minha vocação. Nem podiam. Eu era um grande copo, possivelmente o maior de todos, e nada ia me tirar esse orgulho. Nem a família, nem o trabalho, nem o tremor nas mãos, nem as vacilações de memória que eu começava a notar. Não era nada grave. Simplesmente me acontecia, algumas vezes, acordar e não lembrar nem como tinha chegado nem como havia subido a escada até o meu quarto. Nessas ocasiões, minha mulher me dizia que eu viera carregado por vizinhos ou por motoristas de táxi. Naturalmente, eu não acreditava nela, nem dava atenção às suas censuras. Vestia-me depressa e corria para o bar. Lá me respeitavam.
   Não perdi a confiança no meu taco nem quando ratos, cobras e morcegos passaram a invadir minha casa e meu sono. Tinha um remédio infalível: aumentar a dose. Numa das noites em que eu reforçava minhas defesas para enfrentar os pesadelos, saí do meu rumo, fui arrastado pela ressaca para os lados da praça João Mendes e, quando vi, estava, não sei como, na porta de - nada mais, nada menos - uma liga antialcoólica. O que me empurrou para dentro é uma questão que passo ao leitor. No dia, atribuí o impulso à curiosidade: ia conhecer meus opostos.
   A reunião já havia começado. Umas cinquenta pessoas acompanhavam o relato de um senhor que, pelo aspecto, eu apostaria jamais ter tomado nada mais forte que um Biotônico Fontoura ou uma groselha. No entanto, ele nos garantia que, com aquela cara de santo, tinha sido capaz, antes de entrar na associação, de espancar a mulher dia sim dia sim, durante anos, sem nunca admitir que o fazia, porque o álcool transformava certos momentos de sua vida num buraco negro, inacessível à memória. Depois dele, outros convertidos falaram. E eram histórias tristes, de gente que estourava o cofrinho dos filhos, torrava a herança da mãe e desviava o dinheiro da firma para manter a barriga encostada no balcão. Ouvi uma, ouvi outra, ouvi todas e descobri que não estava entre opostos, mas entre semelhantes. Como eu, eles haviam julgado ser campeões e não passaram de perdedores até o dia em que, finalmente, reconheceram isso.
   Quando o coordenador da reunião perguntou se havia ali mais alguém escravizado pelo álcool e disposto a se libertar, cinco homens de rosto sofrido levantaram timidamente a mão. Eu era um deles e não me arrependo do gesto, passados vinte anos. Espero que os outros quatro também não.

(Crônica publicada em 22/8/89 no Estadão e incluída no livro Antes de Madonna, da Editora Olho d'Água.)

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