Se já não te anima a chama,
Aquela que à vida dá
O sentido que nela há
E identifica quem ama.
Se a ti já não te comovem
Aquelas tardes douradas,
Aquelas juras juradas
Que a mim até hoje me movem.
Se este amor que me estremece
Ao teu juízo parece
Ter chegado já ao fim.
Se já não lembras de mim
Nem estou nos sonhos teus,
Que seja isto, então: adeus.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2014
Kama Sutra - DCXLIV
Beijar-lhe o dedinho é sempre para ele um ato de submissão, mas só até o instante em que, ali beijada, ela se abre completa e o instiga a possuir cada milímetro do seu morno território.
Kama Sutra - DCXLIII
Eu te beberia inteira, minha fonte, até que em minha garganta a tua água salina começasse a emitir grugulhos como se nela murmurasse o mar.
Kama Sutra - DCXLII
Dar-te beijos tão inconcebivelmente sem intenções que, ao me despedir uma hora depois, eu receasse ser escarnecido por ti e tuas amigas.
Kama Sutra - DCXLI
Me agradaria mamar em ti gulosamente como se eu fosse teu filho homem, aquele estragado pelos vícios de uma velha criada e pelos livrinhos de sacanagem.
Um trecho de Joyce Carol Oates
"Foi assim que numa tarde úmida de verão terminou o casamento de Claire Falk, que já durava vinte e seis anos, mais da metade de sua vida: cometeu o erro estúpido de surpreender uma conversa.
Era um monólogo, apenas uma parte de uma conversa, porque o marido falava ao telefone. Um monólogo sem palavras, sem palavras que se pudesse distinguir claramente, pois estava a alguma distância. Ouvia apenas sons. A voz do marido, curiosamente imatura e sentida, a voz de um rapaz, e no entanto, muito dele. Ela a reconheceria em qualquer lugar.
Discutia com alguém. E suplicava. A voz subia, descia, calava. E tornava a soar: estridente, apaixonada, pusilânime, exasperada, temerosa. Uma música áspera, entrecortada, dissonante, que Claire nunca ouvira antes.
Ou se ouvira - fora há muito tempo, anos atrás.
Ela recuou colando-se à parede, os ouvidos atentos. Embora não tivesse a intenção real de bisbilhotar. Mesmo num momento de choque, de nauseante apreensão, não queria devassar a intimidade de outra pessoa. Mas com quem falava o marido naquele tom irritado, íntimo, por que se mostrava tão repentina e estranhamente servil? Claire sentia impulsos de ir ao seu encontro, de consolá-lo. Fazia muitos anos desde que precisara consolá-lo."
(Do conto "Rainha da noite", extraído do livro Educação sentimental, publicado pela Anima.)
Era um monólogo, apenas uma parte de uma conversa, porque o marido falava ao telefone. Um monólogo sem palavras, sem palavras que se pudesse distinguir claramente, pois estava a alguma distância. Ouvia apenas sons. A voz do marido, curiosamente imatura e sentida, a voz de um rapaz, e no entanto, muito dele. Ela a reconheceria em qualquer lugar.
Discutia com alguém. E suplicava. A voz subia, descia, calava. E tornava a soar: estridente, apaixonada, pusilânime, exasperada, temerosa. Uma música áspera, entrecortada, dissonante, que Claire nunca ouvira antes.
Ou se ouvira - fora há muito tempo, anos atrás.
Ela recuou colando-se à parede, os ouvidos atentos. Embora não tivesse a intenção real de bisbilhotar. Mesmo num momento de choque, de nauseante apreensão, não queria devassar a intimidade de outra pessoa. Mas com quem falava o marido naquele tom irritado, íntimo, por que se mostrava tão repentina e estranhamente servil? Claire sentia impulsos de ir ao seu encontro, de consolá-lo. Fazia muitos anos desde que precisara consolá-lo."
(Do conto "Rainha da noite", extraído do livro Educação sentimental, publicado pela Anima.)
Se todos
Se todos os ivos, geílsons, ândersons, claytons e companhia se dessem as mãos, formariam o maior cordão humano que já protegeu a casa de uma mulher. E, se eles se pusessem a cantar, enfim a Broadway seria aqui. Digam o que disserem, musas como as de São Paulo nunca houve nem haverá.
Lixa
Em ti, coração de pedra,
Alheio à dor e à tristeza,
Algum sentimento medra,
Além da crua aspereza?
Alheio à dor e à tristeza,
Algum sentimento medra,
Além da crua aspereza?
Tanka
Os de olhos vermelhos
Aqui nos pedem, ali
Suplicam, de joelhos,
Mas medra em nós, sem clemência,
A essência rude da pedra.
Aqui nos pedem, ali
Suplicam, de joelhos,
Mas medra em nós, sem clemência,
A essência rude da pedra.
Hora de
Hora de picar os papéis, de limpar os arquivos, de apagar as dedicatórias, de não reconhecê-las. Hora de jogar as pastas no lixo, as onze, e assumir aquele ar sonso quando alguém disser o nome de certa pessoa, ainda que corramos o risco de ser os únicos em São Paulo a não saber quem é. Quem? Ah, não conheço. Não, não mesmo. Priscylla? Não.
Kama Sutra - DCXL
Por que teu umbigo se retrai assim, se fecha quando dele aproximo os lábios? Ele já não sabe, por acaso, que nasceu para ser beijado por eles e redesenhado por minha língua detalhista?
Kama Sutra - DCXXXIX
Não resistes, porém, ao meu dedo médio, o da mão esquerda. Dás sempre um jeito de deixá-lo entrar depois do terceiro toque, fingindo que já dormes.
Kama Sutra - DCXXXVII
Enredados num número formado pelo seis e pelo nove, ele e ela provam o sal da vida.
Fernanda Lima
Fernanda Lima é o verbo ser em toda a magnificência dos seus tempos presentes e futuros.
No teu sonho
É possível que tenhas ouvido ontem, no teu sonho, teu nome sussurrado e, depois, uma canção cheia de palavras amorosas. Não, não era eu - era um pequeno deus, ou um diabrete, compadecido com os meus infortúnios.
Extemporâneo
Os participantes do almoço chegaram à conclusão de que ninguém mais morria de amor, e ele, que amargava no peito a dor profunda e latejante de uma paixão não retribuída, sentiu a injustiça de não ter nascido na época em que os enamorados desiludidos saltavam de pontes ou tomavam veneno, e lastimou que sua covardia o impedisse de promover um retorno histórico e morrer ali mesmo, naquela hora, para calar aqueles que, devorando o churrasco, discorriam sobre a vida como se fosse um passatempo.
Fetiche
Na excursão, o grupo deteve-se ao chegar a uma fonte e, observando uma das garotas sorver avidamente água na concha das mãos, um garoto sentiu que os dedos do sol brincavam em sua braguilha e teve sua primeira experiência daquilo que depois descobriu ser um fetiche sexual.
Kama Sutra - DCXXXVI
A chuva desviou seus pingos, para poupar-te, mas um deles, amoroso e atrevido, caiu em tua testa e, descendo pelo nariz, beijou teu batom escarlate.
De jeito nenhum
Que pretensão, a da lua: surgir agora e querer fazer-se notada, justamente quando sais do cinema e andas garbosa pela avenida.
Kama Sutra - DCXXXV
A concentração com que depois, para enxugá-los, passas a mão nos pelos leitosos.
Viaduto
Fui ao viaduto
disposto a pular
a voar
Teria pulado
teria voado
Não apareceu um puto
para me empurrar.
disposto a pular
a voar
Teria pulado
teria voado
Não apareceu um puto
para me empurrar.
Poemas de Paulo Leminski
"o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique."
***
"Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima."
***
"parem
eu confesso
sou poeta
cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face
parem
eu confesso
sou poeta
só meu amor é meu deus
eu sou o seu profeta."
***
"duas folhas na sandália
o outono
também quer andar."
***
"a palmeira estremece
palmas para ela
que ela merece."
***
"a folhas tantas
o outono
nem sabe a quantas."
(De Toda a poesia, publicado pela Companhia das Letras.)
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique."
***
"Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima."
***
"parem
eu confesso
sou poeta
cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face
parem
eu confesso
sou poeta
só meu amor é meu deus
eu sou o seu profeta."
***
"duas folhas na sandália
o outono
também quer andar."
***
"a palmeira estremece
palmas para ela
que ela merece."
***
"a folhas tantas
o outono
nem sabe a quantas."
(De Toda a poesia, publicado pela Companhia das Letras.)
quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
Sol
Quem, entre os teus admiradores, há de rivalizar com aquele que lá em cima afasta agora a nuvem para te espreitar e mandar-te um beijo cálido?
Aqui, ó
Se danem Paris e Roma
E Barcelona e Madri.
Não vou lá, estou em coma,
Estou morrendo, morri.
E Barcelona e Madri.
Não vou lá, estou em coma,
Estou morrendo, morri.
Gramática
Enquanto o rato roía a roupa de Rute na rua do Rosário e o rei de Roma rumava para Madri, eu na aula de português não sabia se um tigre, dois tigres, três tigres comia ou comiam um revolucionário russo.
Soneto resgatado em um arquivo
O que me alenta me dói,
Me fere o que me sustenta,
O que me nutre me rói,
Me mata o que me alimenta.
Reclusa, quieta em meu canto,
Vou viajando minhas viagens
E é do meu riso e meu pranto
Que vivem minhas colagens.
Eu sou inteira e fração,
Imensidão dividida,
Um lago manso, um vulcão.
Sou morte, paixão, sou vida,
Sou sim, sou talvez, sou não,
Sou eu, sou todas, sou Frida.
Me fere o que me sustenta,
O que me nutre me rói,
Me mata o que me alimenta.
Reclusa, quieta em meu canto,
Vou viajando minhas viagens
E é do meu riso e meu pranto
Que vivem minhas colagens.
Eu sou inteira e fração,
Imensidão dividida,
Um lago manso, um vulcão.
Sou morte, paixão, sou vida,
Sou sim, sou talvez, sou não,
Sou eu, sou todas, sou Frida.
Kama Sutra - DCXXXIV
Que néctar, que mel, que dulçor podem ser assim considerados, se não passaram pelo teste dos teus lábios?
Pero no mucho
O amor é cego, mas nunca deixa de notar músculos sarados, coxas macias, nádegas empinadas. Tem também certa acuidade para analisar extratos bancários.
Um trecho de James Joyce
"(...) sim eu penso que ele tornou eles um pouquinho mais duros chupando eles tanto tempo que ele me fez ficar com sede teteias é como ele chama eles eu tive de rir sim este aqui pelo menos fica durinho de bico por qualquer coisa eu vou dar um jeito para ele fazer de novo e vou tomar ovos batidos com marsala para fazer eles ficarem cheios para ele como é que é curiosa a maneira que todas essas veias e coisas é feita 2 iguais em caso de gêmeos eles são considerados como representantes da beleza colocados em cima como aquelas estátuas no museu uma delas fingindo esconder ele com a mão dela são eles tão bonitos é claro comparado com o homem como se parece com seus dois sacos cheios e a outra coisa dele pendurada pra fora dele ou te espetando pra cima como um cabide não é de admirar que se esconde isso com uma folha de repolho a mulher é a beleza é claro isso está admitido quando ele disse que eu podia posar para um retrato nua".(...)
(De Ulisses, tradução de Antônio Houaiss, publicado pela Editora Civilização Brasileira.)
(De Ulisses, tradução de Antônio Houaiss, publicado pela Editora Civilização Brasileira.)
Nossa alma
Nossa alma faz o que pode
Tenta ser boa
ser humilde
cordata como
toda alma deve ser
Nossa alma tenta ser boa
faz o que pode
mas como toda coisa
como toda pessoa
que tenta ser boa
no fim sempre se fode.
Tenta ser boa
ser humilde
cordata como
toda alma deve ser
Nossa alma tenta ser boa
faz o que pode
mas como toda coisa
como toda pessoa
que tenta ser boa
no fim sempre se fode.
De ti
De ti eu sou devedor.
Com o amor que não me deste
E com a dor que me impuseste,
Tu me tornaste escritor.
Com o amor que não me deste
E com a dor que me impuseste,
Tu me tornaste escritor.
Por quem
Por quem dobram os sinos?
Dobram por um assassino
morto por dois assassinos
por um memino morto
por dois cânceres
um em cada intestino
Os heróis?
Os heróis atuais morrem
por problemas
ainda mais mofinos
e banais.
Dobram por um assassino
morto por dois assassinos
por um memino morto
por dois cânceres
um em cada intestino
Os heróis?
Os heróis atuais morrem
por problemas
ainda mais mofinos
e banais.
Navio
Navio noturno
Navio soturno
Que de leste a oeste
Carregas a peste
A sorte aziaga
O cólera e a praga
Navio de terror
De fúria e estupor
Navio de dores
Navio de horrores
Navio de trevas
Por que não me levas?
Navio soturno
Que de leste a oeste
Carregas a peste
A sorte aziaga
O cólera e a praga
Navio de terror
De fúria e estupor
Navio de dores
Navio de horrores
Navio de trevas
Por que não me levas?
Tu pintas o mundo
Das tuas mãos
nascerem árvores e flores
são fenômenos
já mais
do que triviais
Crescem e florescem
em tuas telas
e vê-las é vê-las belas
tanto ou mais
do que as naturais
E o céu e o sol
e os pássaros também
em tuas telas se veem
tão vivos e normais
quanto os originais
Tu pintas o mundo
e os traços reais dele
e os teus virtuais
mais do que semelhantes
são traços iguais.
Aspiração
Tocar-te a mão, aquela em que guardas os pássaros, a noite, o sol, as sombras e as cores que colocas nas telas.
De sol e sorrisos
Naquela tarde, é possível que não te lembres (ou talvez nem tenhas notado) que foi um raiozinho moleque de sol que, fazendo cócegas em teus lábios, te levou afinal a sorrir, e eu, com a astúcia e a presunção dos enamorados, abri também imediatamente um sorriso para ti, como se estivesses respondendo a ele.
