domingo, 30 de setembro de 2012

Terço

Nessas mãos
que desde a puberdade
frutos apanharam
até a saciedade

Nesses dedos
que desteceram teias
e úmidos desvelaram
mornos segredos

Nessas  mãos
entre esses dedos
um dia colocarão
cinquenta e cinco contas

E nem nelas nem neles
lembranças restarão
da seda dos frutos apanhados
dos fios dos segredos desvendados.

Hebe

Teu nome dizia o que eras:
Hebe, deusa da alegria,
Primeiro clarão do dia,
Essência das primaveras.

Por quê?

Amor, que matas e feres,
Por que me tens açoitado,
Por que me tens lacerado?
Por que matar-me não queres?

Maturação

Se um poema é o que você quer,
De nada adianta chamá-lo,
De nada adianta forçá-lo.
Ele virá quando vier.

Sobre a felicidade

Parecer feliz é fácil. Basta conhecer a arte da dissimulação. Ser feliz é saber exercer essa arte.

sábado, 29 de setembro de 2012

Lixo

Faliram as flores
falharam os frutos
gorou tudo
que prometeram as estações

Ficaram as folhas
traçando no chão
a parca memória
a insípida história
que o vento folheará
sem lhe prestar atenção
e com zelo arrastará
para o mais próximo bueiro
ou para o primeiro caminhão.

The voice

Ter como norte a tua voz.
Ouvi-la e segui-la, tal
Como o verso ao ritmo, qual
O rio buscando a foz.

Um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen

"RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA

Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdício de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino."

(Do livro "Poemas escolhidos", publicado pela Companhia das Letras, seleção de Vilma Arêas.)

Dois versos de Sérgio Resende de Barros

Li muita poesia, tudo que pude, li todos os grandes que me vieram às mãos mas, volta e meia, não é de Shakespeare nem de Wislawa Szymborska que lembro, nem de Borges, nem de Drummond. Dois versos, de Sérgio Resende de Barros, que conheci na Biblioteca Mário de Andrade nos idos de 1960, me encantam ainda. Não sei se Sérgio continuou a escrever (tenho certa lembrança de alguém me haver dito que ele seguiu carreira na magistratura). Mas poeta há de ser sempre quem criou dois versos como os dele - que reproduzo aqui, com aquela sadia inveja de não serem meus e a lástima de não me recordar do poema inteiro:

"As árvores mudas cantam o silêncio,
As luzes apagadas acendem a escuridão."

Te cuida

Te cuida garota
ele recomendou
espera aqui
que eu volto logo
com muito dinheiro
um carro maneiro
e a gente vai pra festa

Ela esperou
e se cuidou
mas ele não
e quando voltou
como tinha prometido
vinha já com status de bandido
duas balas na testa
e o carro em que chegou
dez horas além do horário
era preto e funerário
imponente até
mas ninguém gostaria
e nem pensaria
em ir com ele a uma festa.

Menino diante de loja

Como se fosse um menino
Com o qual a mãe se zangou
E sem piedade nem tino
À própria sorte deixou,

Também do amor que tivemos
E foi por nós decantado
Um dia nos desfizemos
Como de um móvel usado.

Como um menino o deixamos
Diante de uma loja linda
E dele nos afastamos.

E até hoje me dói quando
Penso e o imagino ainda
Diante da loja, esperando.

Literatura panfletária

Embora pretenda ser vibrante e conclamatória, não há nada mais pobre e monótono que a literatura panfletária, aquela que o leitor reconhece imediatamente nas exclamações (visíveis ou não) no fim de cada frase. Uma "literatura" para ser apregoada por alto-falantes ou megafones e derrubar passarinhos das árvores.

Por observar e saber

Por ciência e por natureza,
Por observar e saber,
A nossa única certeza
É a de que vamos morrer.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Oferta

Se acaso eu, morto insepulto,
Amor a alguém ofertar,
Quem há de a oferta julgar
A não ser como um insulto?

Certeza

Tenho hoje a triste certeza
De que o amor, se não doer,
Não definhar, não morrer,
Valor não tem, nem beleza.

Um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen

"AUSÊNCIA

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua."

(Do livro "Poemas escolhidos", seleção dos poemas feita por Vilma Arêas, edição da Companhia das Letras.)

Como?

Falar de amor como, se as
Imagens já se gastaram,
Morreram as juras e as
Palavras já se cansaram?

Final

Tu podes escolher esta,
Essa ou qualquer outra estrada.
No final da caminhada,
Morrer é sempre o que resta.

O dia

O dia chegará
eu sei
em que você me dirá
olha pra mim chega
já deu parei

Quando esse dia chegar
esse dia será eu sei
um dia que doerá
como doem aqueles dias
que cismam de doer
como se fossem
todos os dias
num dia só.

Bom dia

Por não te haverem retratado como és e como mereces, deixei as palavras ao relento esta madrugada. Abri a janela agora, para tirá-las do castigo. Pediram-me nova chance. Disse-lhes que se alguém pode dar-lhes perdão és tu. Mando-as, então, e espero teu julgamento. Não confies excessivamente nelas. São ardilosas e podem tentar convencer-te, como tentaram comigo, de que estão assim molhadas não pelo sereno e pelo orvalho, mas pelas lágrimas que, por não saberem fazer justiça a ti e aos teus encantos, derramaram.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Nós, nosso algoz

Sabendo, como sabemos,
Que somos nós nosso algoz,
A Deus e aos santos oremos
Para poupar-nos de nós.

Monteiro Lobato

O "politicamente incorreto" retroativo está fazendo mais uma vítima. Monteiro Lobato encontra-se em ótima companhia: Machado de Assis também esteve na lista.

A causa

Sempre estranho quando leio que está sendo apurada a causa da morte de alguém. A causa da morte é sempre a vida.

Antenas

A modernidade vai chegando aos pássaros. Pela janela, vejo que um número cada vez maior deles desdenha as árvores e passa para a categoria dos antenados.

Folhas

Chega um momento em que a nossa esperança não se atreve mais a pensar em flores e em frutos. Ela está velha, como nós, e se alguma aspiração tem é a de que para nós e para ela seja brando o vento e nos disperse devagar, folhas que somos, para desaparecermos sem a indignidade de nos recolherem e nos jogarem dentro de um caminhão.

Verbo e advérbio

Por muito tempo esqueceram-se do amor e, no dia em que o procuraram, descobriram que ele havia aproveitado a carona de um verbo e de um advérbio e sumira definitivamente.

Confiança

Pegar uma rosa
e colocá-la num poema
pode não ser poesia
mas se eu fosse escrever um
colocaria uma
bem na primeira linha
e nela confiaria.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

144

Para louvar-te, formosa,
Eu quando flores te enviar
Te enviarei (podes contar)
Não uma dúzia - uma grosa.

Infância

Muita coisa minha
ficou na infância

Vim para a vida adulta
sem a minha calça curta
sem meus álbuns de figurinhas
sem a bola de capotão
sem os cachorros que me morreram
sem os gatos que me mataram
por maldade ou diversão

Muita coisa minha
na infância se perdeu

Às vezes chego a pensar
se eu sou mesmo eu
ou se por acaso eu não sou
aquele menino com quem fui nadar
e que o rio afogou.

Meus gatos

Alguém me garantiu que eram os meus gatos, mas foi muito difícil reconhecê-los naquelas duas bolotas de pelos encharcadas de sangue, atiradas num terreno como se fossem dois sacos de lixo. Eu tinha dez anos, mas não precisaria de mais nenhuma experiência para saber a quanto pode chegar a maldade humana.

Menino

Desceram a escada. Na porta do prédio, a mulher de boca escarlate e cabelos de fogo disse, condescendente: "Não esquenta com isso. Você é muito menino, ainda. Acontece até com os homens." O garoto teve a esperança de que ela lhe devolvesse o dinheiro que ele por duas semanas juntara ajudando a entregar remédios para uma farmácia, mas ela, depois de lhe dar um beijinho no rosto, andou até a esquina. Quando ela parou para conversar com um homem, o garoto sentiu amargamente que talvez naquele instante, se estivesse no quarto com ela, a coisa acontecesse.

Bucólica

Para que não a descubram, a traça só trabalha à noite, quando a sala está escura. Não tem pressa, nem é voraz. Oculta na folha de uma das árvores da pintura bucólica, ela fará seu paciente trabalho até que num dia de janelas abertas e pleno sol alguém, provavelmente o autor da pintura, notará a falta de um fruto na macieira.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O dia seguinte

Que bom o amor não ter parado na recepção do motel de luzes bizarras, não ter mostrado a identidade, não ter aberto o sorriso de falsa segurança. Que bom o amor não haver conhecido o torpe requinte da cama redonda, dos vídeos incitadores, das duchas propiciatórias. Que bom o amor ter sido poupado da inglória saída, dos olhos que não mais se procuram, das mútuas e mentirosas avaliações de desempenho, das congratulações (não, você, sim, é que foi bárbaro), dos beijinhos de despedida e da promessa de que haverá outras vezes, sim, ah, muitas, claro, claro. Que bom é alguém poder continuar tolo, ultrapassado, risível, bobão, e olhar-se no espelho de manhã sem ver no pescoço o chupão que a moderna cortesia sexual manda deixar, sem sentir as costas unhadas e outras das tantas marcas que dizem ser agora indispensáveis ao amor. Que bom é alguém poder tomar um café, em vez do resto do uísque da garrafa, e que bom escancarar a janela sem o receio de que o sol veja no quarto dois corpos cansados e desiludidos, dois rostos tristes que no entanto teimam em sorrir.

