quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

No jornal - 6 - Segundo clichê

Acho que a expressão segundo clichê não é do conhecimento dos leitores atuais e talvez nem de alguns dos jornalistas mais jovens. É coisa antiga, provavelmente em desuso. Sempre que, estando a edição do dia pronta, surgia uma notícia que precisasse ser incluída, se colocava na primeira página a indicação de segundo clichê - e, às vezes, até de terceiro clichê. O segundo clichê era também uma clássica desculpa de jornalistas que chegavam em casa muito além da hora normal, ainda com alguns sons das orquestras dos dancings presos no paletó. Algumas mulheres, já habituadas ao jargão, antes mesmo que começassem as justificativas do marido, diziam: "Já sei, já sei. Deu segundo clichê." Quando o segundo clichê era motivado por um fato realmente extraordinário - esses geralmente estouravam depois da meia-noite -, todos os redatores que ainda estivessem no jornal eram requisitados, não importando de que área fossem. Alguns veteranos recomendavam aos focas (novatos) que, terminado seu trabalho, caíssem fora o quanto antes: sempre podia aparecer um segundo clichê, e aí... De todos os meus segundos clichês, lembro-me particularmente daquele do dia em que Mehmet Ali Agca tentou matar o papa João Paulo II. Organizaram-se rapidamente as funções, designaram-se as tarefas e em alguns minutos a redação estava num alvoroço de mil demônios. Depois da febril correria, faltava apenas (!) a manchete. Começaram as sugestões. Cada um dizia o que lhe vinha à cabeça. Estava difícil. Alguém propôs, entusiasmado: "Terror tenta matar papa outra vez."  Foi essa uma das tantas vezes em que, mesmo estando certo, me senti abominável ao exprimir essa certeza: "Acho que você quer dizer Terror tenta de novo matar papa. Pelo que sei, o papa ainda não morreu nem uma vez." Quase não há mais revisores hoje, nos jornais - e uma das razões talvez seja essa imagem consolidada de alguns, desmancha-prazeres e indelicados, como eu fui naquela madrugada. O revisor, apesar de seu santo trabalho, era sempre aquele chato cheio de vírgulas e crases no bolso, achando que sem elas o mundo não girava.

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