Infância
Sendo o único que podia estudar, pelas paupérrimas condições da família, recaiu sobre mim o fardo de ser extraordinário. Investido de seriedade, aos sete anos, no primário, eu já era um velhote. Tudo estudava, tudo queria aprender. Pensava no futuro, na vida adulta, e nem os consolos da poesia eu pude usufruir. Continuei assim na adolescência. As flores dos meus poemas já nasciam murchas, e o seu olor era o olor da naftalina.
Matrimônio
O amor no sentido antigo,
Com certidões e horário,
É punição, é castigo,
É um entulho autoritário.
Com certidões e horário,
É punição, é castigo,
É um entulho autoritário.
Fernanda Lima
Fernanda Lima não é
o fogo
é a faísca
que o anima
Fernanda Lima
é o centro
e também
a parte de baixo
e a de cima.
o fogo
é a faísca
que o anima
Fernanda Lima
é o centro
e também
a parte de baixo
e a de cima.
O que sentiria aquele
Aquele que se emociona quando, submergindo no mar, o sol vem dourar as ondas, o que sentiria se você aparecesse andando pela praia? Pediria decerto que a noite se atrasasse um pouco e segurasse por algum tempo as estrelas, para que tua beleza reinasse no glorioso fogo do crepúsculo.
Pompa
Uma folha desprendeu-se da árvore e esvoaçou diante de ti, acompanhou por uns instantes os teus passos e pediu de novo ao vento que a elevasse até a altura do teu rosto, mas teus olhos a ignoraram, como haviam ignorado aquela folha de caderno espiral que um garoto pôs timidamente na tua mão, numa distante manhã. Pensaste então, e pensas ainda, que à beleza somente se devem prestar reverências solenes.
Kama Sutra - DCXXXIII
Quando caminhas ao sol, talvez não as ouças, mas logo se põem a zumbir em torno de ti palavras como tâmara, cereja, pêssego, mel, ambrosia.
Quatro poemas de Paulo Leminski
"um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada
depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg
por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores."
***
"um poema
que não se entende
é digno de nota
a dignidade suprema
de um navio perdendo a rota."
***
"dois loucos no bairro
um passa os dias
chutando os postes para ver se acendem
o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco
todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também."
***
"eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito
eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões
em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois."
***
"en la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas."
(Do livro Toda poesia, publicado pela Companhia das Letras.)
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada
depois
a barra pesando
dava pra ser aí um rimbaud
um ungaretti um fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg
por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como a flores."
***
"um poema
que não se entende
é digno de nota
a dignidade suprema
de um navio perdendo a rota."
***
"dois loucos no bairro
um passa os dias
chutando os postes para ver se acendem
o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco
todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também."
***
"eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito
eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões
em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois."
***
"en la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas."
(Do livro Toda poesia, publicado pela Companhia das Letras.)
quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
Castigo
Se os brincos te caírem, não te curves para apanhá-los. Deixa que sofram o castigo de não ouvirem aquilo que o amor vier dizer-te.
Aspiração
Se um dia tuas unhas quiserem transformar-se em garras, que meu pescoço seja aquele mais próximo de ti, minha bela, e que macio tu possas achá-lo.
Fernanda Lima
Fernanda Lima é magia,
O poema da exatidão,
Os números da escansão
E a alma da geometria.
O poema da exatidão,
Os números da escansão
E a alma da geometria.
Objeto na cama
Ele tinha vestido já a roupa, quando a rameira lhe mostrou um objeto: "Você está esquecendo isto." Ele respondeu: "Ah, pode deixar aí. É só a minha alma."
Despojamento
A vida despojando nos vai
da linguagem
e seus ornamentos
das veadagens disfarçadas
em figuras de estilo
de tudo isso
e de tudo aquilo
que nada mais é
do que o viço
do postiço
Despindo-nos da pomposidade
a vida conduzindo nos vai
para a concisão
e a sobriedade
de um gemido
de um ai
para a exatidão
do haicai.
da linguagem
e seus ornamentos
das veadagens disfarçadas
em figuras de estilo
de tudo isso
e de tudo aquilo
que nada mais é
do que o viço
do postiço
Despindo-nos da pomposidade
a vida conduzindo nos vai
para a concisão
e a sobriedade
de um gemido
de um ai
para a exatidão
do haicai.
O barco
O amor é um barco altaneiro
Que pelo mar se aventura
Sem lastro e sem estrutura,
Sem mapa e sem timoneiro.
Que pelo mar se aventura
Sem lastro e sem estrutura,
Sem mapa e sem timoneiro.
Kama Sutra - DCXXXII
Lambisca-lhe o sal no desfiladeiro das tetas, nas bordas do umbigo, cada vez mais perto da fonte principal.
Três poemas de Paulo Leminski
"Gente que mantém
pássaros na gaiola
tem bom coração.
Os pássaros estão a salvo
de qualquer salvação."
***
"quem é vivo
aparece sempre
no momento errado
para dizer presente
onde não foi chamado."
***
"um dia desses quero ser
um grande poeta inglês
do século passado
dizer
ó céu ó mar ó clã ó destino
lutar na índia em 1866
e sumir num naufrágio clandestino."
(Do livro Toda poesia, publicado pela Companhia das Letras.)
pássaros na gaiola
tem bom coração.
Os pássaros estão a salvo
de qualquer salvação."
***
"quem é vivo
aparece sempre
no momento errado
para dizer presente
onde não foi chamado."
***
"um dia desses quero ser
um grande poeta inglês
do século passado
dizer
ó céu ó mar ó clã ó destino
lutar na índia em 1866
e sumir num naufrágio clandestino."
(Do livro Toda poesia, publicado pela Companhia das Letras.)
Kama Sutra - DCXXXI
Quando você pergunta com o pé como está a água do chuveiro, ela sempre se diz morna, porque anseia pelo instante em que você lhe oferecerá o caminho que começa em seus cabelos e por onde ela poderá descer suave.
Intuição
Se percebem que você sofre, seus lábios se abrem, ansiosos para beber a límpida água de sua alma.
Quarta-feira
Será mais um dia em que morreremos mais um pouco, jubilosos pela renovada ventura que é ir morrendo pelo amor.
Música
Se andas com a sandália pela sala, à tua passagem os ciscos se juntam e, pisados, gritam uma canção que celebra a tua beleza.
O gesto
Naqueles momentos em que você coça displicentemente a orelha, os pensadores e todos aqueles pretensiosos filósofos deveriam vê-la, para jamais repetirem esse gesto como se ele fizesse parte do ritual de quem está no caminho de decifrar um grande mistério da vida. Ele é um atributo da beleza e assim deve ser considerado.
Perguntas
Quando tu respondes a uma pergunta, as outras se alvoroçam, se oferecem, todas querendo ser respondidas por ti.
As duas faces do amor
Ontem flutuando no céu,
Hoje visitando o inferno,
Ontem um amigo terno,
Hoje um detestável réu.
Hoje visitando o inferno,
Ontem um amigo terno,
Hoje um detestável réu.
Seara
De tudo que cultivou,
A terra, a semente, o fruto,
De tudo em que se empenhou
Jamais gozou usufruto:
Seu sonho, sua plantação
Morreram podres no chão.
A terra, a semente, o fruto,
De tudo em que se empenhou
Jamais gozou usufruto:
Seu sonho, sua plantação
Morreram podres no chão.
Calafrios
Pior mesmo é a noite, quando
Os amorosos apelos
Rondando o sono e o violando
Viram torvos pesadelos.
Ainda hoje, de madrugada,
Ele se viu transformado
Num ogro vil, e a amada
Em um dragão afogueado.
Os amorosos apelos
Rondando o sono e o violando
Viram torvos pesadelos.
Ainda hoje, de madrugada,
Ele se viu transformado
Num ogro vil, e a amada
Em um dragão afogueado.
Ruínas
O corpo ainda anda, fala,
Parece que vivo está,
Mas anda com débeis passos
E fala com descompassos.
Já a alma saiu com a mala
E diz que não voltará.
Parece que vivo está,
Mas anda com débeis passos
E fala com descompassos.
Já a alma saiu com a mala
E diz que não voltará.
Acervo
De todo o amor, restou só
Um livro como lembrança.
O resto, o sonho, a esperança,
Virou cinza, nada, pó.
Um livro como lembrança.
O resto, o sonho, a esperança,
Virou cinza, nada, pó.
Faxina
Veio então o garrafeiro
E carregou sem cuidado
Um coração bom, inteiro,
Mas pelo amor rejeitado.
E carregou sem cuidado
Um coração bom, inteiro,
Mas pelo amor rejeitado.
Tantas viagens
De mim para ti, de ti
Para mim, quantas mensagens
Que leste e, ai de mim, que li,
Quantas palavras e imagens,
Quantas sonhadas paisagens
Que não viste, que não vi,
Quantas frustradas viagens,
Aqui, acolá ali.
Para mim, quantas mensagens
Que leste e, ai de mim, que li,
Quantas palavras e imagens,
Quantas sonhadas paisagens
Que não viste, que não vi,
Quantas frustradas viagens,
Aqui, acolá ali.
Um poema de Lawrence Ferlinghetti
"Ela adorava colher as flores
cheirar as frutas
E as folhas lhe falavam de amor
Mas uns marujos já de porre
penetraram no sono dela
semeando sêmen
na paisagem virgem
Numa certa idade
seu coração pegou a olhar
as margens perdidas
E ouviu passarinhos verdes cantando
lá do outro lado do silêncio."
(Tradução de Leonardo Fróes, extraído de Um parque de diversões da cabeça, publicado pela L&PM.)
cheirar as frutas
E as folhas lhe falavam de amor
Mas uns marujos já de porre
penetraram no sono dela
semeando sêmen
na paisagem virgem
Numa certa idade
seu coração pegou a olhar
as margens perdidas
E ouviu passarinhos verdes cantando
lá do outro lado do silêncio."
(Tradução de Leonardo Fróes, extraído de Um parque de diversões da cabeça, publicado pela L&PM.)
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
O livro
Passou a fechar a janela mais cedo, porque os últimos raios do sol da tarde, quando se deitavam na estante, se detinham por um doloroso instante num livro cujas páginas haviam sido folheadas por certa mão que um dia ele tivera entre as dele.
Na real
Saiu do amor como entrou:
Ingênuo, inábil, tristonho.
Tudo que buscou no sonho
Murchou, feneceu, gorou.
Ingênuo, inábil, tristonho.
Tudo que buscou no sonho
Murchou, feneceu, gorou.
Para os quintos
Se apenas o que consegue
É ferir o coração,
Que a paixão se dane então
E ao diabo vá que a carregue.
É ferir o coração,
Que a paixão se dane então
E ao diabo vá que a carregue.
Kama Sutra - DCXXX
Sentiu-se tão fraco, tão covarde diante da mulher que o examinava com olhos de luxúria, que no cérebro não se formaram imagens voluptuosas, nem itinerários de língua e boca, nem entrelaçamentos de corpo, mas só uma lembrança muito antiga e triste na qual ele, menino, ardia de febre e excitação pela antecipada culpa de furtar na escola o lápis de uma menina tola.
Princesinha receosa
Por ter medo do escuro
minha princesa adorada
só dorme de luz acesa
e porta trancada
Que no quarto
de madrugada
não vá entrar
um anão perverso
ou então uma bruxa
fantasiada de luar
Mas se ao quarto chegar
um pirata
com sua espada de prata
seu bigode lustroso
seu sovaco oloroso
a história pode mudar.
minha princesa adorada
só dorme de luz acesa
e porta trancada
Que no quarto
de madrugada
não vá entrar
um anão perverso
ou então uma bruxa
fantasiada de luar
Mas se ao quarto chegar
um pirata
com sua espada de prata
seu bigode lustroso
seu sovaco oloroso
a história pode mudar.
Um trecho de J.M. Coetzee
"Dançar só faz sentido quando a dança é interpretada como outra coisa, outra coisa que a pessoa prefere não admitir. Essa outra coisa é a coisa real: a dança é apenas uma cobertura. Convidar uma garota para dançar representa convidá-la para ter uma relação; aceitar o convite representa concordar em ter uma relação; e dançar é a mímica e o presságio da relação. Tão óbvias são as correspondências que ele se surpreende de as pessoas se darem o trabalho de dançar afinal. Por que vestir-se, por que os movimentos rituais; por que essa grande farsa?"
(De Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)
(De Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)
Kama Sutra - DCXXIX
Quando ela tirou os sapatos, e em seguida as meias, com movimentos lentos, e depois, com os olhos sonolentos, puxou do cabelo os ornamentos, e abriu a blusa, e escaparam os seios opulentos, não pensava em nada, a não ser talvez em se embrenhar em sonhos neblinosos, nevoentos, mas havia no homem que a observava um sentimento de posse, um tormento, um momento de lobo faminto que espreita, uma aflição, um estremecimento.
Sinopse
De tudo que foi vivido,
De todo o amor malogrado,
De tudo que foi sofrido,
De tudo que foi chorado,
Ficou um livro na estante
E a tristíssima memória
De um sorriso, de um instante,
Que nem chega a ser história.
De todo o amor malogrado,
De tudo que foi sofrido,
De tudo que foi chorado,
Ficou um livro na estante
E a tristíssima memória
De um sorriso, de um instante,
Que nem chega a ser história.
Exposição de motivos
Existe alguma razão,
Algum motivo haverá
Para que o sim vire não?
Um dia você dirá,
E sem tergiversação,
O que houve, o que foi, o que há?
Dezembro
Lembro-me de tudo, até
(Lembra?) daquela migalha
Que deslizou na toalha
Na mesinha do café.
(Lembra?) daquela migalha
Que deslizou na toalha
Na mesinha do café.
Missão
Para quê eu viveria,
Lhe pergunto, se não for
Para celebrar o amor,
Seu mel, seu fel, sua magia?
Lhe pergunto, se não for
Para celebrar o amor,
Seu mel, seu fel, sua magia?
Cota-parte
Sei bem qual é meu quinhão.
Dos prêmios sempre o menor,
Dos males sempre o pior,
Das culpas a danação.
Dos prêmios sempre o menor,
Dos males sempre o pior,
Das culpas a danação.