Garotão

Ele era feio
e desengonçado

Um dia
por zombaria
uma garota
a mais linda
lhe disse que ele
era simpático
e bem-apessoado

Ele foi para casa
olhou-se no espelho
pendurado num prego
e acreditou que havia sentido
no que ela dissera

Ele era feio
desengonçado
tolo e cego.

Catalogação

Deus criou os homens e incumbiu Shakespeare de lhes definir o caráter.

Kama Sutra - LVIII

Tomavam um cafezinho e conversavam. Ele olhava para a blusa da mulher e imaginava como faria. Era um plano juvenil, infantil até, mas ele o havia desenvolvido exaustivamente na véspera e não lhe ocorria outro. Estenderia o braço por cima da mesinha da lanchonete, apontaria o dedo para a blusa e, enquanto a mulher o fitasse intrigada, avançaria a mão rapidamente até a blusa e, fingindo desequilibrar-se se agarraria ao tecido, o suficiente para sentir por um momento a carne macia sob o sutiã. Depois de desculpar-se, diria, para se justificar, uma frase que ainda não tinha definido. Seria algo como "era uma aranha" ou "era um besouro". Enquanto se decidia pela aranha ou pelo besouro, continuava admirando o movimento da blusa, inflando-se e desinflando-se, inflando-se e desinflando-se. Era mesmo um plano infantil, ele reconhecia, lamentando não ter, em nome da verossimilhança, levado ou a aranha ou o besouro.

No amor

No amor, mais vale o passado.
É bom o estarmos colhendo,
É bom o estarmos vivendo,
Melhor é havê-lo sonhado.

Trottoir

Literatura, putinha
Barata, aceitas a grana
De qualquer tipo sacana,
Porém recusas a minha.

Farinha de estrelas

O guarda-noturno, em sua ronda, viu numa rua um brilho que o deixou por uns instantes cego para todas as outras coisas. Deu o alarme e chamou a polícia para investigar. Quando ela chegou, nas calçadas havia também um brilho que fervilhava, com um ruído de papel de seda rasgado. Embora fosse já meia-noite, muitos moradores saíram de casa para ver o que estava acontecendo. O poeta do bairro olhou para o céu, depois para o chão, e disse que aquilo era farinha de estrelas, mas prevaleceu a opinião geral e pouco depois desceram de um caminhão homens com luvas e protetores oculares, disseram que aquilo era material radioativo e, aplaudidos, levaram embora dois sacos repletos daquela poeira de prata. O poeta, furtivamente, recolheu um pouco daquele pó e o colocou no bolso. Em casa, pegou a caixa de fósforos onde desde quando era menino guardava vaga-lumes e pôs dentro também o pó. Toda noite, agora, quando o bairro dorme, ele apaga as luzes, abre a caixa e tenta decidir se brilham mais os vaga-lumes ou a farinha de estrelas.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Sofá

Agora veio o castigo
Que há muito eu já merecia.
Durmo somente comigo
E me acho má companhia.

Um poema de Mário Cesariny

"TOCATA

Quando tu tocas débussy
chove extraordinariamente
o sol as casas levemente doira
mas na saleta está-se bem
fazes sempre sempre assim!

por mim
sinto um duende benigno que sorri
não bem de ti!
nada de débussy!
mas do igual da hora
de sempre chover
de estar sempre frio lá fora
quando tu tocas débussy."

(Do livro "Manual de prestidigitação", publicado pela Assírio & Alvim, de Lisboa.)





O vaso

Outrora aqui havia
uma mesa
um vaso
onde no ocaso
flores desfaleciam

A casa foi reformada
não é mais sala aqui
e mesa também não há
mas o sol ainda vem perguntar
onde estão as flores
às quais ele dava cores
e que os olhos só fechavam
quando ele lhes desejava boa noite
e delas se despedia.

Kama Sutra - LVII

A mão dela era pequena e ele, ao colocá-la entre as suas, sentiu-se como alguém que estivesse protegendo um passarinho. Aos poucos, entretanto, começou a vir dos dedos dela, da palma, uma mornidão que foi se tornando tão aguda que ele teve o ímpeto de ir apertando devagar o passarinho, como se fosse não mais um hóspede seu, mas um prisioneiro.

Kama Sutra - LVI

Ele encostou a orelha na orelha dela e começaram os dois a ouvir o mar que havia em cada concha. A princípio foi um rumorejar de ondas calmas, porém aos poucos ele e ela passaram a ouvir gritos de piratas que clamavam pela abordagem, pelo embate de corpos no convés e pela frenética conquista.

Kama Sutra - LV

Com a desculpa de afastar deles um cisco, pôs-se a soprar os cabelos dela e eles repentinamente começaram a levantar ondas nas quais seus lábios venturosamente se afogaram.

História

Não tens história

Um risco
um rabisco na areia
dão conta
de toda tua trajetória

Um risco
um rabisco
antes que venha o vento
ou a maré cheia.

O poste

O poste começou a crescer. Como crescia um milímetro por dia, passou-se um mês até que percebessem. O caso foi levado à administração regional e depois à prefeitura. Enquanto se tentava encontrar uma lei que pudesse ter previsto a situação, o poste continuou crescendo. Nasceram-lhe também galhos e nos galhos despontaram flores. Os moradores afeiçoaram-se a ele e, quando uma autoridade alertou que dali a pouco ele poderia começar a derrubar helicópteros, contratou-se um carrasco que numa madrugada fria, sem testemunhas além dos funcionários que o ajudavam, conseguiu desenraizar o poste e transportá-lo para o lixo municipal. De manhã, havia só o buraco fundo e umas flores tristes que o gari recolheu e enfiou no seu carrinho.

O teste dos olhos

Confesso que desde a adolescência, e antes até, fui presunçoso. Quando rabisquei meus primeiros parágrafos, eu queria, com eles, nada menos que reproduzir a beleza. Até hoje não sei definir a beleza e, se soubesse, ela já me interessaria menos. Aqueles a quem se dirige uma obra de arte podem utilizar a racionalidade. Mas para aqueles que a realizam - ou tentam realizá-la, como é o meu caso - convém seguir o sentimento, deixar que ele nos ocupe inteiramente. Acredito - e sei que essa é uma concepção juvenil e quase risível - que a arte, para ser bela, há de ser concebida com um fervor místico. Se os olhos permanecerem secos durante o processo de criação, melhor será não levá-lo adiante.

domingo, 23 de setembro de 2012

O bilhete

No dia em que te decidires, tudo deverá estar pronto, até o bilhete. Que a tentação de na última hora pôr ou tirar uma vírgula, de acrescentar ou suprimir um adjetivo não seja um pretexto para recuares. Quem há de fazer reparos ao estilo de um morto?

Reta final

Sempre que na vida penso,
Me alegra estar já assim
Distante já do começo,
Tão próximo já do fim.

De cores

Para de afeto matar-me
Vos bastaria quererdes
Fitar-me com os olhos verdes,
Com os lábios rubros beijar-me.

A traça

Havia talvez aqui
na página vinte e um
um homem chamado Lima
um homem chamado João
e um homem chamado Raimundo

Um rimava com rima
outro rimava com pão
 o outro rimava com mundo
e todos amavam Maria
como naquele poema de Drummond

Porém a traça arredia
a qualquer tipo de poesia
matou Raimundo Lima João Maria
e matou também Glória
que nem estava na história.

Kama Sutra - LIV

Depois de três horas de tortura, o Amor perguntou de novo: "Confessa! Quem é o teu senhor?" Minhas costas sangravam deliciosamente e eu me curvei para beijar a mão que segurava o chicote.

Estoque

Tudo que a tristeza dá
Terei sempre ao meu dispor.
O Amor é meu provedor
E nada me faltará.

sábado, 22 de setembro de 2012

Bom dia

Pudesse eu dizer bom dia como se estivesse com cinco anos, tivesse acabado de conhecer a esperança e minha  única desilusão fosse a de haverem matado meu gato.

Formosa

Hoje estás mesmo formosa.
O bem-te-vi, mal te viu,
Parou de beijar a rosa
E foi te saudar: ei, psiu.

Vida

Você fazia
você fez

Você escrevia
você escreveu

O que você fez
já se desfez

Tudo que lhe aconteceria
já lhe aconteceu

Você vivia
você viveu.

Crime

Se a desilusão fosse um crime de que me acusassem, eu denunciaria a esperança como mandante.

Final de caminho

Os últimos passos são os melhores. Não temos mais pressa, sabemos que o sol é sempre o mesmo, conhecemos já todas as paisagens e nossos olhos cansados estão isentos de olhar. Nada nos atrai. Compreendemos agora que o único sentido de tudo é não haver nenhum sentido em nada e, livres da obrigação de saber para onde vão, nossos pés andam finalmente sem carregar o peso da esperança.

