terça-feira, 6 de agosto de 2013

A Morte não sabe português

Na presença de um gramático, mantenha a boca fechada - tudo que você disser poderá seu usado contra você. O gramático é aquele sujeito com vocação de policial que olha atravessado para qualquer um, mesmo quando o infeliz só acabou de dizer um bom-dia. Para um gramático, numa conversa não há interlocutores, há suspeitos. Quem ainda não feriu o sacrossanto vernáculo, ferirá. Por isso, esteja numa festa ou numa simples reunião de trabalho, ele fica atento, pronto para pegar o transgressor pela palavra e acusá-lo ali, com testemunhas, daqueles crimes horrendos: barbarismo, cacofonia, solecismo, dupla regência.
   Esse parágrafo não está entre aspas, mas deveria. Ele representa, expurgado de palavrões e similares, a opinião do meu amigo Uírson de Azevedo sobre os defensores exacerbados da última flor do Lácio. Quem o ouve falar com tanta indignação pode pensar que ele conhece todos os gramáticos. Ele só conhece um. Esse gramático que fez Uírson odiar todos os outros foi seu professor na sexta série. E o ressentimento nasceu no primeiro dia de aula, logo na chamada. Talvez para quebrar o gelo, o mestre, ao dizer o nome do meu amigo, fez a brincadeira fatal:
   - Uírson de Azevedo ou Wilson of Azivido?
   Com as gargalhadas da classe, Uírson, que abominava o nome, impingido a ele pela pronúncia interiorana do pai e pelo analfabetismo ou má vontade do escrevente do cartório de registros, passou a execrar também o professor e sua gramática. Se o homem lhe perguntava o que era adjetivo, ele respondia com a definição de advérbio; se indagava o que era vós, ele dizia que era pronome pejorativo. Suas notas, que nas outras disciplinas eram excelentes, em português andavam como as contas do Brasil: no vermelho-vergonha. Mas o que obrigou a família a transferir Uírson de escola foi um trabalho de redação para a nota do primeiro semestre. Com a ajuda de um primo mais velho, metido a escritor, ele preparou e entregou isto:
   "Um desses gramáticos que vivem atormentando as pessoas com sua caturrice precisou conceder uma trégua à burrice pública para ser internado em um hospital. Atacado de hipérbato, teve o quadro clínico agravado por uma pertinaz anástrofe e a doença acabou degenerando em anacoluto. Tratado à base de metaplasmos, o aristarco melhorou um pouco, embora o médico advertisse que era preciso manter sob controle os polissíndetos. Porém, logo que teve alta, o entojado abandonou o tratamento e, aconselhado por um curandeiro, passou a recorrer a doses maciças de elixir de parequema, que tomava misturado com folhas de crase e extrato de conjunções subordinativas. Toda vez que engolia a beberagem, era sacudido por ditongos crescentes e os parentes que tentavam acudi-lo eram repelidos por figuras de retórica e ferozes acessos de verborragia. Reinternado, chegou moribundo ao hospital, mas nem assim deixava passar impropriedades gramaticais do médico e das enfermeiras. E, quando entrou em agonia, já sem reconhecer ninguém, havia momentos em que se agitava e se punha a gritar e a exigir, de alguém que só ele via, mais respeito ao idioma. A mulher, que vivia com ele fazia trinta anos, concluiu: 'Ele está discutindo colocação pronominal com a Morte.'"
   Uírson teve de mudar de escola, mas não mudou de opinião. Antigramático militante desde essa época, ele me diz que seu sonho é engajar Luis Fernando Verissimo no movimento. Pergunto por quê. Ele explica:
   - Não foi ele quem disse que a gramática precisa apanhar todo dia, para aprender quem é que manda?

(Crônica publicada no Estadão em 18/7/89 e incluída no livro Antes de Madonna, publicado pela Editora Olho D'Água.)

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