Na mosca
Meu filho Edu, quando tinha uns oito anos, criou uma expressão que ainda hoje acho admirável. Vendo uma cena de amor numa novela, ficou aflito. Disse que estava sentindo raiva no pinto.
Um trecho de Zhang Xianliang
"Aquela foi a primeira vez na vida em que uma mulher me lavou. Tudo o que aconteceu naquela noite, aconteceu pela primeira vez, é claro. Tentei esconder minha confusão com humor e tolerância, usando tudo o que minha mãe tinha me ensinado para entrar na alta sociedade.
Completamente nu, enfrentei uma pessoa estranha também completamente nua. Sim, o detalhe importante é que ela era uma estranha. Usou um sabonete cheiroso para ensaboar e esfregar meu corpo. A água estava quente, mas eu não senti calor nas mãos do passarinho. Minha única sensação era que estava sendo tratado como um objeto, mesmo antes que eu a tratasse assim.
Ela estava particularmente interessada em lavar aquele lugar com um líquido que não era sabão. Concentrava-se tanto nisso como uma mulher extremamente higiênica limpando seus pauzinhos antes de comer em um restaurante barato.
Senti-me idiota e desajeitado; ai não havia lugar para pôr à prova todo o meu conhecimento substancial da arte de seduzir."
(Do romance Acostumado a morrer, tradução de Vera Maria Whately, publicado pela Editora Best Seller.)
Completamente nu, enfrentei uma pessoa estranha também completamente nua. Sim, o detalhe importante é que ela era uma estranha. Usou um sabonete cheiroso para ensaboar e esfregar meu corpo. A água estava quente, mas eu não senti calor nas mãos do passarinho. Minha única sensação era que estava sendo tratado como um objeto, mesmo antes que eu a tratasse assim.
Ela estava particularmente interessada em lavar aquele lugar com um líquido que não era sabão. Concentrava-se tanto nisso como uma mulher extremamente higiênica limpando seus pauzinhos antes de comer em um restaurante barato.
Senti-me idiota e desajeitado; ai não havia lugar para pôr à prova todo o meu conhecimento substancial da arte de seduzir."
(Do romance Acostumado a morrer, tradução de Vera Maria Whately, publicado pela Editora Best Seller.)
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
Tanka
Meu parco pomar de
Quimeras, que seara esperas
Se o sol já não arde?
A sorte destruiu a lida
E a vida constrói a morte.
Quimeras, que seara esperas
Se o sol já não arde?
A sorte destruiu a lida
E a vida constrói a morte.
Foi assim
Pois é, foi belo, foi lindo,
Como um sol de primavera.
Pois é, mas não era infindo,
Pois é, foi lindo, já era.
Como um sol de primavera.
Pois é, mas não era infindo,
Pois é, foi lindo, já era.
A pergunta
Se alguém - amigo ou amada -
Influi assim no teu dia
E dita a dor e a alegria,
Me diz: o que vales? Nada.
Influi assim no teu dia
E dita a dor e a alegria,
Me diz: o que vales? Nada.
Estadão (segundos clichês)
Havia os segundos clichês, e às vezes os terceiros, sempre dispostos a servir como álibis para as nossas incursões pelos dancings das madrugadas. Eram mais simples os pecados, mais poéticos, e os perdões, que ainda não eram metidos a besta, não se faziam esperar.
Estadão (Edu, Walmir)
Saudade do tempo em que Eduardo Martins e Walmir Venturini punham as vírgulas e as crases de castigo num canto da redação.
Kama Sutra - DCXXVIII
Ele nunca perguntou por que, desde a primeira vez, nos momentos de sexo mais desvairado, ela, entre as obscenidades que berra, de repente se inteiriça e diz dolorosamente, quase religiosamente, ai Luana, ai Luana, antes de se desmanchar sobre ele como uma onda apaziguada.
Kama Sutra - DCXXVII
Por algum tempo ainda, enquanto o sexo atiçar a carne, manterão a linguagem amorosa. Está longe o dia em que começarão a ter vergonha das mensagens nas quais, marcando encontros noturnos, ele, metafórico, diz que o joãozinho dele está gotejando de saudade e pergunta se a maricotinha dela poderia permitir-lhe uma visita, ainda que rápida.
Bentinho e Capitu
Os leitores modernos tendem cada vez mais a condenar Bentinho e absolver Capitu - um pouco pela antipatia com que o casamento tradicional é encarado hoje, outro tanto pela antipatia que Bentinho em cada instante parece reivindicar com exclusividade para si. Por mim, quero crer que Capitu traiu Bentinho. Se não o fez, agiu (ou deixou de agir) muito mal.
Fundo e forma
A preocupação com a forma, numa novela ou num romance, há de ser comedida, para que o conteúdo não se confunda com ela. Na poesia, se a substância e a forma forem uma só, esse aparente pecado pode ser sua maior virtude. Num poema, a uma rosa convém ser só a imagem de uma rosa - melhor, a imagem de sua sombra.
Um trecho de Oscar Wilde
"Um anel de ouro e uma pomba branca como o leite são os gratos presentes para ti; e depois, uma corda de cânhamo para pendurar teu amor de uma árvore.
Para ti uma casa de marfim (as rosas branqueiam no roseiral). Um estreito leito para me deitar (branca, oh! quão branca é a flor da cicuta!)
Mirto e jasmim para ti! (Oh, como é bela a visão da rosa vermelha!) Para mim, o cipreste e a arruda! (o mais belo de todos é o alecrim!)
Para ti, três amantes que aspiram à tua mão! (A erva verdeja onde um morto repousa.) Para mim, três passos na areia! (plantai lírios sobre a minha cabeça).
(De Obra completa, tradução de Oscar Mendes, publicação da Editora Jose Aguilar.)
Para ti uma casa de marfim (as rosas branqueiam no roseiral). Um estreito leito para me deitar (branca, oh! quão branca é a flor da cicuta!)
Mirto e jasmim para ti! (Oh, como é bela a visão da rosa vermelha!) Para mim, o cipreste e a arruda! (o mais belo de todos é o alecrim!)
Para ti, três amantes que aspiram à tua mão! (A erva verdeja onde um morto repousa.) Para mim, três passos na areia! (plantai lírios sobre a minha cabeça).
(De Obra completa, tradução de Oscar Mendes, publicação da Editora Jose Aguilar.)
O sinal
No peito dele o amor imprimiu um sinal gracioso, que ora parece um morango, ora um coração flechado. Em certas ocasiões, principalmente às sextas-feiras, a pequena marca avoluma-se, assume o tamanho de uma ferida peluda e o faz uivar à meia-noite, enquanto todos os ferrolhos da vizinhança são reforçados e os cachorros, esquecendo-se de suas desavenças com os gatos da casa, vão dormir na cama da dona.
Previsão
Engoliremos mais esta segunda-feira, com casca e tudo, e agradeceremos mais uma vez pelo alimento, disfarçando as eructações e os engulhos, para que não nos chamem de mal-agradecidos.
Quem?
Alguém perguntou como ia
A vida, e ele num lampejo
Respondeu que não sabia:
"Faz tempo que não a vejo."
A vida, e ele num lampejo
Respondeu que não sabia:
"Faz tempo que não a vejo."
B.O.
Com o poeta foi encontrado
Um bloco, uma intimação,
E também um coração,
Porém em péssimo estado.
Um bloco, uma intimação,
E também um coração,
Porém em péssimo estado.
Arrependimento
Não tem nenhum sentimento cristão. Arrepende-se, agora que nada mais adianta, de não ter ferido mais, de não ter sido sacana e sórdido, ao menos para justificar, em relação aos outros, sua condição de semelhante.
Ainda
Em mim, porém, ainda vive
E mais forte, muito mais,
Aquilo que um dia tive
E que não terei jamais.
E mais forte, muito mais,
Aquilo que um dia tive
E que não terei jamais.
Recado
Aqui tudo bem, em calma.
Só uma coisa ocorreu:
Minha pobre alma morreu.
Mas quem se importa com a alma?
Só uma coisa ocorreu:
Minha pobre alma morreu.
Mas quem se importa com a alma?
Quadrinha
E os pássaros nos dirão
Bom dia quando passarmos
E boa tarde ao voltarmos,
Quando vier o verão.
Bom dia quando passarmos
E boa tarde ao voltarmos,
Quando vier o verão.
Sinceridade
Deu-me na veneta ser sincero agora, no fim da vida, quando cada frase pode significar um a menos para carregar o caixão.
Segunda-feira
Acordei como dormi.
Ontem doente me deitei
E a morte a Deus implorei.
Ele falhou, não morri.
Ontem doente me deitei
E a morte a Deus implorei.
Ele falhou, não morri.
Pódio
Tudo bem, Rubem Braga é Rubem Braga, não há como nem por que mudar isso. Mas Paulo Mendes Campos, Paulo Mendes Campos...
Schumacher
Já nos esquecemos dele. É normal. A vida é breve e mal temos tempo de pensar em nós. Daqui a seis meses ou um ano, se ainda lhe citarem o nome, nos perguntaremos: afinal, o que foi que aconteceu mesmo com ele?
Uma frase de Paulo Mendes Campos
"Anchieta, com aquela mania de fazer literatura na areia, não encontrou editor."
(Do livro O mais estranho dos países, publicado pela Companhia das Letras.)
(Do livro O mais estranho dos países, publicado pela Companhia das Letras.)
domingo, 26 de janeiro de 2014
A pasta
Alguns e-mails, alguns versos
Que o teu amor me soprou,
Mensagens, papéis diversos,
Foi tudo que me ficou.
Meus cacos, todos dispersos,
O vento veio e levou.
Que o teu amor me soprou,
Mensagens, papéis diversos,
Foi tudo que me ficou.
Meus cacos, todos dispersos,
O vento veio e levou.
Astúcia
Tudo já foi escrito: o melhor, o pior. Fingimos não saber disso, para poupar nossas mãos da enxada.
O que sou
Sou filho da puta, nojento, abjeto, desprezível. A única diferença, para os outros, é que ninguém precisa vir me dizer isso.
Nosso papel
Os outros podem ser puxa-sacos, venais, sórdidos, asquerosos. Nós devemos aceitar tudo, submeter-nos, renunciar. É o que se espera de nós. Lemos o nosso papel. Para nós, vale o que está escrito. Confiamos nas palavras. Nossa desgraça foi sempre essa.
Sentimentos
Ressentimento e rancor podem não ser sentimentos simpáticos, mas a boa literatura terá sempre melhores aliados, neles, que no conformismo e na resignação.
Protocolo
O domingo não é um dia sério para alguém subir numa escada e testar a resistência de uma corda.
O êxtase
Uma súbita cintilação nos dentes dela fez o homem se arrepiar, como se repentinamente o possuísse a ancestral reminiscência de um mártir entregando a alma em êxtase, num banquete de mulheres canibais.
Vestígios do primeiro encontro
Tão encantados e aéreos ficaram com o encontro inicial que, depois de cinco horas e meia de uma empolgada conversa num café, cada um chegou à sua casa com a primeira troca significativa entre os dois: ele com uma sombrinha cor-de-rosa, ela com um guarda-chuva sombrio como um corvo, com uma asa quebrada.
Um teto todo meu
Que bom ter este blog, um espaço em que posso, sem dissidências, declarar-me exatamente como sou: imundo, reles, podre.
Os instrumentos
Temos tudo à mão: a faca, a lâmina, o veneno, o revólver. Se não quisermos macular a casa, há cem viadutos à nossa disposição na cidade. O que estamos esperando? Sempre, sempre, sempre, o que irão pensar de nós. Como se alguém se importasse com isso.
Cotação do dia
Tão ridículo tudo isso, tão patético. Por que continuar? Somos por acaso guerreiros? Que glórias podemos ainda almejar? Deus, tão difícil é este domingo. Deus, não vês?
Quando,
depois do sucesso da crônica de estreia, o escritor bissexto enviou a segunda, descobriu que não só não havia mais espaço para crônicas no jornal, como nem jornal mais havia. "Pobres leitores", ele resmungou, sentindo uma daquelas compaixões que só os grandes artistas aprenderam a sentir pelos que sofrem neste vale de lágrimas.
Que nos deem
Que tenhamos sempre o direito de ser ressentidos e rancorosos. Os ressentidos e rancorosos são a melhor prova de triunfo para os vencedores. Vitórias que não incomodam não valem o nome.
Se um escritor
Se um escritor se retira por cinco anos para trabalhar em um romance e não sai do retiro com traços de loucura, se não babar na barba, é um direito dos leitores considerá-lo um farsante. Se, lidas as primeiras dez páginas, não lembrar Joyce ou Dostoiévski, considerá-lo um farsante já passa de direito a dever.
Os escritores bissextos
Os escritores bissextos sempre foram acolhidos com entusiasmo pelo público. O raciocínio é simples: se, escrevendo apenas quando a genialidade exige deles esse sacrifício, fazem textos tão esplêndidos, imagine-se o que fariam se se dedicassem à escrita com alguma regularidade. Escrever com regularidade dá a impressão de ser, para esses escritores ocasionais, algo vergonhoso, coisa de profissionais, de quem precisa ganhar dinheiro para viver. Os bissextos estão sempre esperando o momento em que a inspiração baixar inapelavelmente sobre eles, de tal forma que eles se sintam porta-vozes autorizados da Beleza. Os escritores bissextos são os únicos que podem dizer, com enfado: "Fui escritor de abril de 2002 a julho de 2007. Se surgir algo que me mereça, talvez eu pense na possibilidade de voltar à ativa. Não tenho nada contra a literatura."
Conselho
Se posso recomendar alguma coisa aos jovens escritores é que, se tiverem coluna de crônica em revista ou jornal, só esporadicamente enviem seus textos (na proporção de um para cada dez esperados). Guardem-se para as chamadas obras de fôlego, os romances. Os leitores hoje privados das crônicas serão recompensados, daqui a três ou quatro anos, com duas páginas de apreciação crítica sobre a notável obra que a energia economizada terá produzido. Duzentas crônicas não valem um romance.
Suplemento especial
Os amigos são sempre os primeiros a perceber que nós já não escrevemos tão bem quanto por algum tempo eles imaginaram.
Já fizemos por merecer...