Se

Se eu tivesse cultivado rosas, todas já estariam mortas, mas eu não olharia com tanto desapontamento para minhas mãos, que rabiscando garatujas tentaram a impossível imortalidade.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Kama Sutra - LIII

Ele lhe dizia boa noite, só, com a sobriedade exigida pela boa educação. Olhava-a com olhos de cordeiro, sufocando o lobo que dentro dele queria urrar, cravar as garras, morder. Dizia boa noite e esperava que no sonho dela, ou no dele, caísse a máscara e finamente ele se mostrasse como era, um animal trancado numa jaula, esperando aquele momento único de distração da domadora, em que se atiraria sobre ela e em que talvez descobrisse que todo o tempo, enquanto ela lhe sorria sem intenção, no fundo estava sempre imaginando quando, afinal, ele ignoraria o chicote, arreganharia os dentes e  eriçaria todos os pelos dela.

São João da Boa Vista

Um livro jamais será um livro se não tiver ao menos um leitor. O livro é um objeto social, e feliz é o escritor que, além de ser lido, tem a ventura de poder conversar com seus leitores. Tive ontem essa felicidade, imensa, ao ser recebido pelos meus jovens leitores do Colégio Dom Bosco, em São João da Boa Vista. Manhã inesquecível, tarde memorável, dia perfeito. Um abraço aos alunos, aos professores, à direção do colégio.

Contradição

É quando a carne se mostra mais ousada e indomável que costumam chamá-la de fraca.

A mão

Tua memória sempre consegue recompor a tarde longínqua, o parque, o sol dormindo sobre o gramado, a tua mão apalpando a carne sob a blusa. Às vezes tu olhas para a mão e te perguntas por que está fria agora, tão fria que tua outra mão, ao apalpá-la, recua, como se tivesse tocado a mão de um defunto.

Um haicai

No meio da mata,
As palmas batendo palmas
Ao vento acrobata.

Teu homem

Tu passas e a cada passo teu ecoa a voz da beleza. Miraculosamente eles abafam o ruído do trânsito e soam como notas musicais, enquanto vais, acompanhada pelos olhos de homens que, se conhecessem o teu, aquele nos braços de quem à noite estarás, não se importariam nem um pouco se ele estivesse tendo um ataque súbito enquanto vais atravessando a avenida seguida pelo sol e pelo vento que te beija o pescoço  e te diz galanteios antiquados.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Titio

O amor para ele acenou
Mas ele finge não ver.
Há muito tempo findou
Sua estação de colher.

Ele muda de calçada,
Mas outro convite vem
E com ele uma gargalhada:
"Você quer dar uma, bem?"

Enquanto vai se afastando,
Todas vão dele zombando.
Uma o chama de titio,

Outra de vovô. Distantes
Estão os tempos radiantes
Do sangue quente e do cio.

Jogos

Para atingir o prazer,
E para melhor gozá-lo,
O Amor finge às vezes ser
Não senhor, porém vassalo.

No lucro

Que bom seria ter sido
Um homem comum, qualquer
Um, ou mesmo uma mulher,
Que já tivessem morrido.

Sol nos olhos

A juventude dela explodiu no rosto do homem como se ele tivesse saído de um ambiente escuro para o fulgor do sol. Ele fechou os olhos, sentindo um alvoroço em todo o corpo, como se o tivesse redescoberto. Quando os abriu, a garota estava já longe. Ele viu ainda por um instante o ouro de seus cabelos brilhar na esquina. Depois, voltaram a flagelá-lo o frio de sua alma e a falta de generosidade da manhã.

Kama Sutra - LII

Beijam-se como se fosse a primeira vez, ou a última. Os lábios se procuram quase com raiva, como se entre eles houvesse uma antiga desavença. Os dentes entrechocam-se, as línguas se atacam, se punem, como dois animais de diferentes espécies. O homem e a mulher parecem estar determinados a engolir o ar, ela o dele, ele o dela. As mãos também se apertam, como se quisessem destroçar-se. Dura alguns minutos a batalha. Quando ela termina, as mãos se soltam, contrafeitas como se lhes tivesse faltado conquistar territórios, e nos lábios há um gosto de maçãs machucadas.

sábado, 15 de setembro de 2012

No início

Tudo é sempre bom no início

Ah, que ansiedade há
Antes do primeiro beijo,
Antes do primeiro abraço.

Por eles, o que não faremos?
Será preciso pedir? Pediremos.
Será preciso nos ajoelhar? Nos ajoelharemos.
Será necessário forçar? Forçaremos.

Mas depois do trigésimo primeiro beijo
e do sexagésimo quinto abraço
Começa a se sentir cansaço,
E onde está o ímpeto do início,
Onde aquele entusiasmo foi parar?

Tudo é sempre bom no início

Uma escalada matinal,
Sob um sol primaveril,
Com o farnel abarrotado
E cheio até a boca o cantil,
Quem haverá de recusar?

Mas quando o topo se atingiu
E abaixo se vê só o precipício,
Pergunta sempre aquele que subiu
Se para aquilo foi que subiram,
Se pensavam mesmo naquilo
Quando a escalada estava no início
E os primeiros passos iam se dar.

Boa noite

Boa noite. Que eu pudesse te dizer ao menos isso, como se o acaso nos tivesse juntado num lugar improvável pelo qual tu passasses por qualquer motivo absurdo e pelo qual eu, por qualquer motivo desatinado, também estivesse passando. Eu te diria boa noite, com a sensação de que nunca mais teria a oportunidade de te dizer, e tu, depois talvez de vacilar um pouco, me dirias também boa noite e seguirias teu rumo. Eu continuaria parado, gozando o som daquelas duas curtas palavras. Não me atreveria a te seguir. Ah, por que desde o início não nos dissemos só bom dia, boa tarde, boa noite? Por que as palavras nos traíram tanto? Por que nos magoamos tanto, por que nos ferimos, por que abrimos entre nós este vale que regamos com nossas lágrimas, nas quais nos afogamos? Que eu pudesse te dizer boa noite, só boa noite, e houvesse nessas palavras tudo que eu quis dizer e tão mal disse, e que, como se uma chuva tivesse me lavado, eu pudesse reaparecer diante dos teus olhos como talvez tenha te parecido ser na primeira manhã, ou que pudesses me desculpar por eu ter mudado tanto quanto dizes que eu mudei (e mais não dizes, eu sei, porque te impede a gentileza). Que eu pudesse dizer boa noite e imaginar que, com um sorriso talvez, me dissesses também boa noite.

Avião

A não sei quantos
mil pés de altura
a dor do amor dói menos

Quando ela aperta
sempre se pode esperar
que tenha chegado o dia
do piloto do copiloto
da aeromoça bonita
da aeromoça feiosa
da loira maravilhosa
que acaba de entrar no toalete
como se loiras maravilhosas
fizessem certas coisas
que se fazem em toaletes

A não sei quantos
mil pés de altura
sempre se pode imaginar
que sejam os minutos derradeiros
de todos nós passageiros
e que dois segundos
depois do primeiro grito
estaremos já despencando
e não haverá tempo
para o segundo grito
aquele com que nós
talvez implorássemos
piedade ó senhor
ou mais provavelmente invocássemos
o santo nome do nosso carrasco
do nosso doce tirano
do nosso único soberano
sua majestade o amor.

Bis

Amor, penso que já é hora
De tu me ressuscitares.
Devolve-me a vida agora,
Para outra vez a tirares.

Cornélio Procópio

Nesta segunda-feira, de manhã e à tarde, estarei conversando sobre literatura com professores e alunos do Colégio Dom Bosco, em Cornélio Procópio (PR). Na terça, também nos períodos matutino e vespertino, estarei em Londrina (PR), na Escola St. James. Para evitar problemas de conexões, embarco amanhã e, por ser um inepto no uso da informática, só voltarei a colocar textos aqui na quarta-feira. Espero que eles não façam falta aos leitores. A mim, certamente, fará falta o contato.

Nunca pensaste?

Nunca pensaste que talvez sejas como eu te vejo? Nunca pensaste que eu posso ter estado todo esse tempo certo sobre a tua grandeza? Nunca imaginaste que eu, que venho há tanto perseguindo a beleza ideal, possa ter recebido enfim a graça de encontrá-la? Quando me censuras por te exaltar como exalto, por te reverenciar como reverencio, jamais te ocorreu que menosprezas minha opinião e meu juízo ou os põe sob suspeita? Custa-te tanto aceitar que me cativaste com o que tens e não com aquilo que eu possa imaginar teres? Não serás capaz de dar crédito a tudo que há muito venho te dizendo? Podes continuar duvidando do que te venho repetindo com a alma e com o coração? Podes. Mas podes também pensar que talvez eu tenha te visto sempre como és. Não consigo conceber que não sintas em ti a grandeza e a beleza que desde o primeiro dia tenho visto e decantado. Tu sabes que as tens. Por que negá-las? Deixa que eu as louve e cante, com a minha melhor e mais sincera voz.

