sexta-feira, 26 de abril de 2013
Se tivesse...
... vergonha na cara, um pouquinho que fosse, não estaria agora teclando estas coisas aqui. Teria ficado no sofá, com a cortina fechada, escondido como deve ficar um homem como ele, tão desfibrado. Se tivesse vergonha na cara, teria resistido mais um dia, pelo menos, e não estaria de novo entregue a este exercício de se expor como uma donzela de convento, suspirando estrofezinhas de amor. Se tivesse vergonha na cara, um pingo que fosse, teria sumido da rua, do bairro, da cidade, do país, do mundo. Se tivesse vergonha na cara, o mar já o teria engolido, e ele estaria livre deste suplício de bater no peito diariamente e proclamar-se culpado, culpado, culpado. Há tanto tempo já faz isso que quase nem sabe mais, exatamente, do que se acusa. Espera que o sentenciem, afinal, ou que lhe digam que foi um engano, ou, então, que seu crime prescreveu. Deve ter feito algo terrível, só pode ser. Olha para as mãos, para o rosto, e gostaria de ver neles a marca mais infamante que possa ter estado nas mãos e no rosto de um homem, desde Caim. O seu tormento é não lhe dizerem o que ele fez, afinal. Morrerá condenado pelo silêncio, esse silêncio que o assombra nas madrugadas às quais Deus, sem piedade, o submete. Espera o dedo no rosto, espera o veredicto, espera a zombaria satisfeita dos que tudo julgam no mundo, não para defender-se, porque não tem mais forças para isso, mas para gozar o mérito que há de caber a cada pecador.
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