... que nos levem para a Paulista no dia da malhação de Judas e que, de um helicóptero festivamente decorado, a loira que estiver na moda, na ocasião, abra suas generosas pernas e lance sobre nós seu ouro morno, ao som de uma marchinha bem muxibenta.
A poesia
A poesia há de ser em nós um castigo, nunca um prêmio. Há de nos doer, machucar, afligir. Nós a extrairemos de nós dolorosamente, como se fosse um pássaro entalado na garganta. Por ela nós nunca receberemos prêmios, nem condecorações. Nela sempre haverá um deslize a ser apontado, uma nódoa, uma irremovível mácula. Ela nos humilhará, nos marcará por várias gerações, será sempre um convite para que nos levem à Sé e urinem em nós de alto a baixo. Ela será sempre danação, nunca alívio, e por causa dela, daqui a vinte, trinta, cinquenta anos, algum garoto de escola será ridicularizado porque alguém dirá: "Esse aí é descendente daquele imbecil, aquele."
No asilo
Morrerá pelo menos um de nós por mês, como se fosse uma novela de Agatha Christie. A cada nova morte nos apalparemos, com a tristeza lenta dos excluídos.
Da desagradável tarefa que incumbe à Morte
Que prazer terá a Morte, quando nos colher? Tapará certamente as narinas. Flores velhas cheiram a estrume.
No asilo
Os passos serão trôpegos, os olhos ficarão baços, os ouvidos moucos, e dos desejos - poucos - não constarão nem o amor nem a poesia, mas prosaísmos como uma sopinha quente, um bom chá ou um cobertor felpudo. Existirá um inverno para cada mês, uma impossibilidade para cada músculo, uma dor para cada osso, e não haverá mais encanto, nem desencanto, porque a memória já nos terá abandonado, e nos recordaremos talvez apenas do nosso nome, mas nem sempre, e esperaremos vagamente algo que, quando vier, será tão importante quanto uma folha se desprendendo de uma árvore.
Carrossel
Aquele momento, aquele, tu pedirás, e a memória benevolente trará de volta aquela manhã, e a viverás de novo, de novo, de novo, porque naquela manhã descobriste que viver era simples como jamais havias imaginado e que o segredo de tudo consistia apenas em estar vivo, estar vivo, estar vivo, como naquele momento estiveste.
Sonetinho do que restou da vida
Não temos nada a fazer.
Lutamos muito, perdemos,
Vivemos muito, sofremos,
Nos resta apenas morrer.
Nos contentemos em ter
Se não o que pretendemos,
Se não o que merecemos,
O que pudemos colher.
É pouca coisa, talvez,
Para quem fez o que fez
Pensando em tudo ganhar.
Mas está ditada a sorte,
Lutar não adianta. A morte
Ninguém pode conquistar.
Lutamos muito, perdemos,
Vivemos muito, sofremos,
Nos resta apenas morrer.
Nos contentemos em ter
Se não o que pretendemos,
Se não o que merecemos,
O que pudemos colher.
É pouca coisa, talvez,
Para quem fez o que fez
Pensando em tudo ganhar.
Mas está ditada a sorte,
Lutar não adianta. A morte
Ninguém pode conquistar.
Estatística
A vida tem cem atalhos,
Escolha o que lhe convém.
Noventa deles são falhos
E os outros dez são também.
Escolha o que lhe convém.
Noventa deles são falhos
E os outros dez são também.
Pensamentos
Todo pensamento que não é voltado à arte da sobrevivência é um pensamento inútil. Todo pensamento que é voltado à sobrevivência é um pensamento egoísta.
São Paulo
Algumas das birras que me indispõem com São Paulo talvez se devam ao seu nome, tão futebolisticamente inadequado.
Um parágrafo de Paulo Mendes Campos
"No momento em que se fechava para sempre o caixão com o corpo de James Joyce, sua mulher debruçou-se sobre o cadáver exclamando esta coisa fortemente ovalliana: 'Jim! How beautiful you are!'"
(De Crônicas e perfis, publicado pela Companhia das Letras.)
(De Crônicas e perfis, publicado pela Companhia das Letras.)
sábado, 25 de janeiro de 2014
Os restos do amor (versão final)
Do que respingou nas toalhas,
Do que ficou sob as mesas,
Das carnes, das sobremesas,
O amor recolhe as migalhas.
Do pão cuspido nas palhas,
Das maçãs e das framboesas
Mordidas sem sutilezas,
O amor resgata as rapalhas.
Amor, que praga rogaram,
Que maldição te lançaram,
Que te fizeram, amigo?
Para a fartura nasceste
E na opulência cresceste,
Mas morres como um mendigo.
Do que ficou sob as mesas,
Das carnes, das sobremesas,
O amor recolhe as migalhas.
Do pão cuspido nas palhas,
Das maçãs e das framboesas
Mordidas sem sutilezas,
O amor resgata as rapalhas.
Amor, que praga rogaram,
Que maldição te lançaram,
Que te fizeram, amigo?
Para a fartura nasceste
E na opulência cresceste,
Mas morres como um mendigo.
De como os deuses lidam conosco
Os deuses brincam conosco
a mão na bunda nos passam
nos põem de quatro
nos traçam
As deusas porém
não querem nada conosco
do nosso assédio reclamam
de frouxos nos chamam
de bonecos desengonçados
e quando se dão
aos deuses se dão
em touros transformados
e em portentosos jegues.
a mão na bunda nos passam
nos põem de quatro
nos traçam
As deusas porém
não querem nada conosco
do nosso assédio reclamam
de frouxos nos chamam
de bonecos desengonçados
e quando se dão
aos deuses se dão
em touros transformados
e em portentosos jegues.
Hole in one
Logo o amor se revela
um embuste
uma conveniência
um mero ajuste
de tacos
bolas e buracos.
um embuste
uma conveniência
um mero ajuste
de tacos
bolas e buracos.
Em Kafka
O que aterroriza, em Kafka, não é o insólito que há nele. É o que há de comum em seu insólito.
Um trecho de W.J. Solha
"Segundo o sertanejo escolado,
porém,
Deus já fez o céu bem alto,
foi pra viver sossegado.
E a verdade,
nua
e crua, é que
a Terra,
vista da Lua,
não tem trovões,
furacões,
raios, vulcões,
nem canhões."
(Do livro Marco do mundo, publicado pela Ideia.)
porém,
Deus já fez o céu bem alto,
foi pra viver sossegado.
E a verdade,
nua
e crua, é que
a Terra,
vista da Lua,
não tem trovões,
furacões,
raios, vulcões,
nem canhões."
(Do livro Marco do mundo, publicado pela Ideia.)
Soneto do esquecimento (versão final)
Talvez não lembres mais, eu não esqueço,
Aquela madrugada longe e fria
Em que pagaste nua o amargo preço
De tua ingênua e pobre fantasia.
Talvez não lembres mais, nem eu mereço,
Mas penetrara o quarto a luz do dia
Quando caiu teu último adereço
E se desfez a tua teimosia.
Talvez não lembres mais que nesse quarto
As reservas antigas olvidaste
E o teu amor me deste pleno e farto.
Talvez nem lembres que te prometi
A constância que então me suplicaste,
Talvez nem lembres mais que me esqueci.
Aquela madrugada longe e fria
Em que pagaste nua o amargo preço
De tua ingênua e pobre fantasia.
Talvez não lembres mais, nem eu mereço,
Mas penetrara o quarto a luz do dia
Quando caiu teu último adereço
E se desfez a tua teimosia.
Talvez não lembres mais que nesse quarto
As reservas antigas olvidaste
E o teu amor me deste pleno e farto.
Talvez nem lembres que te prometi
A constância que então me suplicaste,
Talvez nem lembres mais que me esqueci.
Soneto do sonho e do castelo
Sonha, se tua realidade é triste.
Sonha, que o sonho ao menos pode dar,
A quem sofre, a ilusão de acreditar
Que é verdade o que só no sonho existe.
Sonha, e mesmo o que nunca, nunca viste,
Nem pensaste sem logo duvidar,
Tudo terás, real, a fulgurar
No remanso ideal que construíste.
Sonha, e tudo que sonhes de mais belo,
Abriga em teu intrépido castelo
Que a ventania arrojará ao chão.
Que importa? Apenas te acharás tristonho
Até que eterno sonhes novo sonho,
Eterno até o novo furacão...
Sonha, que o sonho ao menos pode dar,
A quem sofre, a ilusão de acreditar
Que é verdade o que só no sonho existe.
Sonha, e mesmo o que nunca, nunca viste,
Nem pensaste sem logo duvidar,
Tudo terás, real, a fulgurar
No remanso ideal que construíste.
Sonha, e tudo que sonhes de mais belo,
Abriga em teu intrépido castelo
Que a ventania arrojará ao chão.
Que importa? Apenas te acharás tristonho
Até que eterno sonhes novo sonho,
Eterno até o novo furacão...
Soneto da mãe em seu sono eterno
Quando, na densa noite sufocados,
Meu quarto e seu infante mundo se iam
Esboroando em pavor, que verdes prados
Os teus lábios de santa mãe diziam!
Que riachos esplêndidos fluíam
Dos montes de brancura aureolados!
E as ovelhas, alvíssimas, pasciam,
Embalando meus olhos fatigados.
Hoje, que já meus prados não florescem
E turvas águas correm malfazejas,
E o céu pesado nuvens escurecem,
Possam estar, lá onde tu estejas,
Floridos, límpidas, e o céu tão terno
Quanto as ovelhas em teu sono eterno.
Meu quarto e seu infante mundo se iam
Esboroando em pavor, que verdes prados
Os teus lábios de santa mãe diziam!
Que riachos esplêndidos fluíam
Dos montes de brancura aureolados!
E as ovelhas, alvíssimas, pasciam,
Embalando meus olhos fatigados.
Hoje, que já meus prados não florescem
E turvas águas correm malfazejas,
E o céu pesado nuvens escurecem,
Possam estar, lá onde tu estejas,
Floridos, límpidas, e o céu tão terno
Quanto as ovelhas em teu sono eterno.
Tanka
Ai, que rodopia
Qual laço em alheio braço
De dúbia mestria
Meu ser e o seu sentimento
Nevoento de se abranger.
Qual laço em alheio braço
De dúbia mestria
Meu ser e o seu sentimento
Nevoento de se abranger.
Tanka
Manhã, novamente
Eu vim da noite sem mim,
Tão outro, tão doente.
Manhã, não chova, sorria,
Meu dia nasce amanhã.
Eu vim da noite sem mim,
Tão outro, tão doente.
Manhã, não chova, sorria,
Meu dia nasce amanhã.
Bordados
Literatura, propriamente, não consegui fazer. Fiz umas quadrinhas graciosas, uns sonetaços retumbantes, quinquilharias de quem levava jeito para a coisa, como bem notou minha primeira professora de português.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
Tanka
Na noite cerrada
Tombou a borrasca, e estou
Só, na encruzilhada.
A vida me deu um coice
E foi-se, rompendo a brida.
Tombou a borrasca, e estou
Só, na encruzilhada.
A vida me deu um coice
E foi-se, rompendo a brida.
Soneto - Mare vitae (versão final)
Há quanto tempo o mar que chamam vida,
Raivoso, sem alívio ou remissão,
Arroja minha frágil nau vencida
Às tristes praias da desolação.
Há quanto tempo este desejo vão
De calma, de consolo, de guarida,
Ou desvia imprevisto furacão
Ou torce tempestade impressentida.
E sempre novos portos, nova gente.
Mas eu, que a sorte com ninguém reparto,
Prossigo nesta intérmina jornada
Em busca de algo, pois não tenho nada:
Nem peito, quando chego, que me aquente,
Nem lenço que me acene, quando parto.
Tanca
Um pássaro, ou era
Somente a ternura ausente
Que súbito viera?
Um trino, ou só a ilusão
Com a mão além, no violino?
Somente a ternura ausente
Que súbito viera?
Um trino, ou só a ilusão
Com a mão além, no violino?
Tanka (*) (**)
Na areia inconstante,
Com fito vão de infinito
E traço hesitante,
Semeou meu dedo teu nome,
Que a fome do mar levou.
(*) Sempre julguei, nos quatro ou cinco anos deste blog, ser óbvio que os textos aqui publicados, quando não tiverem o nome do autor, são de minha autoria. Como, porém, nos últimos dias tenho tido a identidade sob suspeita, precisando provar a todo instante que não sou um robô, declaro isso expressamente.
(**) Como me doeria ver aquele asterisco sozinho, inseri estes dois para explicar, a quem não saiba, que esta forma de tanka, aportuguesada, é, nos três versos, iniciais, como um haicai: o primeiro verso rima com o terceiro (no caso, "inconstante" com "hesitante"). Ambos têm cinco sílabas poéticas. O segundo verso, de sete sílabas, poéticas, tem uma rima interna. No caso desta tanka, "fito" rima com "infinito". O quarto e o quinto versos, de sete sílabas poéticas, rimam da seguinte forma: a segunda sílaba do quarto com a sétima do quinto (no caso, "semeou" com "levou") e a sétima sílaba do quarto com a segunda do quinto ("nome" com "fome").
Com fito vão de infinito
E traço hesitante,
Semeou meu dedo teu nome,
Que a fome do mar levou.
(*) Sempre julguei, nos quatro ou cinco anos deste blog, ser óbvio que os textos aqui publicados, quando não tiverem o nome do autor, são de minha autoria. Como, porém, nos últimos dias tenho tido a identidade sob suspeita, precisando provar a todo instante que não sou um robô, declaro isso expressamente.
(**) Como me doeria ver aquele asterisco sozinho, inseri estes dois para explicar, a quem não saiba, que esta forma de tanka, aportuguesada, é, nos três versos, iniciais, como um haicai: o primeiro verso rima com o terceiro (no caso, "inconstante" com "hesitante"). Ambos têm cinco sílabas poéticas. O segundo verso, de sete sílabas, poéticas, tem uma rima interna. No caso desta tanka, "fito" rima com "infinito". O quarto e o quinto versos, de sete sílabas poéticas, rimam da seguinte forma: a segunda sílaba do quarto com a sétima do quinto (no caso, "semeou" com "levou") e a sétima sílaba do quarto com a segunda do quinto ("nome" com "fome").