O que tu és

Que conforto é saber que jamais consegui nem conseguirei exprimir isto que mexe em mim quando penso em ti. Isto que não tem encadeamento nem lógica, isto que não é a beleza didaticamente ordenada, mas fragmentos dela, imagens que não são palavras porque, se fossem, alguém poderia cometer o despautério de dizer que apalpou uma estrela ou apanhou um cisne. O que sinto quando penso em ti não é o cisne nem a palavra que o nomeia, não é a estrela nem o que se pretende dizer quando se diz estrela. É o que tu és, é o que eu sinto que tu és, quando mexes assim comigo.

A cachorrinha

No pórtão ainda estão as marcas das patas, a madeira rasgada pela aflição e pela ansiedade. Por uma semana o cão ficou ali, tentando, tentando. Jamais alguém o viu dormir ou comer o que quer que fosse. Uma noite choveu e ele talvez tenha bebido água da sarjeta. Morreu hoje de manhã, mas ainda por algum tempo, pela força do hábito, pareceu ouvir-se o som de suas unhas na madeira. Por cinquenta reais um homem comprometeu-se a ir jogá-lo bem longe. O cão agora não está mais na calçada e o passeador pode levar a cachorrinha da casa ao parque. Ela sai, tão fútil, tão tolinha, tão adequada a esta manhã de sol escancarado na qual, três quarteirões abaixo, num terreno abandonado, três meninos encontraram um brinquedo diferente: fazer pontaria e mijar num cachorro morto.

A primeira floração

Além do muro
no terreno baldio
no escuro mais escuro
na chuva no frio
o amor enjeitado cresce
como um cachorro largado
como um menino vadio

Coitado dizem ao vê-lo
crescendo assim sem zelo
porém ninguém
estende a mão
a esse guri tuberculoso
sozinho no mundo
a esse cão sarnento
a esse leproso escorraçado
(hanseniano, segundo
a nova denominação)

Mas ele cresce
no frio no escuro
suas raízes furtivamente enterra
avança pelos intestinos da terra
e transpõe o muro
esperando o dia
em que lá dentro
acariciada pelo vento
se mostre ao sol
a primeira floração
de sua agonia
e de seu ressentimento.

As lâmpadas

Quando pensa nela, algo nele começa a afrouxar docemente, maciamente, e aos poucos tudo vai se enfraquecendo, mornamente assim, e se desligando, como se alguém estivesse apagando uma a uma as lâmpadas de um salão depois de um baile, até deixá-lo numa escuridão plena de alusões veladas e subentendidas.

Flores

Estão murchas as flores. Não quero vê-las. Abri a janela esta noite e no meu quarto entrou o adocicado cheiro da morte. Tão vivas elas eram, e eu não as mandei. Merecias mais, não eram dignas de ti. Esperei que ganhassem ainda o que de beleza lhes faltava para se igualarem à tua e veio, há uma semana, um vento morno, de pântano, que trouxe a peste. Como poderia enviá-las agora, se tua beleza floresce dia a dia e a delas ficou só na evanescente memória de duas ou três tardes?

Triunfo inglório

A morte nos seguia, e os vagalhões iam lamber o céu antes de se atirar sobre o nosso barco. Orientados pelos relâmpagos, os trovões nos atacavam com o fragor de mil canhões. Alguns de nós rezavam, outros amaldiçoavam Deus e - como efeito talvez das súplicas e das pragas - repentinamente se abriu sobre nós um azul límpido, como se tivéssemos acordado de um pesadelo. Éramos treze a bordo e isso foi há quarenta anos. Estamos todos vivos, ainda, os treze, mas, achacados hoje por incontinências urinárias, osteoporose e diabetes, gostaríamos de voltar para o barco e enfrentar, com outra sorte, a ira do céu e o rancor do mar.

Uma esperança

Se o amor tem uma esperança
ainda que pouca
ainda que mínima
quase nenhuma

ele enfrenta
as adversidades
as catástrofes
as calamidades

Se o amor não tem uma esperança
ainda que pouca
ainda que mínima
quase nenhuma
ele inventa uma.

Grito ainda

Grito às vezes ainda
chamo ainda por teu amor
mas a minha voz
me soa tão alheia
que precisarias ter
para ouvir-me
também outros ouvidos
(aqueles não mais)
se bem que as vogais
das aflições e dos sofrimentos
sejam sempre iguais.

Trovinha

Não te demores, não tardes.
Por que tua volta adias?
Sem ti são tristes as tardes,
Sem ti, amargos os dias.

Bom dia

Que seja um sábado como aqueles antigos, que os meninos esperavam com ansiosa aflição, porque aos sábados funcionava em algum terreno vazio do bairro um parque de diversões com uma roda-gigante, no alto da qual eles só não colhiam estrelas porque, se voltassem para casa com elas, as avós iriam dizer que era pecado.

2017

Te reconhecerei logo
porque enroscado
em teus cabelos
um fiapo de sol
entrará na galeria

Teu rosto será o mesmo
como se o tempo
não tivesse corrido
e o meu será
o mesmo também
dez anos em cinco
envelhecido

Talvez eu finja não te ver
talvez sejas tu que finjas
talvez finjamos os dois
(afinal tantos anos depois
quem é obrigado a se reconhecer?)

Mas talvez sorriamos
e quem sabe tenhamos
cinco minutos ao menos
e um cafezinho tomemos
como se o tempo
não tivesse corrido
e estivéssemos ainda
naquele dia de dezembro
daquele ano tão passado
e tão transcorrido.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Senectude

Falavam de um homem que, enfeitiçado pelo amor, não viu a passagem do tempo e hoje, mais de cinquenta anos depois, age como se ainda tivesse dezoito e faz sonetos apaixonados. Fiquei um pouco ali, ouvindo, e senti pena do homem de quem zombavam. Depois segui meu caminho. Era uma noite estrelada e já na primeira esquina eu me esquecera do homem sobre quem pesava tanto escárnio. Eu estava na segunda quadra de um soneto e procurava uma rima para senectude.

Ter e não ter

Sei que o nome dele é Lúcio
E que o nome dela é Lúcia.
Sei que Lúcio tem prepúcio
Mas Lúcia não tem prepúcia.

Boa noite

Te digo boa noite querendo te dizer outras coisas, que certamente imaginarás. Te digo boa noite baixo, bem baixinho, para que só tu ouças, e para que mesmo a ti, à tua janela, as duas palavras cheguem como a memória de um zumbido de abelha em uma antiga primavera, ou como a discreta passagem de uma brisa na árvore lá fora, ou como o último bocejo da lua antes de o silêncio fechar delicadamente a boca da noite.

Kama Sutra - LI

Encostou a boca no ouvido dela e preparou-se para dizer as palavras que o amor lhe ditaria, mas precisou esperar outro momento, porque os lábios, fechados em beijo, tinham se fixado no lóbulo cor-de-rosa, como se fosse a polpa de uma fruta.

O mesmo

Dizer todo dia o mesmo. Não ter outro assunto, não querer ter outro assunto. Falar do amor, sempre, e tentar falar sempre melhor. Não ter vergonha de falar do amor, do amor, do amor. Ter vergonha de não saber falar melhor dele. De não dizer, com a voz da poesia, que ele é o pão da vida.

Major Quedinho, 28

Te revi hoje
velho prédio

Primeiro vi de longe
lá no alto teu relógio
marcando um tempo
que já não conheço
e já não me reconhece

Já quase na Martins Fontes
eu fiquei um pouco diante
do mural de Di Cavalcanti
bem ao lado do qual
o letreiro luminoso
notícias do mundo trazia
de Chipre de Tenerife
do Egito e da Turquia

Mineiros morriam em minas
e em Minas havia drummonds
que em São Paulo não havia
mas num escritório da Barão
com brilho e precisão
o poeta Guilherme de Almeida escrevia
as crônicas que teu jornal
meu querido prédio velho
no dia seguinte publicaria

Te revi hoje
velho prédio
onde a pulsação
do mundo se ouvia

E penso que
se não houvesses existido
eu não teria conhecido
tantas coisas que conheci
e imagino
que Chipre e Tenerife
que Egito e Turquia
e tudo que no mundo havia
houve somente
para que em teu coração
se escrevesse diariamente
o sagrado e o profano
a miséria e a glória
a tragicômica história do ser humano.

Bom dia

Se me dizes bom dia por educação, eu entendo e agradeço. Mas, se for um prognóstico, te digo que pelo retrospecto - e até por minha vontade - tuas chances de acertar são mínimas.

Idade

Já está naquela idade em que o único acontecimento vital que ainda pode esperar é a morte.

Coisinhas

O que resta do amor é sempre pouco
um livro ou dois
um bloquinho
uma canetinha cafona
de seis cores ou oito
um cachorrinho de pano ou dois
um branco
branquinho
outro preto
pretinho
coisas assim
coisinhas

Tudo cabe em duas sacolas
duas sacolinhas
uma para ele
outra para ela
tudo bem arranjadinho
assim

Bom agora sim
tudo está certo
tudo certinho
falta só aquele abraço
aquele beijinho
te cuida tá
eu me cuido
pode deixar

Talvez tenham vontade
de olhar para trás
quem sabe acenar mais
um tchau um tchauzinho
mas eles não olharão
mas eles não acenarão

Sentem-se seguros
sentem-se maduros
caminhando cada um
numa direção

Quem os vê não imagina
que levam nas sacolinhas
um livro ou dois
um bloquinho
uma canetinha
um cachorrinho ou dois
que colocarão numa gaveta
da qual não se lembrarão depois.