Tanka
Constrange ver, tanto
Mudou o amor que empolgou
Teu ser, que hoje, enquanto
Definha a tua certeza,
Acesa mantenho a minha.
Mudou o amor que empolgou
Teu ser, que hoje, enquanto
Definha a tua certeza,
Acesa mantenho a minha.
Fernando e Ofélia
Pego no Centro Cultural Vergueiro um precioso livro (publicado pela Ática portuguesa) que reúne as cartas de Fernando Pessoa à amada Ofélia e vejo que um cretino qualquer assinalou, com tinta, todos os advérbios. Naturalmente, logo teremos nas livrarias um estudo sobre as deficiências vocabulares de Pessoa... Incrível o prazer que sentem certos tipos de ficar apontando "pecados" de gênios da literatura. Na revisão do Estado contava-se a história de um candidato a emprego que, estando suspensos os testes de admissão, aborreceu por tantos dias o chefe que este lhe passou enfim um texto para corrigir. Uma hora e meia depois, ele devolveu a folha, toda rabiscada. O chefe ergueu a folha e a mostrou aos revisores: "Olhem só o que este gênio aqui acaba de fazer com o Eça de Queirós." Lembrei-me dos críticos de Camões, apontando-lhe o cacófato no soneto "Alma minha gentil que te partiste". Haja!
Trovinha para espantar anunciantes
Toda esta desgraça minha
Nasceu no ano de 38
Num destrambelhado coito
Sem o uso de camisinha.
Minha mãe, uma gracinha,
Deixou que meu pai, afoito,
Molhasse nela o biscoito
Chamando-a de queridinha.
No amor assim concebido
Sou pelo amor perseguido
Desde o meu primeiro dia.
Naquela data distante
Não era o casal amante,
Era eu quem mais se fodia.
Nasceu no ano de 38
Num destrambelhado coito
Sem o uso de camisinha.
Minha mãe, uma gracinha,
Deixou que meu pai, afoito,
Molhasse nela o biscoito
Chamando-a de queridinha.
No amor assim concebido
Sou pelo amor perseguido
Desde o meu primeiro dia.
Naquela data distante
Não era o casal amante,
Era eu quem mais se fodia.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
Há um momento em que...
... o escritor há de ter o bom-senso de simplesmente parar de escrever e voltar a ser o que era no início: um leitor. A literatura agradece.
Pela primeira vez na vida,
e pela última, ele está em uma posição de ampla superioridade. Com o pescoço pendurado na corda, faz com que todos o respeitem, enfim, e recuem dois passos. Pena que não possa desfrutar tudo isso. Mas a língua, involuntariamente de fora, diz tudo por ele. Tomara que alguém tire uma foto.
Falso verde
Teu tempo passou como um rio. Flui já para a foz e para o esquecimento, mas os teus olhos, acumpliciados com a memória, fixam-se ainda nas já amareladas árvores da nascente e teimam em ver nelas o verdor de outrora.
Soneto da senectude
Era um navio imponente,
O melhor entre os seus pares,
E que, aos anos resistente,
Navegava os sete mares.
Nem tsunamis nem tufões
Que os oceanos açoitavam,
Nem pestes nem destruições
Do seu roteiro o desviavam.
Sem nenhum medo da morte,
Foi sempre a vida seu norte
E a ela sempre se lançou.
Aos poucos, tudo mudou
E hoje é uma simplória nau,
Com a bandeira a meio pau.
O melhor entre os seus pares,
E que, aos anos resistente,
Navegava os sete mares.
Nem tsunamis nem tufões
Que os oceanos açoitavam,
Nem pestes nem destruições
Do seu roteiro o desviavam.
Sem nenhum medo da morte,
Foi sempre a vida seu norte
E a ela sempre se lançou.
Aos poucos, tudo mudou
E hoje é uma simplória nau,
Com a bandeira a meio pau.
Erro de avaliação
Penso, às vezes, que a pureza que eu via em ti não passava de um fruto de minha imaginação. Minha era a tua pureza. Quando chego a esse ponto, tenho vontade de rir. Eu, puro! É algo que nem tu conseguirias de mim.
Um trecho de Rula Wicknerd
Era comum, nessa tribo, os adultos besuntarem de mel o membro, esparramando formigas sobre ele. Cheguei a imaginar que fosse um indício da prática de sexo oral, mas não obtive comprovação disso. Disseram-me que com a prática se pretendia simplesmente o aumento do pênis enquanto durasse o ato sexual.
(Do livro Explorações, edição da autora, tradução livre.)
(Do livro Explorações, edição da autora, tradução livre.)
Tolice
Tentei com versos pagar
E com candentes poesias
O que de outros recebias.
Versos não fazem gozar.
E com candentes poesias
O que de outros recebias.
Versos não fazem gozar.
Kama Sutra - DCXXVI
O momento mais venturoso desses encontros é aquele em que a primeira gota aflui à ponta em que se concentra o prazer e nós tentamos fazê-la refluir, enquanto até o mais ínfimo poro do nosso corpo implora para que a deixemos escorrer, a ela e às outras.
Questão de crença
Tentemos acreditar
Que enquanto o corpo apodrece
Mais a alma vinga e floresce,
Mais lhe apetece medrar.
Que enquanto o corpo apodrece
Mais a alma vinga e floresce,
Mais lhe apetece medrar.
Aquela coisa
Tu te recordas daquela
Coisa sem cabeça e sem pé,
Daquele embuste? Pois é,
O amor é aquela balela.
Coisa sem cabeça e sem pé,
Daquele embuste? Pois é,
O amor é aquela balela.
Kama Sutra - DCXXV
Ela pede mais, mais, e ele, tocado por uma súbita tristeza, gostaria de ser todo alma, nos dedos, na boca, no ventre que ele encosta e desencosta do ventre dela, seguindo o ritmo imposto pela voz que pede mais, mais, mais.
Um trecho de Zhang Xianliang
"Lembro que antigamente eu amava minha mãe. Mas meu professor disse que eu não devia amá-la mais. Segundo as leis de análise de classes, ela pertencia à classe burocrática; não devia permitir-se gostar de um filho tão mau e tão vil como eu. Todos os crimes que vieram depois à minha cabeça foram resultado direto da alegria que ela teve ao me dar à luz. Assim, meu professor separou-me da mãe que eu amava. Então apaixonei-me pela primeira mulher que encontrei, mas o Grande Professor disse que ela devia "traçar uma linha clara" entre nós dois, pois segundo a análise eu pertencia à classe capitalista, e separou-me de uma mulher que me amava. Sem ninguém mais para amar, o professor declarou que eu devia amá-lo, que só ele era a grande estrela salvadora do céu, sem ele eu iria imediatamente para o inferno. E o melhor modo de amá-lo era encher o peito de ódio; o ódio tornou-se o padrão ético do novo mundo."
(Do romance Acostumado a morrer, tradução de Vera Maria Whately, publicado pela Editora Best Seller.)
(Do romance Acostumado a morrer, tradução de Vera Maria Whately, publicado pela Editora Best Seller.)
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
Fernanda Lima
Dizer Fernanda Lima é pouco. Os lábios sempre querem mais. Fernanda Lima deveria chamar-se avenidabrigadeiroluísantônio ou então anticonstitucionalissimamente.
Tanka
A queixa que escuto
Advém de mim ou provém
Da lata que chuto?
Perdi a vida no escuro e
Procuro onde é nunca ali.
Advém de mim ou provém
Da lata que chuto?
Perdi a vida no escuro e
Procuro onde é nunca ali.
Tanka
Engenho-te casta
E ao teu conceito esse meu
Engenho me basta.
Assim te viva a virtude e
Não mude jamais em mim.
E ao teu conceito esse meu
Engenho me basta.
Assim te viva a virtude e
Não mude jamais em mim.
Tanka
Tateias, na treva.
Esconde a noite, por onde
O engano te leva,
As cores que a alma queria.
O dia colheu as flores.
Esconde a noite, por onde
O engano te leva,
As cores que a alma queria.
O dia colheu as flores.
Alarme falso
Se aquilo tudo amor tivesse sido,
Outro teria sido o resultado.
Tão grande amor teria nos ferido,
Tão grande amor teria nos matado.
Outro teria sido o resultado.
Tão grande amor teria nos ferido,
Tão grande amor teria nos matado.
Edição
A notícia do amor saiu numa página interna, a 28. Dez linhas. A nota ao lado mereceu vinte: a devolução de um yorkshire ao dono, depois de uma semana de desaparecimento.
Uma página de Charles Bukowski
"A arquibancada era desmontável. Entramos debaixo dela. Vimos dois caras de pé bem no centro dela olhando para cima. Deviam ter treze ou quatorze anos, eram três ou quatro anos mais velhos que a gente.
- O que será que eles estão olhando? - perguntei.
- Vamos ver - respondeu Frank.
Nos aproximamos. Um dos garotos nos viu.
- Ei, pivetes, fora daqui!
- O que é que vocês estão olhando? - Frank perguntou.
- Eu disse pra vocês caírem fora daqui!
- Ah, diabos, Marty, deixa eles darem uma olhada!
Nós fomos até onde eles estavam de pé. E olhamos.
- O que é isso? - perguntei.
- Inferno, você não está vendo? - perguntou um dos garotos.
- Vendo o quê?
- É uma buceta.
Uma buceta? Onde?
- Olhe, bem ali! Consegue ver?
Ele apontou.
Havia uma mulher sentada com a saia amassada sob ela. Não estava de calcinha e, olhando entre as ripas da arquibancada, dava pra ver sua buceta.
- Vê?
- Sim, estou vendo. É uma buceta - disse Frank.
- Está bem, agora os garotos dão o fora e mantêm suas bocas fechadas.
- Mas a gente queria olhar mais um pouco - disse Frank. - Deixa a gente olhar mais um pouco.
- Tudo bem mas não muito.
Nós ficamos ali olhando.
- Eu estou vendo.
- É uma buceta - disse Frank.
- É realmente uma buceta - respondi.
- É - disse um dos garotos mais velhos -, é isso que é mesmo.
- Eu sempre me lembrarei disso - eu disse.
- Está bem, garotos, é hora de ir embora.
- Pra quê? - perguntou Frank. - Por que não podemos continuar olhando?
- Porque - disse um dos mais velhos - eu vou fazer uma coisa. Agora caiam fora daqui.
Nós saímos andando.
- Fico pensando, o que é que ele vai fazer? - perguntei.
- Eu não sei - disse Frank -, talvez atirar uma pedra."
(De Misto-quente, tradução de Luís Antônio Sampaio Chagas, publicado pela Editora Brasiliense.)
- O que será que eles estão olhando? - perguntei.
- Vamos ver - respondeu Frank.
Nos aproximamos. Um dos garotos nos viu.
- Ei, pivetes, fora daqui!
- O que é que vocês estão olhando? - Frank perguntou.
- Eu disse pra vocês caírem fora daqui!
- Ah, diabos, Marty, deixa eles darem uma olhada!
Nós fomos até onde eles estavam de pé. E olhamos.
- O que é isso? - perguntei.
- Inferno, você não está vendo? - perguntou um dos garotos.
- Vendo o quê?
- É uma buceta.
Uma buceta? Onde?
- Olhe, bem ali! Consegue ver?
Ele apontou.
Havia uma mulher sentada com a saia amassada sob ela. Não estava de calcinha e, olhando entre as ripas da arquibancada, dava pra ver sua buceta.
- Vê?
- Sim, estou vendo. É uma buceta - disse Frank.
- Está bem, agora os garotos dão o fora e mantêm suas bocas fechadas.
- Mas a gente queria olhar mais um pouco - disse Frank. - Deixa a gente olhar mais um pouco.
- Tudo bem mas não muito.
Nós ficamos ali olhando.
- Eu estou vendo.
- É uma buceta - disse Frank.
- É realmente uma buceta - respondi.
- É - disse um dos garotos mais velhos -, é isso que é mesmo.
- Eu sempre me lembrarei disso - eu disse.
- Está bem, garotos, é hora de ir embora.
- Pra quê? - perguntou Frank. - Por que não podemos continuar olhando?
- Porque - disse um dos mais velhos - eu vou fazer uma coisa. Agora caiam fora daqui.
Nós saímos andando.
- Fico pensando, o que é que ele vai fazer? - perguntei.
- Eu não sei - disse Frank -, talvez atirar uma pedra."
(De Misto-quente, tradução de Luís Antônio Sampaio Chagas, publicado pela Editora Brasiliense.)
Será um dia maravilhoso,
se tivermos bons olhos para vê-lo, se soubermos dar aquele primeiro passo que é o início de todas as caminhadas e se sorrirmos bestamente para o sol, como fazem todos aqueles que são felizes. Se assim agirmos, nada, nem um furúnculo naquela parte nossa que recebe o afago acetinado das cadeiras, nos afetará.
Fernanda Lima
Para Fernanda Lima, e para o sol, as terças-feiras são dias como os outros: especiais.
Soneto da puta bem-amada
Pálida, muito pálida e calada,
Nos lábios graves um sorriso triste,
Nos olhos cavos uma luz cansada,
Assim, tristonha e pálida, surgiste.
Quis abraçar-te, mas a madrugada
Crescera imensa em ti, e sugeriste
Presteza. Tinhas a alma desligada
Dos gestos, e depressa desvestiste
O corpo afeito, e o seio propiciaste,
E beijos deste, e as pernas separaste,
Mas eram frio, murchos, constrangidas.
E pálida, e calada, foste embora,
Alheia ao fogo da hora breve, da hora
Que me dormira as noites maldormidas.
Nos lábios graves um sorriso triste,
Nos olhos cavos uma luz cansada,
Assim, tristonha e pálida, surgiste.
Quis abraçar-te, mas a madrugada
Crescera imensa em ti, e sugeriste
Presteza. Tinhas a alma desligada
Dos gestos, e depressa desvestiste
O corpo afeito, e o seio propiciaste,
E beijos deste, e as pernas separaste,
Mas eram frio, murchos, constrangidas.
E pálida, e calada, foste embora,
Alheia ao fogo da hora breve, da hora
Que me dormira as noites maldormidas.
Conspurcando o romantismo
Tão galhardamente quanto possível, a poesia romântica vem resistindo a todas as chacotas. Na minha adolescência, tempo em que mais a amei, corriam de boca em boca quatro versinhos que tinham esse claro intuito de desmoralizá-la:
Meu amor, minha vida,
Minha privada fedida.
Meu amor, meu tudo,
Meu cu de veludo.
Meu amor, minha vida,
Minha privada fedida.
Meu amor, meu tudo,
Meu cu de veludo.
Arquivo
E nada resta senão
Alguns e-mails arquivados,
Alguns versos mal rimados,
Passado e recordação.
Alguns e-mails arquivados,
Alguns versos mal rimados,
Passado e recordação.
Andando no rumo do amor
Andando no rumo do amor, sentimos a inclemência do sol e o escárnio de quem nos via com o bloquinho na mão, corrigindo sonetos. Tínhamos indicações vagas de onde poderíamos encontrá-lo. Para a nossa sede, dispúnhamos só do suor que nos descia da testa para os lábios. Andamos, andamos. Como podem ser cruéis os olhos de uma cidade quando se fixam naqueles que são viciados em amor. Mandaram-nos pegar uma enxada e capinar, fazer alguma coisa de útil para a sociedade. Continuamos andando. Chegamos, enfim, à morada do amor. Ele nos olhou, viu nossos olhos febris, a loucura dos nossos tormentos. Pediu que esperássemos um instante. Foi lá para dentro e, quando voltou, trazia um jarro. Pediu que abríssemos bem a boca. Nela despejou um líquido quente, salgado. "Bebe o meu ouro", gargalhou, enquanto nós tentávamos sorver tudo aquilo, para que nem uma gota sujasse o belo piso da morada do amor.
Da presunção do amor
O amor é presunçoso. Acredita que possa manejar-nos como se fôssemos bonecos seus, que possa nos castigar quando não nos movemos como ele quer. Crê que gostemos de ser por ele manipulados, por ele subjugados e tiranizados. Supõe que tenhamos gozos múltiplos quando nos esfrega o focinho na nossa urina enquanto nos diz: "Quando é que você vai aprender?" Acha que vivemos só por ele e por ele morreríamos. O amor é assim, presunçoso, arrogante, autossuficiente. O amor está certo.
Soneto do sentimento ilusório
Não era amor, mas tanto me doía
E tão fundo no peito descontente
Que não sei se pulsara mais candente
Fosse amor o que a alma constrangia.
E tão grande existiu, inexistente,
Que o sentimento dúbio se arrepia
E a lembrança interroga, dia a dia,
O que a magoava desalmadamente.
Não era amor, é certo que não era,
Que era tudo ilusão de primavera,
Que foi teu corpo inacessível flor.
E me consola, extinto já o desejo,
Que não me tenhas dado nunca ensejo
De lastimar agora um morto amor.
E tão fundo no peito descontente
Que não sei se pulsara mais candente
Fosse amor o que a alma constrangia.
E tão grande existiu, inexistente,
Que o sentimento dúbio se arrepia
E a lembrança interroga, dia a dia,
O que a magoava desalmadamente.
Não era amor, é certo que não era,
Que era tudo ilusão de primavera,
Que foi teu corpo inacessível flor.
E me consola, extinto já o desejo,
Que não me tenhas dado nunca ensejo
De lastimar agora um morto amor.
Dos idiotas e dos outros
Enquanto os idiotas pregam
Purezas e amores castos,
As suas éguas se entregam
E gozam gozos nos pastos.
Enquanto contam na mão
Seus versos bem escandidos,
Da relva sobe a canção
Dos coitos bem-sucedidos.
Enquanto nós, os cretinos,
Continuamos compondo hinos
Para virgens intocadas,
A cada poema de amor
Dos pastos sobe o clamor
Das éguas bem cavalgadas.
Purezas e amores castos,
As suas éguas se entregam
E gozam gozos nos pastos.
Enquanto contam na mão
Seus versos bem escandidos,
Da relva sobe a canção
Dos coitos bem-sucedidos.
Enquanto nós, os cretinos,
Continuamos compondo hinos
Para virgens intocadas,
A cada poema de amor
Dos pastos sobe o clamor
Das éguas bem cavalgadas.
Garotas no metrô
Levar um pé na bunda, amiga, é pior do que morrer de sede. Se um dia ele voltar, te juro que eu tomo o sangue dele todo com canudinho.
Soneto dos atributos do amor
O amor, se tributo deve,
Não é a quem o proclama,
Não é a quem o descreve,
É a quem de verdade o ama.
O amor não vive de fama,
A fama do amor prescreve,
O amor não é luz, é chama,
Se tem história, ela é breve.
O amor é só um momento
Que escapa ao entendimento,
Não há como o amor narrar.
O amor não é para ser
Proclamado, é para arder,
Ferver, consumir, queimar.
Não é a quem o proclama,
Não é a quem o descreve,
É a quem de verdade o ama.
O amor não vive de fama,
A fama do amor prescreve,
O amor não é luz, é chama,
Se tem história, ela é breve.
O amor é só um momento
Que escapa ao entendimento,
Não há como o amor narrar.
O amor não é para ser
Proclamado, é para arder,
Ferver, consumir, queimar.
Da alma e dos que a merecem
Se olharmos para os nossos coetâneos, dificilmente - se formos sinceros - encontraremos algum que julguemos merecedor de ter uma alma. Pensei, pensei, e me ocorreu um nome: o do maestro João Carlos Martins. E, na já longa história da humanidade, talvez eu conseguisse achar cinco, se tanto. Mozart, Bach e quem mais? O homem é um ser decepcionante, por mais que nos sintamos inclinados a olhá-lo condescendentemente.
Inabilidade
Sempre fui inábil. Tive à minha disposição tantas cordas, tantas lâminas, tantos viadutos vertiginosos e continuo a ver diariamente o estúpido espetáculo do sol chegando e do sol se pondo sobre esta cidade podre.
Um trecho de Charles Bukowski
"Eu andava pela biblioteca procurando por livros. Tirava eles das estantes, um por um. Mas eles eram todos uma fraude. Eram muito maçantes. Páginas e páginas de palavras que não diziam nada. Ou, se diziam alguma coisa, levavam muito tempo para isso e, quando diziam, você já estava muito cansado para dar alguma importância. Eu tentei livro após livro. Naturalmente, em meio a tantos livros, deveria haver um.
Todo dia eu caminhava até a biblioteca pela Adams e pela La Brea e lá estava a minha bibliotecária, austera e infalível e silenciosa. Eu continuava a tirar os livros das prateleiras. O primeiro livro de verdade que eu achei era de um companheiro chamado Upton Sinclair. Suas frases eram simples e ele falava com raiva. Escrevia com raiva. Ele escreveu sobre os chiqueiros de Chicago. Vinha e dizia as coisas claramente. Então encontrei outro autor. Seu nome era Sinclair Lewis. E o livro se chamava Rua Principal. Ele descascava a camada de hipocrisia que costuma cobrir as pessoas. Só que carecia de paixão."
(Do livro Misto-quente, tradução de Luís Antônio Sampaio Chagas, publicado pela Editora Brasiliense.)
Todo dia eu caminhava até a biblioteca pela Adams e pela La Brea e lá estava a minha bibliotecária, austera e infalível e silenciosa. Eu continuava a tirar os livros das prateleiras. O primeiro livro de verdade que eu achei era de um companheiro chamado Upton Sinclair. Suas frases eram simples e ele falava com raiva. Escrevia com raiva. Ele escreveu sobre os chiqueiros de Chicago. Vinha e dizia as coisas claramente. Então encontrei outro autor. Seu nome era Sinclair Lewis. E o livro se chamava Rua Principal. Ele descascava a camada de hipocrisia que costuma cobrir as pessoas. Só que carecia de paixão."
(Do livro Misto-quente, tradução de Luís Antônio Sampaio Chagas, publicado pela Editora Brasiliense.)
segunda-feira, 20 de janeiro de 2014
Soneto de como reconhecer o amor
Entre dezenas, vintenas,
Entre centenas, milhares,
E quantos mais calculares,
O amor é sempre um, apenas.
Tu o reconhecerás,
Se o conheceres um dia,
Não tanto pela alegria
Quanto pelas coisas más.
Ele te trará tormento,
Muita aflição, sofrimento,
Noites insones, suplício.
E tu, fiel, irás buscá-lo
Onde puderes achá-lo,
Como se procura um vício.
Entre centenas, milhares,
E quantos mais calculares,
O amor é sempre um, apenas.
Tu o reconhecerás,
Se o conheceres um dia,
Não tanto pela alegria
Quanto pelas coisas más.
Ele te trará tormento,
Muita aflição, sofrimento,
Noites insones, suplício.
E tu, fiel, irás buscá-lo
Onde puderes achá-lo,
Como se procura um vício.
Um trecho de J.M. Coetzee
"Elaborar a coisa certa a fazer não é difícil. Ele não precisa pensar demais para saber qual é o certo a fazer. Podia, se escolhesse, fazer a coisa certa com uma precisão quase infalível. A questão que o leva a parar para pensar é se pode continuar sendo poeta ao fazer a coisa certa. Quando tenta imaginar que tipo de poesia brotará de fazer a coisa certa sempre e sempre e sempre, só vê um grande vazio. A coisa certa é chata. Então, está num impasse: preferia ser mau a ser chato, não tem nenhum respeito por uma pessoa que prefere ser má a ser chata, e também nenhum respeito pela inteligência de conseguir colocar direitinho seu dilema em palavras."
(De Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)
(De Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)
Se pudéssemos,
como aquele menino, baixar o calção e regar o poste sem a pretensão de que amanhã ali nascesse uma flor.
Já perto da cena final,
um gato não previsto pelo autor entrou miando no palco e quando os atores, em nome das tradições da nobre arte do teatro, se puseram a caçá-lo, entre escorregões e tombos, o público finalmente achou razoável o preço do ingresso, enquanto o crítico, sempre pernóstico, dizia à mulher de peitos apetitosos e encolarados que aquilo era uma legítima intervenção do Deus ex machina.
Sabemos que,
a qualquer momento, numa reverência que fizermos ao amor, nosso fraque se romperá, mostrando nossa cueca estampada com motivos florais.
Todo arroubo,
todo exagero, toda exacerbação nos levam no fim ao ridículo, como se um rouxinol cantasse com a voz do Pato Donald ou o nosso bigodinho de galã romântico caísse de repente no sutiã da heroína, que o atiraria para o ar gritando uma aranha, uma aranha, e nós, entre as gargalhadas do público, lhe disséssemos que não, que era só uma pluma soprada pelo amor.
Nem eu mesmo suporia
Nem eu mesmo suporia que nos últimos anos de vida pudesse amadurecer tanto. Certos contratempos, que acabei transformando em irremediáveis catástrofes, calejaram a minha alma de tal forma que, se ela amadurecer um pouquinho mais, apodrecerá.
No fim da peça
No fim da peça descobrimos que nos conviria não ter lutado pelo papel de protagonista. Depois de uma hora e meia de espetáculo, já a ninguém importa se morreremos ou não. Enquanto isso, o mensageiro que apareceu no primeiro ato já está em casa, refestelado no sofá. Sua venerável patroa esquenta a canja e lhe pergunta, com pejo de dizer a palavra, se hoje farão fuque-fuque.
Teatro
Canastrões, anunciamos tanto a nossa morte, com tantos ahs e com tantos ohs, que já vai para o fim a peça e aquele homem honesto da quinta fileira, que teme perder o último ônibus para a Vila das Mercês, depois de olhar mais uma vez para o relógio nos interrompe e pergunta: "Será que não dá para morrer com um pouquinho mais de vontade?"
Soneto da vida e da morte
A nós tocou-nos viver
Tão mal e tão tristemente
Que a obrigação de morrer
Nos virá como um presente.
Já temos por que descrer
Da vida tão fortemente
Como em Deus nunca irá crer
O herege mais renitente.
Que dela nós, sem piedade,
Falemos toda a verdade,
Por pior que seja e pareça.
Se ela valor não nos deu,
Se ela não nos mereceu,
Que a morte então nos mereça.
Tão mal e tão tristemente
Que a obrigação de morrer
Nos virá como um presente.
Já temos por que descrer
Da vida tão fortemente
Como em Deus nunca irá crer
O herege mais renitente.
Que dela nós, sem piedade,
Falemos toda a verdade,
Por pior que seja e pareça.
Se ela valor não nos deu,
Se ela não nos mereceu,
Que a morte então nos mereça.
Hora H
Como os psicanalistas, os escritores não costumam dormir bem. Assim que fecham os olhos, sua cama é cercada por protagonistas, personagens de segundo ou de terceiro escalão, coadjuvantes de todo tipo, que esperam uma brecha no sonho. É a hora em que um carroceiro pode tornar-se rei.
Bons tempos
Antigamente, as mulheres amavam os poetas. Hoje, para lembrar-lhes o nome, precisam recorrer à agenda do celular. Um amigo meu, poeta, disse-me que uma delas ligou para ele perguntando quantas páginas, em média, tem um soneto.
Um poema de Marina Tsvetáieva
"Toda a magnificência
Das trompas - é apenas o ciciar
Das ervas - perto de ti.
Toda a magnificência
Dos ventos - é apenas o pipiar
Das aves - perto de ti.
Toda a magnificência
Das asas - é apenas o piscar
Das pálpebras - perto de ti."
(Do livro Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardoni, publicado pela Martins Fontes.)
Das trompas - é apenas o ciciar
Das ervas - perto de ti.
Toda a magnificência
Dos ventos - é apenas o pipiar
Das aves - perto de ti.
Toda a magnificência
Das asas - é apenas o piscar
Das pálpebras - perto de ti."
(Do livro Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardoni, publicado pela Martins Fontes.)
domingo, 19 de janeiro de 2014
Soneto dos órfãos do amor
Os órfãos do amor têm frio.
O vento da madrugada
Caminha pela calçada
Onde a desgraça os reuniu.
Do amor que os desiludiu
Nenhum espera mais nada,
É página já virada,
O que existiu existiu.