Kama Sutra - IL

Ordenou que três escravos lhe trouxessem três bandejas carregadas de frutas. Quando chegaram, mandou que se postassem diante dela, erguesse cada um sua bandeja acima da cabeça e a mantivesse assim por um minuto. Em seguida, dispensou dois dos escravos, deixando que no aposento real ficasse apenas aquele em cujo calção notara formar-se o desenho que mais lhe havia agradado.

Se por amor fores morrer

Se por amor fores morrer, que seja lenta tua agonia. Não dias, nem meses. Anos. Que sofras como só os que morrem por amor merecem sofrer. Que te lembres de cada momento feliz, e principalmente dos tristes, e que descrevas todos com a alma e o coração que o amor te ensinou a ter. Que derrames todas as lágrimas, se tiveres ainda alguma, e que, se algum erro fores cometer na descrição, que peques pelo exagero. Os jovens que lerem teu relato hão de saber que se alguém fala de amor há de falar de sofrimento, do mais abençoado de todos os sofrimentos que podem atingir um homem.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Bom dia

De coisas simples se faz a alegria. Acordar, abrir a janela, ver se o sol está de cara boa. Depois o café, o pãozinho com geleia, talvez um suco de laranja para arrematar. Ah, e sentir aquela disposição matinal de assobiar e cantarolar e de desejar bom dia a quem se ama. Quando te digo bom dia, como agora, sinto uma dessas pequenas alegrias que, se eu quiser ser honesto, precisarei admitir que na verdade é uma grande, uma enorme, uma imensa, uma imerecida felicidade.

Kama Sutra - XLVIII

Eu poderia ter sido uma folha miúda, talvez só uma parte dela, que, caindo por acaso na tua blusa, se afeiçoasse a ela e, apesar da brisa da noite, se apegasse àquele centímetro quadrado de suave tecido e, por uma dessas sortes que às vezes algumas folhas têm, entrasse em tua casa, em teu quarto, e só então se desprendesse da blusa para deitar-se em tua cama, esperando, com paciência e discrição de folha, que tomasses banho. Quando viesses, eu, se me favorecesse a ventura, aderiria à roupa que tivesses posto para dormir, ou ao teu corpo, se não tivesses posto nenhuma.

Conceito

Amor, que coisa é essa, que loucura
- Que o conceitue alguém, se puder -
Que encontra quem por ele não procura
E não se deixa achar por quem o quer?

Mártir

Podes exigir sempre mais do coração

Não o acostumes mal
não lhe dês alegrias senão curtas
esperanças senão descabidas
ilusões senão malogradas

Não lhe ofereças prêmios
não lhe prometas recompensas
senão aqueles prêmios
senão aquelas recompensas
que tu bem sabes
que não irás pagar

O coração há de reaprender todo dia
que para ele as festas não são senão
outra mentira outra empulhação
um "x" traçado meticulosamente
no coração de um cordeiro
antes da imolação

Podes exigir sempre mais do coração

Convém que jamais te esqueças
de martirizá-lo na saúde
e de supliciá-lo na doença

Ele tem a vocação do sofrimento
e goza com os espinhos do tormento
e os cravos da flagelação.

Velhice

Quando consegue compor os três curtíssimos versos de um haicai, precisa descansar o resto do dia. Sente-se como se tivesse acabado de escrever os dez cantos de uma epopeia.

O tema

Sim, fala de amor
A minha poesia.
Se de amor não for,
De que falaria?

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Rima / solução?

Há muito nada me anima
Nem me favorece a sorte,
E tudo, até mesmo a rima,
Me aponta um só rumo: a morte.

Bom dia

Talvez possamos ter um bom dia hoje ou ao menos um dia semelhante àquele que tivemos há um semestre ou um ano. Um dia daqueles, tão raros, três ou quatro ao todo, na vida, em que por engano, logo descoberto, fomos destinatários da alegria. Um daqueles dias em que tivemos certa noção do que talvez seja a vida como os outros a retratam.

Eu também

Eu também tive ilusões
e o incrível
e o impossível
e o inatingível
não eram inadmissíveis
inconcebíveis
nem impensáveis

Acreditei na fama
na glória
na concretização
de todos os sonhos
e no amor

Olhem bem para mim
isto olhem assim
e me digam se vocês acham
que consegui

Que vocês agora
embarquem no barco
em que um dia embarquei

Se acreditam
na fama
na glória
na concretização
de todos os sonhos
e no amor tudo bem

Eu também acreditei.

Conduta

Melhor seres sempre terno.
De cada beijo não dado,
De cada abraço negado,
Prestarás conta no inferno.

Godot

Se um dia Godot vier, o mínimo que vai lhe acontecer é levar um tremendo esporro.

Setenta

Depois dos setenta anos, o pessimismo não é uma atitude filosófica; é uma contingência física.

O silêncio dos escravos

Os escravos do Amor não gritam mais. Em troca do silêncio, o Amor prometeu visitá-los um a um, em suas celas. A promessa foi feita há dois anos e há dois anos o Amor saiu para inspecionar os castelos que tem em outras partes do mundo. Os escravos continuam esperando nas celas e, temendo romper o pacto, perguntam-se aos sussurros, de cela para cela, se algum deles lembra quantos anos demorou o Amor para ir vê-los na última vez.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Pequena ode para Mário Cesariny

Uma amiga me falou de ti
Mário Cesariny
e simpatizei com teu nome
igual ao de Sá-Carneiro
e o sobrenome com esse "y" final
tão chique tão francês tão inusual
sugerindo esta rima em "i"

No centro cultural vergueiro
(viva teu xará Chamie)
buscando o milagre de um livro teu
não encontrei um, mas três

Saí com eles ao sol paulistano e
vi na ficha de retiradas que dos três
nenhum jamais tinha saído dali

Lá estavam fazia trinta
fazia quarenta anos
e a mim meu Mário Cesariny
cabia essa mais que alegria
de fazer dar seus (meus) primeiros passos
esses já três velhinhos
esses três queridos filhos teus.

Bom dia

Digo outra vez bom dia, como disse ontem, como disse anteontem. Digo bom dia como dizia em novembro de 2010 ou dezembro de 2009. E digo bom dia sentindo que este, de hoje, é um eco esmaecido de novembro de 2010 ou dezembro de 2009. De lá para cá, se pode entrar aqui uma imagem falsamente poética, as esperanças foram murchando. Murchas estão todas agora e, se fosse permitida outra metáfora antipoética, o vento começa a soprá-las para o esquecimento.

Sonhos

Seja sempre menor que os seus sonhos

Que sua grandeza esteja
apenas em sonhá-los

Realizá-los seria apequená-los
com a sua soberbia.

Jonathan Swift

A estante parecia estar diminuindo. Cada dia dava a impressão de ter encolhido meio centímetro. Foi assim durante duas semanas. Depois que, terminado o empréstimo, a bibliotecária recolocou "As viagens de Gúliver" na letra S, não se notou mais nada de anormal.

Folha

Ser arrastado
não é resultado
de meu intento

Do rumo da folha
quem faz a escolha
é o vento.

Pretexto

Não, tu não és um pretexto
Que eu use para a poesia.
És o que sem ti o texto
Razão de ser não teria.

Kama Sutra - XLVII

Quisera ter sido um personagem de Alexandre Dumas, quem sabe um conde, talvez até um duque, haver frequentado todos os antros de depravação e todos os teatros, e haver sido apaixonado por coristas e poder ter sustentado regiamente meia dezena delas e, na página 240 ou 250, já velho e morando numa quinta, ter, por piedade ou simpatia do autor, a glória romanesca de morrer nos braços de uma robusta empregada de cozinha de dezoito anos que, tão hábil quanto as coristas e as cortesãs, passasse os dedos pelo meu cavanhaque antes de dar-me amor.

Kama Sutra -XLVI

Tem tatuada na mão direita uma dançarina de saia curta que, com o abrir e o fechar da palma, ele faz dançar. É uma curiosidade que exibe dezenas de vezes por dia. São sempre momentos de bom humor. Mas, à noite, sozinho em casa, ele a faz dançar só para si mesmo e para a sua mão esquerda, que resvala pela saia e acaricia as pernas e, no final, cola-se à mão direita, como se fizesse frio e as duas, irmãs órfãs, quisessem se aquecer.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Futuro

Pelo que vivo e vivi,
Sei que será sempre assim:
Eu sempre longe de ti,
Tu sempre longe de mim.

Imaginar-te assim

Que bom é imaginar-te
caminhando assim
chegando pela augusta
pela paulista enveredando
tua natureza de fruta ostentando
intensa plena e madura
oferecida aos olhos da poesia
à discreta apalpação da beleza
e aos lábios gulosos do meio-dia

Que bom é imaginar-te assim
enquanto tu vais e tu vens
atravessando ruas avenidas e alamedas
ruas avenidas e alamedas
que se dependesse de mim
teriam todas o nome que tu tens.

Bonjour, Gustave

Ser pelo menos uma vez Flaubert, mesmo que fosse no pior dos seus dias. Bastaria um parágrafo, uma frase, um diálogo. Um bonjour trocado entre dois personagens secundários de um romance.

Segunda-feira

Tão belas são as segundas,
Tão quentes e alvissareiras,
E em afeto tão profundas,
Que mais parecem primeiras.

Bom dia

Dizer bom dia, embora a vida se venha tornando um espetáculo cada vez mais penoso para o participante e para o espectador que há em cada um de nós. Dizer bom dia aos que ainda não se cansaram de participar nem de ver e desejar que não se cansem nunca ou que demorem muito para se cansar. Dizer bom dia e esperar que ninguém note o ceticismo e o cansaço com que o dizemos. Dizer bom dia e confiar em que nossa voz não soe como o gorgolejar dos morituros.

Pudicícia

De longe, sempre de longe
É que o meu canto te canta.
Penso às vezes ser um monge
E seres tu uma santa.

Brinquedo

Deitar-me de costas na correnteza e deixar-me levar, olhando para o céu e sorrindo, como um menino num parque de diversões e como se a cachoeira de pedras pontudas logo ali fosse só a parte mais emocionante do brinquedo.

Adversativas

O que vos digo é que tudo
Comigo começa bem
E continua também,
Mas, todavia, contudo.

Que alguma coisa

Que alguma coisa na tarde
um poema
alguns versos ao menos
uma nota aguda de ária
maria callas maria callas
consiga dizer agora
antes que seja tarde
que a vida não é
aquele homem
palitando os dentes
e rindo
aquela mulher
e os filhos sorridentes
essa alegria
que vem nos aliciar
com seus preços baixos
e as manhas de sua putaria

Que alguma coisa na tarde
possa soar ainda
como uma celebração
da tristeza
como uma ode
à melancolia
e dizer a nós
os derrotados
a nós os vencidos
que talvez
não estejamos tão errados
e possa ser a nossa
a face real da vida.

Melhor seria

Perderam suas divisões
perderam seus regimentos
perderam seus exércitos

Perderam batalhas
perderam a guerrra
e no peito as condecorações
as insígnias as medalhas
que luziriam não se veem

Melhor seria se tivessem morrido
como todos aqueles soldados
pelas famílias pranteados
como se heróis tivessem sido

Melhor seria agora estarem
sepultados bem fundo na terra
por um dia tolamente acreditarem
que honra e glória possam advir da guerra.

domingo, 9 de setembro de 2012

Convalescença

Que lástima ter estado
Tão próximo de morrer,
Que estúpido ter lutado,
Que triste sobreviver.

Certa manhã

É escritor. Está com quarenta e dois anos e os seus três romances, todos vencedores de prêmios, têm como tema a fragilidade da vida. Sabe que é escritor por algo que lhe aconteceu quando estava com dez anos. Certa manhã, no colégio, conversou um minuto com o homem que estava consertamdo o telhado. Tinha acabado de dizer tchau para voltar à sala de aula quando ouviu um barulho fragoroso e, olhando para trás, viu o homem no chão, com a cabeça destroçada. Quando dá entrevistas sobre o que o motivou a se tornar romancista, cita a mãe e o pai pelo incentivo, Dostoiévski e Tchekhov como influências, mas sabe que comete uma injustiça com o homem que morreu certa manhã à sua frente, há trinta e dois anos.

Meu dia

Dou-te conta do meu dia. Fiz o que sempre faço: pensei em ti e, se acreditas em mim, hoje pensei muito mais intensamente do que ontem. Te louvei também e, nesse louvar-te, procurei igualmente empenhar-me mais do que na véspera. Creio que consegui, mas tu mesma poderás dizer-me se tive êxito. Trago-te, como sempre, os poemas que me inspiras e que são agora a principal e a mais agradável tarefa dos meus dias. Te presto contas de minha devoção e te peço que digas como cuidaste do meu amor, esse tesouro de cuja guarda eu com tanto prazer te incumbi.

Sim

Mas chega um dia em que enfim,
Cansado de dizer não,
Tu abres o coração
E ao amor dizes que sim.

Bom dia

A manhã trouxe uma brisa marinha e um mormaço que o fizeram abrir a porta, esfregar os olhos e contemplar por um momento a rua, como se de repente os carros pudessem desaparecer e as ondas vir até seus pés. Chegou a imaginar num papel prateado a presença de um peixe. Depois, desanimado, voltou para dentro.

Messe

Amor, tão gratificante
É tua messe dourada
Que dela não colher nada
É já colher o bastante.

Registro

Amor, nas mortes que ocorrem,
Em todas essas que eu vi,
Alguns há que por ti morrem
E alguns que morrem por ti.

O lugar

O planeta Terra é esse lugar que eu amo por ser o único em que, por uma dessas inconcebíveis probabilidades matemáticas, por um acerto do acaso ou por um milagre, eu posso te encontrar.

Estrelas de ouro

Uma noite, em vez de contemplar a lua, olhou para um latão de lixo e sobre ele viu faiscando, como duas estrelas de ouro, os olhos de um gato. Compreendeu então que estivera todo o tempo errada sua concepção de poesia.

Exação

Do Amor sou tão serviçal,
Tão devotado ao ofício,
Que até já chamam de vício
O meu trabalho habitual.

Charcot

Amor, tu louco me pões,
No manicômio me deixas
E, sem ouvir minhas queixas,
Que eu nunca saia dispões.

sábado, 8 de setembro de 2012

Bom dia

Te digo bom dia assim como te desejaria boa sorte num cassino. Não conheço o dono do cassino, nem quem maneja a roleta, e, se der o teu treze vermelho, será por mérito teu ou tua sorte, assim como só por tua sorte e mérito te sorrirá o sol, ou então porque te amam o dono do céu e quem por ordem Dele faz girar o planeta.

Kama Sutra - XLV

Quando ela acabou de tomar a sopa e disse que ia ao toalete, ele pegou a colher no prato dela e trouxe-a aos lábios. Sentiu na língua uma perturbadora mistura de alumínio e sal. Para facilitar a futura memória desse momento, guardou a colher no paletó e a cada instante apalpava o bolso, como se ali dentro houvesse uma fatia do sol de primavera.

Também daquele

Também daquele que nunca viste e que a minha imaginação coloca numa manhã de 2000 ou numa tarde de 2001 observando-te entrar num hotel de uma cidade qualquer - também daquele eu tenho ciúme. Cada vez que reinvento a cena, torna-se mais nítido e belo o rosto dele e hoje, quando eu caminho pelas ruas, o envelheço mentalmente doze anos ou onze e sobressalto-me quando penso vê-lo na Paulista ou na Augusta. Não sei o que farei quando o encontrar, mas, quando fantasio esse encontro, eu, que gostaria de sentir crispação e ódio em minhas mãos, vejo-as inertes, enquanto o ciúme abre duas fontes de lágrimas em meu rosto.

Três anos antes

Um de nós morreria afogado três anos depois naquele rio, mas naquele dia estávamos só sentados à beira, porque nenhum de nós sabia nadar.

Retrospecto

Insisto em tudo e persisto,
Em tudo ponho o que tenho,
E luto e sofro e me empenho,
Até que afrouxo e desisto.

A voz

Amor, que me perdoes, não por coisas do passado, grandes ou pequenas, pelas lágrimas, pelas queixas com que te importunei. Perdoa-me, amor, por exaltar-te hoje com esta voz velha e áspera, mais apta a afastar os pássaros e os seus cantos do que a chamá-los.

Aqui

Escrevo aqui neste sofá. Não tenho mais ânimo para ir buscar a vida lá fora e sei que ela não virá me buscar. Todas as lutas para as quais me preparei, todos os combates, travam-se agora nesta sala, e o fragor de outrora foi substituído pelos murmúrios do meu coração, que pergunta às vezes, ainda, onde estão os louros, os triunfos e as glórias que lhe prometi.

Júri

Se te magoo, desculpa.
Porém, se o amor me ensandece,
Quem a punição merece,
É minha ou é dele a culpa?

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Bom dia

Porque Dom Pedro I proclamou a Independência, o colégio da minha rua não funciona hoje. E fazem-me falta os berros, a algazarra do recreio, a alegria juvenil gritada ao sol. Sem eles, minha rua boceja longamente e espera a voz rouca do vendedor de Cândida. Imagino que esperará em vão. Os passarinhos também sumiram, parecem ter sido convidados a cantar no desfile, e a única manifestação de vida que talvez ocorra será a do padeirinho que vende seus pães na bicicleta. Se não for proibido vender pão no feriado.

Absolvição

Demora, mas chegará.
Quando morrermos, ninguém
Mais nada nos cobrará.
Mortos são gente do bem.

Do outro lado do balcão

Poesia não vende
e ele poeta novato
acreditou no editor
e virou contista

Contos não vendem
argumentou o editor
e ele jovem contista
tornou-se romancista

Romances não vendem mais
como antes vendiam
e ele jovem romancista
confiou de novo no editor

Hoje ele é editor
e prospera dia a dia
embora contos não se vendam
nem romances nem poesia.

Encontro

Não foi uma conspiração dos astros
nem uma conjunção de signos

O que nos uniu foi algo mais simples
e se estava registrado no livro do destino
não era numa das páginas principais
escrito em letras artesanais

O que nos uniu foi certamente
um acontecimento ocasional
que chamarmos de causa eficiente
seria tolo e irracional

Talvez não seja impróprio
apesar das prováveis zombarias
que foi só uma das estripulias
nas quais ainda às vezes o amor se compraz

Foi algo simples tão simples
que falar em odisseia ou epopeia
seria certamente um exagero
ou então uma tentativa de poesia.