Afligem-se recordando
Os tempos felizes, quando
Se acaso frio sentiam
As mãos do amor prontamente
Mais que carinhosamente
Chegavam e os aqueciam.
O vento da madrugada
Caminha pela calçada
Onde a desgraça os reuniu.
Do amor que os desiludiu
Nenhum espera mais nada,
É página já virada,
O que existiu existiu.
Afligem-se recordando
Os tempos felizes, quando
Se acaso frio sentiam
As mãos do amor prontamente
Mais que carinhosamente
Chegavam e os aqueciam.
Das dores próprias e alheias
Tudo que em mim ainda vive,
Tudo que penso ou que faço
Não é mais que um risco, um traço
Um sopro que sobrevive.
Eu sinto agora o cansaço
Das lutas todas que tive,
Nas quais jamais nada obtive
Senão derrota e fracasso.
Os outros, os vencedores,
Sentem por acaso dores?
Eu acredito que sim.
Eu me pergunto, entretanto,
Se podem neles doer tanto
Quanto doeram sempre em mim.
Tudo que penso ou que faço
Não é mais que um risco, um traço
Um sopro que sobrevive.
Eu sinto agora o cansaço
Das lutas todas que tive,
Nas quais jamais nada obtive
Senão derrota e fracasso.
Os outros, os vencedores,
Sentem por acaso dores?
Eu acredito que sim.
Eu me pergunto, entretanto,
Se podem neles doer tanto
Quanto doeram sempre em mim.
Um trecho de Claudia Belfort
"Um dia depois que você saiu fez um frio ártico. Ainda era outono, ou pelo menos achava que era, mas seu silêncio anunciou que o sol tardaria a voltar. Nem a morte costuma me moer tanto. De certa maneira ela é esperada, está no registro do inevitável. A perda, na desistência, no fracasso. Deixei-o se perder de mim. Falhei. Não contei todos os meus sonhos com você. Menti estar pronta para sair a qualquer momento. Imaginei que aquela sua maneira de me olhar, como quem me joga uma manta num sábado chuvoso, amoleceria também seus passos e, então, torci fingidamente para que se encontrasse em outros abraços. Disse vá, só para vê-lo ficar. Só para sentir seus olhos mais e mais envoltos em mim. Mascarei meu ciúme, o prazer que teria em ver no chão as mulheres que minha imaginação (ou não) lhe emprestou. Desfilei como iceberg e agora não sei onde esconder as lágrimas mornas que arranham meu rosto azul."
(Do conto "Inverno", extraído do livro Aqueronte - O rio dos infortúnios, publicado pela Letras do Brasil.)
(Do conto "Inverno", extraído do livro Aqueronte - O rio dos infortúnios, publicado pela Letras do Brasil.)
Soneto dos três que pensavam em amor
Se não pensavas em mim
Enquanto eu em ti pensava,
O que é que em mim me levava,
Então, a supor que sim?
Pensava em ti noite e dia
E se mais tempo tivesse
Que dedicar-te pudesse
Muito mais eu pensaria.
Pensavas eu sei em quem,
Que em ti pensava também
Como eu, amorosamente.
Por que é que eu não soube então
Que pensava em ti em vão,
Que sonhava inutilmente?
Enquanto eu em ti pensava,
O que é que em mim me levava,
Então, a supor que sim?
Pensava em ti noite e dia
E se mais tempo tivesse
Que dedicar-te pudesse
Muito mais eu pensaria.
Pensavas eu sei em quem,
Que em ti pensava também
Como eu, amorosamente.
Por que é que eu não soube então
Que pensava em ti em vão,
Que sonhava inutilmente?
Se um dia eu viesse a beijar-te
Se um dia eu viesse a beijar-te,
Talvez me censurarias,
E até motivos terias,
Pois beijar não é minha arte.
Melhor seria tocar-te.
Eu sei que em minhas mãos frias
Todo o calor sentirias
Que tenho em mim para dar-te.
Depois de tocar-te, então,
Reter em ti ainda a mão,
E aí, sim, beijar-te e ver
Que um beijo, seja qual for,
Se for um beijo de amor,
Sempre especial há de ser.
Talvez me censurarias,
E até motivos terias,
Pois beijar não é minha arte.
Melhor seria tocar-te.
Eu sei que em minhas mãos frias
Todo o calor sentirias
Que tenho em mim para dar-te.
Depois de tocar-te, então,
Reter em ti ainda a mão,
E aí, sim, beijar-te e ver
Que um beijo, seja qual for,
Se for um beijo de amor,
Sempre especial há de ser.
Do amor e do sexo
O sexo é o alvo acertado,
O amor é o tiro no escuro,
O sexo é o ponto alcançado,
O amor é o porto inseguro.
O amor é o tiro no escuro,
O sexo é o ponto alcançado,
O amor é o porto inseguro.
Kama Sutra - DCXXIV
Como ficavas vermelha quando eu te dizia o que faria contigo se um dia teu corpo ficasse à disposição do meu. Como me censuravam teus olhos quando os meus, como se fossem duas línguas ávidas, lambiam tuas tetas sem piscar. Como mudaste depois, e como passaste a exigir, já na primeira noite em que te deste, que eu te chamasse de puta, de escrota, de porca, e que eu me enfiasse logo em ti inteiro, não só com aquele pedaço meu que sempre achavas pouco para te fazer estrebuchar, embora no fim sempre estrebuchasses.
Acervo
Nenhuma glória ou beleza,
Só crenças vãs, malogradas,
Toda esta é a minha riqueza:
Este punhado de nadas.
Só crenças vãs, malogradas,
Toda esta é a minha riqueza:
Este punhado de nadas.
Trovinha
O amor é essa coisa tola
Pela qual nós tanto ansiamos
E que se acaso a encontramos
Nem sabemos onde pô-la.
Pela qual nós tanto ansiamos
E que se acaso a encontramos
Nem sabemos onde pô-la.
Um engano
Eu te imaginava aventureira, destemida, partilhando comigo tua ousadia e espicaçando a minha. Fugiríamos de madrugada, num cavalo cuja garupa dividiríamos, e sumiríamos numa parte do mundo onde não nos acharia ninguém. Eu me enganei. Assim como eu sou um bundão, és uma dona de casa. Respondes pelas provisões dos teus, e teus belos olhos percorrem não montes insondáveis, mas prateleiras. Esperam por ti e pelos teus pacotes de supermercado os teus filhos, a tua mãe. Esperam teus cachorros, teus gatos. Se eu fosse teu passarinho, tu não te esquecerias do meu alpiste, como não te esqueces do pistache do papagaio. E eu que me imaginava passando fome contigo num lugar totalmente ignoto e vazio, vivendo do que o amor a natureza nos propiciassem.
Um trecho de J.M. Coetzee
"Ele leu Henry Miller. Se uma mulher bêbada se enfiasse na cama com Henry Miller, a trepada e sem dúvida a bebida também continuariam a noite inteira. Se Henry Miller fosse apenas um sátiro, um monstro de apetite indiscriminado, podia ser ignorado. Mas Henry Miller é um artista, e suas histórias, por mais abusivas que sejam e, provavelmente, repletas de mentiras, são histórias da vida de um artista. Henry Miller escreve sobre a Paris dos anos 30, uma cidade de artistas e de mulheres que amavam os artistas. Se as mulheres se jogavam em cima de Henry Miller, então, mutatis mutandis, deviam se jogar em cima de Ezra Pound, de Ford Madox Ford, de Ernest Hemingway e de todos os outros grandes artistas que viviam em Paris naqueles anos, para não falar de Pablo Picasso. O que ele vai fazer quando chegar a Paris ou Londres? Será que vai insistir em não jogar o jogo?"
(Do romance Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)
(Do romance Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)
www.rubem.wordpress.com
Hoje falo do tempo em que eu, jovem, me achava predestinado a revolucionar a literatura e de como essa loucura era compartilhada por outros tantos patetas. As pernas da juventude nos levam até a esquina, só, e o mundo é tão grande.
Kama Sutra - DCXXIII
Tinhas ali, em torno do teu gracioso umbigo, uma área propiciatória de êxtases. Soprada, ela se eriçava e me incitava a tocá-la com a língua, que desfrutava macias asperezas de pêssego. Que possas ter conservado, tantos anos depois, essa areazinha cujo gosto sinto quando digo teu nome como o dizia então, com as sílabas molhadas pelo desejo.
Kama Sutra - DCXXII
Deitar-me sobre ti com os quarenta graus de minha febre amorosa e despejar a lava com a fúria que merece teu corpo renitente.
Kama Sutra - DCXXI
Se soubéssemos, não teríamos esgotado nossa voz e nosso canto para louvar as pálidas virgens, e nos guardaríamos para exaltar as mulheres que depois nos ensinariam a apreciar o gosto de sal da vida, o inigualável olor de um sovaco espicaçado pela expectativa do sexo, a sedosa umidade das entrepernas ansiosas.
Exceção
O amor é uma dessas inconsequências, uma dessas exceções que a vida põe diante de nossos olhos para que caminhemos um pouco mais, enquanto ela ri às nossas costas.
Pulando de barco em barco
Até os vinte e poucos anos eu me imaginei um poeta. Tinha até um lema: o essencial é a poesia, o resto é prosa. A prosa era, para mim, desprovida de fascínio. Eu me imaginava, no futuro, escrevendo poesia com, talvez, algumas incursões pela prosa poética. Esta chegou naquele tempo a ser quase um gênero. Hoje, salvo melhor juízo, ela é tida mais ou menos como a quadratura do círculo. Sei que eu a tentei na experiência que andei tendo na crônica, antes de fazer certa carreira nas novelas juvenis, especialmente na Ática. Há uns cinco anos reavivei minha paixão pela poesia, e lamento hoje tê-la abandonado por tantas décadas. Resumindo: tudo isso para admitir que não me realizei nem na poesia nem na prosa. Como se dizia, a cigana me enganou. Vida longa, arte nenhuma.
Kama Sutra - DCXX
Morder-te as contas do colar no pescoço, contá-las, apagar as contas, recomeçar a contagem, morder de novo, recontar, enquanto a mão, fingindo ser novata, te abre a blusa e, simulando atrapalhação, te apalpa o seio e reapalpa, como se fosse a de um cego em sua primeira noite de amor.
Kama Sutra - DCXIX
Naquele instante em que a seiva aflora e dói um pouco na ponta, antes de se derramar, ele diz diminutivos, aumentativos, ó queridinha, ah gostosona, dos quais depois se arrepende até o momento em que na noite seguinte volta a murmurá-los, a dizê-los, a gritá-los ó bocetinha ah bundona.
Superpoderosa
O gato mais estranho que tive foi a Múchi, que recebeu o nome de Maga quando se recusou a urinar na areia e passou a usar um prato de vidro, para me mostrar como transformava em ouro o leite que eu lhe dava.
O haicai
O haicai é um primor de concisão, é a antirretórica por excelência, um flash, um instante que há de ser captado pelos sentidos, inapreensível pela razão.
Ouropel
Brilhou como ouro, fulgiu
Ao sol, freneticamente,
Amor fictício, luzente
Berloque, bijuteria.
Ao sol, freneticamente,
Amor fictício, luzente
Berloque, bijuteria.
Assim será
Que bom será te rever
Andando pela calçada,
Sorrindo, despreocupada,
Que bom será, podes crer,
Passeando pela avenida
E marcando em cada passo
O quaternário compasso:
Vida, vida, vida, vida.
Andando pela calçada,
Sorrindo, despreocupada,
Que bom será, podes crer,
Passeando pela avenida
E marcando em cada passo
O quaternário compasso:
Vida, vida, vida, vida.
Doces lobas
Mulheres da zona
Que dáveis a cona
Nas tascas daninhas
Amáveis putinhas
De bocas pintadas
E bundas tatuadas
De curtas bermudas
E coxas coxudas
Notáveis fodentes
Com ouro nos dentes
Nas camas deitadas
Nas longas noitadas
Colhendo as sementes
De todas as gentes
Do velho tarado
Do moço acanhado
Do tosco açougueiro
E do sapateiro
Do gordo gerente
E do subtenente
Do cara biruta
Do filho da puta
Mulheres leais
Mulheres reais
De preço acertado
De frete fechado
Mulheres honestas
Muito mais do que estas
Que não nos enlevam
E a alma nos levam
E quando se entregam
A entrega renegam
Putinhas de outrora
Eu vos canto agora
Putas indecentes
Putas inocentes
Putinhas escrotas
Putinhas marotas
Putinhas sem eira
Putinhas sem beira
Sem lar sem comida
Mulheres da vida.
Que dáveis a cona
Nas tascas daninhas
Amáveis putinhas
De bocas pintadas
E bundas tatuadas
De curtas bermudas
E coxas coxudas
Notáveis fodentes
Com ouro nos dentes
Nas camas deitadas
Nas longas noitadas
Colhendo as sementes
De todas as gentes
Do velho tarado
Do moço acanhado
Do tosco açougueiro
E do sapateiro
Do gordo gerente
E do subtenente
Do cara biruta
Do filho da puta
Mulheres leais
Mulheres reais
De preço acertado
De frete fechado
Mulheres honestas
Muito mais do que estas
Que não nos enlevam
E a alma nos levam
E quando se entregam
A entrega renegam
Putinhas de outrora
Eu vos canto agora
Putas indecentes
Putas inocentes
Putinhas escrotas
Putinhas marotas
Putinhas sem eira
Putinhas sem beira
Sem lar sem comida
Mulheres da vida.
Sob a jurisdição da alma
O amor tem a ver exclusivamente com a alma. Uma intervenção qualquer do corpo, ainda que seja só a da mão pousando gentilmente no ombro, é já uma ameaça de profanação. As mãos não são confiáveis e os ombros são escorregadios.
A verdade
Se eu tivesse sido digno da situação, se houvesse feito o que deveria fazer, não estaria hoje filosofando sobre as perfídias do amor. Deixei tudo desmoronar, para sentir o peso dos escombros. As palavras mais belas, os discursos mais tocantes são pronunciados por quem perde. Perdi tudo por essa gloríola e minha voz foi engolida pela caliça.
Um poema de Anna Akhmátova
"Vinte e um. Noite. Segunda-feira.