De amor e mar

Não fales mais de amor. Um marujo velho evocando tempestades, por mais que as tenha enfrentado, jamais transmitirá aos jovens a exata fúria dos vagalhões, o fulgor demoníaco dos raios, o vento arremessando-se contra o navio como mil cães enlouquecidos. Assim como a do mar, tua memória do amor nunca será mais do que uma foto em preto e branco dos tormentos, das aflições, das convulsões que martirizam as almas possuídas pelo amor. Não fales mais dele, do amor. Que jovem acreditará, vendo teus olhos mortiços e tua pele de pergaminho, que o amor, assim como o mar, é o que dizes ser? Pensarão que o amor é uma superfície azul alisada pela brisa, e o que farão quando, numa plácida noite de verão, os atingir a tormenta?

Conforto

Tinha morrido já fazia três horas, mas estava tão confortavelmente deitado que o guarda do parque não o advertiu de que era proibido ficar ali na grama e um cachorrinho foi chamá-lo para brincar.

Dói, amor

A dor que tu propicias
Amor, ao meu coração,
É hoje a causa, a razão
E a vocação dos meus dias.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Apelo

Talvez alguém escutasse,
Talvez alguém respondesse,
Se ao menos eu me atrevesse,
Se ao menos eu perguntasse.

A pão e água

Eu me deixei acorrentar e me entreguei ao Amor. Na minha cela, à qual às vezes por compaixão o Amor ia, eu, por automortificação e para merecê-lo, passei a viver de pão e água. As visões que a sede e a fome me propiciavam tinham tal beleza que eu me deleitava com os êxtases, que chegavam a durar dias. Nessa época o Amor, por merecimento meu, marcou com ferro em brasa, em minhas costas, a chaga do seu domínio. Faz uma semana isso, e nunca mais passou por meus lábios nem uma gota de água nem um farelo de pão. Minha boca hoje vive para cantar a glória do Amor e em minhas costas a chaga se transformou numa rosa que à noite espalha em minha cela, e nas celas vizinhas, uma fragrância santificada.

Oi

Eu jamais quis ser senão
Alguém a ti acenando
E como prêmio esperando
O aceno de tua mão.

Bom dia

Dizer bom dia, dizer bom dia sinceramente, como se outra vez tivéssemos sido enganados pelos ardis do sol e da manhã, ou dizer bom dia com a nossa voz mais mentirosa, como se novamente estivéssemos passando adiante o trote diário.

À deriva

Andar por quê? E para onde?
As rotas foram mudadas,
As placas foram trocadas
E o norte no sul se esconde.

A ideia

Tinha pensado em fazer aquilo, mas um ano antes. Não chegara a ser um projeto, e se dissipara depois da consulta com um psiquiatra. Os comprimidos vinham dando resultado. Estava na farmácia, comprando os dois frascos para os sessenta dias seguintes, quando a antiga ideia voltou. Em casa, esquentou o jantar no micro, pôs o melhor pijama, levou um copo alto de água para a cama e deitou-se. Abriu os dois frascos e esparramou os sessenta comprimidos no criado-mudo.

A única

Lembrar-te, evocar-te e exaltar-te não são atributos de minha segunda natureza. São o que constitui minha única e venturosa natureza.

Pequenas batalhas

Sobre uma mesinha de café
quantas batalhas travadas
quantas manobras armadas
quantas guerras perdidas
quantas vitórias comemoradas

Olhos nos olhos
rosto no rosto fixados
mãos nervosas
dedos agitados
e um coração
as batidas escondendo
do outro coração
ou dependendo da estratégia
fazendo-as soar
com maior amplidão

Incruentos são esses combates
e feridos apenas ficam
melindres e suscetibilidades

Mas às vezes
alguém empenhado num deles
se lembra da mesinha
e lamenta não ter traçado
em cima da toalha
um plano melhor para a batalha
que há vinte anos
ou trinta perdeu
e embora sempre desminta
nunca esqueceu.

Conhecimento

Agora sei que tu sabes
Que sempre te amei, e quanto,
E que me preenches, e tanto
Que no meu peito não cabes.

Flor

Espanta-me ainda o teu amor, como se fosse uma rosa que, subitamente surgida entre as pedras de um jardim, retivesse para sempre o dono em casa, temeroso de que, tão subitamente quanto apareceu, ela se fosse, arrebatada talvez por um convite malicioso do vento. Olho para a rosa e em qualquer brisa vejo um disfarce do vento. Como anteontem, como ontem, não sairei de casa.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Bom dia

Dizer-te bom dia com a certeza triste de que jamais a manhã e o sol te chegarão como eu desejaria. Dizer-te assim mesmo, porque a poesia está quase sempre mais nos ouvidos de quem ouve do que nos lábios de quem a pronuncia. Dizer-te bom dia porque de ontem para hoje eu talvez tenha aprendido finalmente a dizer bom dia.

Ser poeta

Aprender as palavras
a arte de usá-las
o segredo de juntá-las
e chamar esse segredo
e chamar essa arte
de poesia

Achar-se especial
presumir-se poeta
e com essa presunção
julgar-se capaz
de embelezar a noite
e aprimorar o dia

E compor elegias
exaltar luas e sóis
e fazer cantar
cotovias e rouxinóis
até cansá-los
e depois matá-los
num fim de noite
ou num início de dia
com a tola convicção
de fazer tudo isso bem melhor
do que o senhor da criação.

Falar-te-me

Perguntas como eu consigo,
E eu não sei como explicá-lo,
Mas sempre falo contigo,
Até se comigo falo.

O látego

O Amor açoitava-me três vezes por dia. Na minha cela permanentemente tomada pelas trevas, seu látego moldava em mim a manhã, a tarde e a noite. Esperava por ele com uma ansiedade que ma fazia enterrar as unhas nas palmas, e os dentes no lábio. Sangrava-me de antecipado prazer e, nas costas, minhas feridas palpitavam. Eu rezava, implorava, suplicava. Eu chorava por ele, pela sua presença. Foi assim por três anos. Há um mês - se é confiável minha noção de tempo - o Amor não me visita mais. Na cela ao lado, de onde jamais vinha um som, há trinta dias ouço um assobio feroz de couro e uma voz juvenil que parece arranhar com a garganta a parede quando gozosamente pede: mais, mais, mais.

Monólogos

Que me perdoes, eu rogo,
Quando eu, receando falar-te,
Acabo por irritar-te
E divago, e monologo.

Crenças

Para quem já no amor creu
E para quem no amor cria,
A triste notícia do dia
É que ontem o amor morreu.

Balanço

Agora sei distinguir
Que a ti os doces momentos
E a mim os acres tormentos
Se devem atribuir.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Tão mulher

Pudesse eu ver-te como uma
Mulher, mulher simplesmente.
Não posso. Mulher nenhuma
É mulher tão totalmente.

Verde-cré

O verde é
quando no amarelo
se derrama
folha sobre chama
verde amarelado
amarelo esverdeado
verde-cré.

Bom dia

Se uma gaivota se aproximar de você, não receie. Será ela, certamente, que lhe dará o meu bom-dia. Não lhe pergunte como estou. Estou bem, muito bem. Não acredite se ela lhe disser o contrário. Eu estou bem, como se presume que há de estar um homem que recebeu a graça do amor. Foi há bastante tempo, é verdade, e muita coisa mudou, mas quem vai arriscar-se a conhecer o fim de uma história, se ela começa tão bem?

Tango

Acordei chorando. No sonho, um homem alto e forte, notavelmene alto, forte e belo, estava parado numa esquina. Era noite e custei a ver que ele abraçava uma mulher e que a mulher eras tu. Eu me aproximava quando, com um daqueles vertiginosos passos de tango, o homem te dobrou para trás e, curvando-se máscula e elegantemente sobre ti, te manteve uns instantes assim, subjugada. Quando ele se curvou um pouco mais, eu, com a força do desespero, acordei. Sentei-me na cama e senti o suor misturado às lágrimas. Lá fora, a madrugada era rasgada por latidos, mas eu julguei ouvir, no meio deles, um acorde portenho. Fiquei sentado na cama por meia hora, talvez uma, talvez duas, talvez mais, impedindo-me de dormir, com medo de que voltasse o sonho e, com ele, voltassem os ágeis passos do homem e a determinação com que ele te curvava e te punha submissa aos seus beijos.

O ciúme

O ciúme é um egoísmo da alma
Que não nos deixa viver,
Que não se esvai nem se acalma
E nos incita a morrer.

Rendição

Amor, será sempre vão
Eu querer a ti me opor
Se uma ave trazes na mão
E trazes na outra uma flor.

Futuro

No dia em que acontecer, todos acharão normal, garantirão que já sabiam. Dirão que todo o tempo ele deu as pistas, que diariamente declarou o que faria. E ele todo o tempo dá todas as pistas, ele diariamente declara o que fará, mas os videntes de amanhã não veem nada hoje.

Pauta

Melhor não ser do que ser,
Melhor perder que ganhar,
Melhor sofrer que gozar,
Melhor morrer que viver.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Boa noite

Minha saudade manda-te boa noite e pede que eu te diga coisas belas. Talvez seja belo isto: minha saudade manda-te boa noite e pede que eu te diga coisas belas.

De John Donne, sobre o ciúme

"Do conhecimento e da vida, as árvores plantei em ti,
E delas, oh, irão estranhos provar? Deverei, então,
Cinzelar e esmaltar a prata para em vidro beber?
Amolecer a cera para os selos alheios e domar um potro
E abandoná-lo depois, tornado em cavalo rodado?"

(Do livro "Elegias amorosas", tradução de Helena Barbas, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Estação da Luz

Pobre garota
oferecida assim
aos olhos da avenida
com a blusinha batida
e a calça chinfrim

O sol anda contigo
apetecível iguaria
e te faz faiscar no umbigo
uma dessas perolazinhas
de fina bijuteria

Em ti garota os homens
põem os olhos gulosos
e nas braguilhas
os dedos sub-repticiamente ensaiam
desabotoamentos voluptuosos

Quando a esse velho te deres
por uma fungadinha ou pelo almoço
poderás entregar-te outra vez
e para ti tanto faz garota
se outro velho for ou um rapaz.

O grito

Gritei amor e esperei.
Passou o tempo, passou
A vida, e ainda aqui estou.
Jamais amor gritarei.

Avenida

Não sei por onde anda a minha vida, mas sei que o sol a acompanha e a brisa a acaricia. Tantas aspirações têm os poetas... Eu, se fosse um, gostaria de ser esse sol, essa brisa, de acompanhá-la naquele trecho onde até a calçada da avenida reconhece os passos dela e os faz soar frágeis, ternos, como passos nenhuns soam ou só soam passos de pássaros.

Hospital do Rim, novembro, 2010

Rapidamente afundei
E estava quase afogado.
Reagi, à tona voltei.
Foi um erro ter voltado.

Kama Sutra - XLIV

Que uma vez, ao menos, ele possa beber da água que corre pelos cabelos dourados dela antes de descer pelas veredas que a alucinada fantasia dele percorre como um animal sedento no deserto. Antes ou depois.

Bom dia

Que os deuses me deem também hoje saúde para continuar garimpando no solo do Amor, ainda que as pepitas não sejam senão ouropéis. Vendê-las como bijuterias me mata a fome e a sede e me permite seguir garimpando, até o dia em que, por suprema ventura, uma pepita do tamanho de minha mão queime sua palma e em que meus olhos, ao contemplá-la, sejam cegados pelo estupor da beleza.

Grilhões

Tempo feliz foi aquele
Em que do Amor fui vassalo.
Encarcerado por ele,
Foi quando aprendi a amá-lo.

Sem rede

Viver no décimo andar lhe dá certa imunidade contra zombarias. No dia em que resolver voar como um passarinho, ao chegar embaixo não terá como ver nenhum sorriso de escárnio pelo voo frustrado.

Pelo pescoço

Pendurado pelo pescoço na árvore, molhado pela chuva que não cessou de madrugada no parque, o poeta amanheceu como se fosse um espantalho com mania de grandeza.

O poema

Quando, à beira do túmulo, o melhor amigo anunciou que leria um soneto do poeta morto, o vento arrancou-lhe a folha da mão. Sob olhares constrangidos e alguns risos abafados, ele se pôs a perseguir o poema, ao mesmo tempo em que desabava uma inesperada e raivosa chuva. Os coveiros aceleraram o trabalho e cinco minutos depois, quando o amigo voltou, nem a família do finado estava mais ali. Foi um alívio para ele, porque a chuva agora parecia disposta a afogar o mundo, e a folha com o poema, tendo-lhe escapado irremediavelmente, o colocava na desagradável posição de depositário infiel e amigo inconfiável. Logo estava na lanchonete do cemitério, onde os outros, livres também da chuva e do poema, conversavam alegremente.

domingo, 2 de setembro de 2012

Bom dia?

Bom dia, mas para quem?
Para mim sempre a agonia,
E para quem a alegria?
Tu sabes, e ele também.

Amar-te

Amar-te é pouco

Amar-te seria algo
que no âmbito estaria
do que a linguagem enuncia

Amar-te muito
seria pouco ainda
algo que a linguagem
também exprimiria

Quando digo que te amo
quero expressar
algo que às palavras
não é dado senão esboçar

Algo que é flor
mas flor naquele sentido
que nenhuma palavra definiria
mesmo que fosse a palavra flor.

Kama Sutra - XLII

Depois do grito, ela levou a ponta do dedo à boca. Ele se aproximou, prestativo, e perguntou se tinha sido uma abelha ou um espinho. Ela não respondeu. Continuou com o dedo na boca, e ele, por ver na concentração dela um indício de prazer, sentiu que também no seu corpo um desfalecimento se espalhava mornamente, toda vez que os lábios dela, sugando o dedo, deixavam no ar um estalido.

Os filósofos

Os filósofos são aqueles senhores que começam propondo a discussão de um problema e, enquanto desenvolvem sua tese, apresentam mais uma centena de questões, sem resolver nenhuma. Mas como ficam belos os problemas na linguagem filosófica. Resolvê-los seria quase uma atitude de mau gosto.

Cão em velório

Um cachorro chegou, farejou as três salas do velório e, displicente, voltou para a rua e para o sol. Pesquisou outra vez o ar e, depois de regar generosamente o poste, virou a esquina e desapareceu. Um filósofo extrairia disso uma parábola, um poeta ao menos uma estrofe. Mas o mais interessante seria conhecer o ponto de vista do cachorro.

Nem sempre

Escrever todos os dias nem sempre é dedicação à literatura, mas mera presunção.

De terno e gravata

De terno e gravata, que não lhe eram habituais, o morto assumiu uma severidade que impressionou os parentes e os amigos, porém não as moscas, que se aproximaram dele como se estivesse de bermuda e camiseta e untado de mel.

sábado, 1 de setembro de 2012

Contas

De tudo quanto vivi,
Quando o tempo for contado,
Que cada instante sem ti
Me possa ser compensado.

Bom dia

As melhores manhãs são urdidas de madrugada. Enquanto a amada dorme, há uma conspiração da qual participam gotas de estrela que, pingando lentas e silenciosas, se misturam com um pouco de leite coado da lua, para avivar o verde, dourar o amarelo e fazer de cada cor e matiz as cores e os matizes que a amada, acordando, admirará. Talvez, se a conspiração tiver sido completa, um resto de vento noturno diga duas palavras que, pelo sorriso que abrir a amada, se poderá supor que sejam bom dia.

Conforme sua vontade

Pule de que andar for
sangre a jugular
aperte a corda
até sufocar
morra como lhe der vontade
mas nunca ao amor
implore por piedade

Peça so seu fornecedor
um punhal ameno
uma boa cicuta
ou um simples veneno
mate-se como lhe der vontade
mas nunca ao amor
implore por piedade

Tranque-se no congelador
afogue-se no mar
ponha nisso todo o empenho
e vá tentando até acertar
por menor que seja a possibilidade
mas nunca ao amor
implore por piedade.

Poeminha informático

Saudades de você
do tempo em que pelo micro
piadinhas eu lhe mandava
e gracejos inventava
para que de você viesse
um he-he-he ou um rs

Saudades de você
do tempo em que
meu dia começava
com o bom-dia
que pelo micro
eu lhe mandava

Corria tudo tão bem
que correr melhor não poderia
cada bom-dia meu
retribuído por teu bom-dia
e talvez assim continuasse
se não me tentasse a poesia

Querendo que você
fosse mais do que você
troquei a linguagem simples
que tão bem nos servia
pela pompa engravatada
pela grandiosidade fria

Mandei-lhe odes sonetos
obras de falha ourivesaria
e sozinho hoje diante do micro
lembro-me do tempo em que você
com um rs ou um he-he-he
aos meus e-mails respondia.

Alô

Somos escravos das frases grandiloquentes. Dizemos a um amigo que jamais poderemos retribuir o que ele fez por nós e, no entanto, às vezes dar-lhe um alô bastaria, e o alegraria, mas passamos dias sem dá-lo.

Se eu ao menos

Se eu ao menos
tivesse procurado
um pouco mais
se eu tivesse
escolhido melhor
se eu ao menos
pudesse prever
se eu tivesse adivinhado

Dei tudo ao Amor
e pensando que fosse muito
acreditei que o Amor receberia tudo
como se fossem presentes para um rei

Estava ali tudo
que com esforço reuni
e enquanto as oferendas
eu carregava
sempre alguém indagava
para quem eram
todas aquelas prendas
se por acaso para Deus
e eu sempre respondia sim
são para um Deus

Mas quando as dei
o Amor olhou para mim
quase rancorosamente
como se eu fosse
uma voluntária intrometida
que tivesse levado
um saco abarrotado
de roupa velha e comida
para um indigente

Havia ali até alguns trastes
é verdade
com a minha vida misturados
mas o Amor nada quis ver

Se eu ao menos
tivesse procurado
um pouco mais
se eu tivesse adivinhado
se eu tivesse
escolhido melhor
se eu pudesse prever.