A silhueta da cidade na neblina.
Algum desocupado inventou
essa história de que há amor no mundo.
E por preguiça ou tédio,
todos acreditaram nele e assim viveram:
esperando encontros, temendo rupturas
e cantando canções de amor.
Mas a outros será revelado o segredo
e sobre estes cairá o silêncio...
Eu tropecei nele casualmente e, desde então,
sinto-me como se estivesse doente."
(De Antologia poética, tradução de Lauro Machado Coelho, publicado pela L&PM.)
A silhueta da cidade na neblina.
Algum desocupado inventou
essa história de que há amor no mundo.
E por preguiça ou tédio,
todos acreditaram nele e assim viveram:
esperando encontros, temendo rupturas
e cantando canções de amor.
Mas a outros será revelado o segredo
e sobre estes cairá o silêncio...
Eu tropecei nele casualmente e, desde então,
sinto-me como se estivesse doente."
(De Antologia poética, tradução de Lauro Machado Coelho, publicado pela L&PM.)
sábado, 18 de janeiro de 2014
Patti Smith
Ah os sonhos
Ontem Patti Smith
me apareceu em um
tirou sua pele de cordeiro
ficou nua como um lobo
e disse me decifra
me decifra
seu bobo
ou eu te como inteiro
Porque hesitei
ela os dentes em mim cravou
e me chamando de Rimbaud
Rimbaud meu rei
meu Arthurzinho
inteiro me devorou.
Ontem Patti Smith
me apareceu em um
tirou sua pele de cordeiro
ficou nua como um lobo
e disse me decifra
me decifra
seu bobo
ou eu te como inteiro
Porque hesitei
ela os dentes em mim cravou
e me chamando de Rimbaud
Rimbaud meu rei
meu Arthurzinho
inteiro me devorou.
... e então flutuaremos
Andar. Andar semanas, meses, anos, e num dia abençoado descobrir que a esfericidade da Terra é uma balela que nos impingiram. E chegar a um abismo vertiginoso do qual despencaremos sem o risco de cair em solo, em rio ou em mar. E então flutuare mos tuaremos mos.
Marafinha
De longe na esquina
Parece menina
De perto envelhece
E não apetece
Senão aos sem eira
Senão aos sem beira
Porém todo dia
Na noite vadia
Das nove até as três
Brava guerreira
Estoica rameira
Espera freguês.
Parece menina
De perto envelhece
E não apetece
Senão aos sem eira
Senão aos sem beira
Porém todo dia
Na noite vadia
Das nove até as três
Brava guerreira
Estoica rameira
Espera freguês.
Um pouco além do café
Há situações que são só um café tomado com uma amiga, com a presença aleatória de alguns pãezinhos de queijo. A mente romanesca, porém, jamais se conforma com simplicidades como essa, e se põe a tramar subtramas. De repente, lá está o amor dentro de um labirinto, sem saber por que está ali. Só sabe de uma coisa: ainda que o script ordene, ele se recusará a sair.
Kama Sutra - DCXVIII
A reverência que eu tinha até nos sonhos e que me impedia de ir além dos beijos, mesmo quando mordiscavas minha orelha e me dizias vem.
Vapt-vupt
Assim, de improviso, apresentou duas razões para não continuar vivendo: 1) amar; 2) não ser amado.
Da crônica hoje
A globalização teve, sobre a crônica, o efeito de ampliar geograficamente o conjunto de temas. O cronista já não escreve exclusivamente sobre sua cidade e seu bairro, mas sobre todas as cidades e todos os bairros do mundo, e seus protagonistas tendem a ser cada vez menos o tipo simples das crônicas antigas, e cada vez mais o chamado cidadão do mundo, reconhecido em toda parte por todos. O minimalismo da crônica, um de seus trunfos, se subsistir, será na forma, dificilmente no conteúdo. Será o exercício de tratar de Michael Schumacher, por exemplo, um assunto irrevogavelmente épico, com as meias-tintas do cotidiano, num tempo em que a noção de cotidiano já não é um sinônimo de simplicidade.
"A queda do piloto", de Wallace Stevens
"Este homem escapou aos sujos fados,
Sabendo, ao morrer, que nobremente morria.
Que a escuridão, o nada do além-morte humano,
O recebam e guardem no fundo dos espaços -
Profundum, física tempestade, dimensões em que,
Sem crença, para além da crença, acreditamos."
(De Antologia, tradução de Maria Andresen de Sousa, publicado pela Relógio D'Água, Lisboa.)
Sabendo, ao morrer, que nobremente morria.
Que a escuridão, o nada do além-morte humano,
O recebam e guardem no fundo dos espaços -
Profundum, física tempestade, dimensões em que,
Sem crença, para além da crença, acreditamos."
(De Antologia, tradução de Maria Andresen de Sousa, publicado pela Relógio D'Água, Lisboa.)
Aos sábados
Aos sábados o amor tem reminiscências de passeios pelo parque, de filas de cinema e de pipocas mastigadas entre beijos salgados.
Senha
Eu estou doente, não vês?
Espero apenas que venha
Do céu ou do inferno a senha
Dizendo que é minha vez.
Espero apenas que venha
Do céu ou do inferno a senha
Dizendo que é minha vez.
Lembrança
Recordando o que vivi,
Me sangra e esfola o tormento
E morro em cada momento
Em que me lembro de ti.
Me sangra e esfola o tormento
E morro em cada momento
Em que me lembro de ti.
Kama Sutra - DCXVII
Ah, meu amor, ah, meu amor, ela me dizia, beijando-me nos olhos para consolar-me, enquanto eu, sórdido, aproveitava para deslizar minha mão pelo seu corpo.
Um soneto de Shakespeare
"Se ao bronze, à pedra, ao solo, ao mar ingente,
Lhes vem a Morte o seu poder impor,
Como a beleza lhe faria frente
Se não possui mais forças que uma flor?
Com um hálito de mel pode o verão
Vencer o assédio pertinaz dos dias,
Quando infensas ao Tempo nem serão
As portas de aço e as ínvias penedias?
Atroz meditação! como esconder
Da arca do Tempo a joia preferida?
Que mão lhe pode os ágeis pés deter?
Quem não lhe sofre o espólio nesta vida?
Nada! a não ser que a graça se consinta
De que viva esse amor na negra tinta."
(De Sonetos, tradução de Ivo Barroso, publicado pela Abril Cultural.)
Lhes vem a Morte o seu poder impor,
Como a beleza lhe faria frente
Se não possui mais forças que uma flor?
Com um hálito de mel pode o verão
Vencer o assédio pertinaz dos dias,
Quando infensas ao Tempo nem serão
As portas de aço e as ínvias penedias?
Atroz meditação! como esconder
Da arca do Tempo a joia preferida?
Que mão lhe pode os ágeis pés deter?
Quem não lhe sofre o espólio nesta vida?
Nada! a não ser que a graça se consinta
De que viva esse amor na negra tinta."
(De Sonetos, tradução de Ivo Barroso, publicado pela Abril Cultural.)
Gratifica-se bem
Gratifica-se bem quem encontrar o amor estampado na foto e o levar à menina do edifício Primavera, apartamento 11, que há três dias não come, não bebe e não dorme. A menina é doente, o amor também, manca de uma perna e é asmático, e a alma caridosa que o levar à dona receberá uma rosa apanhada na hora do seu jardim e um dos beijos que ela vem açucarando desde o desaparecimento.
O cachorro
O cachorro cheirou o amor morto e, estando com sede, lambeu as gotas deixadas pela chuva da madrugada em seu rosto. Depois, porque no parque não havia nenhum poste, urinou sobre o seu peito demoradamente.
Como um cão
Como um cão faminto, o amor fareja em todas as esquinas e espera pelo prato de alumínio, mas se lhe acenarem com um gesto de afeto seguirá a mão até o fim do mundo, ainda que nela não haja nem vestígio da última migalha de pão.
Um poema de Juan Gelman
"Amor que serena, termina?
começa? que nova
velhice o espera para viver?
qual fulgor? amor surgindo
de si mesmo a si mesmo sendo
também memória de si
comendo
de si, que velha
sombra chupará sua nuca? oh pestes
que visitaram meu país
atacaram se foram
alheias como o vento."
(Do livro homônimo, tradução de Eric Nepomuceno, publicado pela Editora Record.)
começa? que nova
velhice o espera para viver?
qual fulgor? amor surgindo
de si mesmo a si mesmo sendo
também memória de si
comendo
de si, que velha
sombra chupará sua nuca? oh pestes
que visitaram meu país
atacaram se foram
alheias como o vento."
(Do livro homônimo, tradução de Eric Nepomuceno, publicado pela Editora Record.)
Amor (nova versão)
Como uma torneira numa casa abandonada, o amor pinga desconsoladamente suas gotas nos ladrilhos do quintal.
Filho de quem
Filho de bastardo soez,
Filho de mãe prostituta,
Foi o maldito que fez
Sócrates tomar cicuta.
Filho de mãe prostituta,
Foi o maldito que fez
Sócrates tomar cicuta.
Lembranças requentadas pelo sol da manhã
Que tempo, aquele. Falava-se
De tudo: de Roth, de Woody,
De Sócrates e a virtude,
E Salinger comentava-se.
Foi então que o vento veio
E tudo varreu: o amor,
A virtude, o apanhador
E até o campo de centeio.
De tudo: de Roth, de Woody,
De Sócrates e a virtude,
E Salinger comentava-se.
Foi então que o vento veio
E tudo varreu: o amor,
A virtude, o apanhador
E até o campo de centeio.
O assunto
Falar de amor cria um problema: acaba-se não falando de nenhum outro assunto, nunca mais. E precisa?
Cafeteria
Ele ficou esperando que algo extraordinário ocorresse - um grito de socorro, de fogo ou de revolução - ou algo prosaico, quem sabe um garçom estatelando-se com a bandeja e fazendo meia dúzia de pãezinhos de queijo voar como seis garças assustadas - para que ela desviasse por um instante os olhos dos olhos dele. Porque nada aconteceu, ele se deixou transformar numa estátua. E quem o viu assim metamorfoseado disse que ele estava muito bem: seus olhos brilhavam agora mais e o sorriso agradecido nem parecia mais o dele.
Extravagâncias
Um dia, ocorreu-lhe um pensamento extravagante e, estimulado por ele e por sua ineficiente matemática, começou a calcular quantas pétalas de rosa seriam necessárias para cobrir do piso ao teto os cômodos de sua casa. Chegou a um número que parecia uma locomotiva seguida por centenas de vagões e concluiu que conseguiria cobrir todos os aposentos se cada vez que tivesse pensado na amada ela lhe tivesse dado uma pétala. Feliz, mas precavido e com os olhos no futuro, largou a caneta e os cálculos e pôs-se novamente a pensar nela.
Metamorfose
Escolheu a menina mais ruiva, gorducha e estouvada. Tudo foi bem, até que ela se transformou num cisne.
A prosa poética
A prosa poética costuma funcionar melhor em textos curtos. Nos longos, é difícil mantê-la em sua proporção ideal.
Uma lição do haicai
Para os poetas dados a transbordamentos retóricos, a disciplina do haicai é um exercício de inestimável valor.
Do cavalheirismo do amor
Amanhã não me lembrarei do teu nome, nem tu do meu. É um cavalheirismo do amor, que nos cumula de louvores e nos poupa da aspereza das censuras.
Enquanto
Enquanto as mãos do amor pousam no ombro das estrelas, as mãos do sexo coçam o saco, revezando-se.
Um trecho de Zhang Xianliang
"Só consegui apreciar o romantismo daquela cena anos depois. A sombra de verão de um volumoso chorão incidia sobre o canal borbulhante; um grilo pulou no meio de nós. O sol filtrava-se através das asas de uma libélula imóvel pousada na ponta de um junco ondulante, e uma brisa suave passava pela água e vinha até ela. A ponta de sua saia levantava-se ligeiramente, como se o cisne branco do lago estivesse esticando as asas. Ela colocou as mãozinhas macias e aveludadas nas palmas de minhas mãos calejadas, Mas nossas mãos entrelaçadas não diminuíam a distância entre nós - eu sentia, ao contrário, que ela se afastava."
(Do romance Acostumado a morrer, tradução de Vera Maria Whately, publicado pela Editora Best Seller.)
(Do romance Acostumado a morrer, tradução de Vera Maria Whately, publicado pela Editora Best Seller.)
sexta-feira, 17 de janeiro de 2014
Vixit
Mas por que a morte temer,
E os sofrimentos, e o olvido,
Se Borges diz que morrer
Não é senão ter vivido?
E os sofrimentos, e o olvido,
Se Borges diz que morrer
Não é senão ter vivido?
Gerações
No décimo oitavo aniversário viu, com um alívio satisfeito, que estavam ausentes, porque mortos não vão a festas, todos os tios que desde seus cinco anos lhe diziam, como conselho, que era preciso estudar, ter compostura e manter bons hábitos de higiene e saúde. O último deles havia morrido numa estação de águas.
Preliminares
Mas no momento devido,
Para que tudo aconteça,
O amor cochicha ao ouvido
E o sexo estica a cabeça.
Para que tudo aconteça,
O amor cochicha ao ouvido
E o sexo estica a cabeça.
"As vantagens da instrução", de Kenneth Rexroth
"Sou um homem sem ambições,
de poucos amigos, totalmente incapaz
de ganhar minha vida ou ficar mais moço,
fugindo de uma sentença justa qualquer.
Solitário, malvestido, que importa?
À meia-noite eu faço para mim uma jarra
de vinho branco quente com sementes de cardamomo,
com a boina velha e um roupão cinza rasgado,
sento no frio escrevendo poesias,
rabiscando nas margens nus angustiados,
copulando com as gatinhas
ninfomaníacas da minha imaginação."
(Tradução de Leonardo Fróes, extraído do livro Poesia beat, publicado pela Azougue.)
de poucos amigos, totalmente incapaz
de ganhar minha vida ou ficar mais moço,
fugindo de uma sentença justa qualquer.
Solitário, malvestido, que importa?
À meia-noite eu faço para mim uma jarra
de vinho branco quente com sementes de cardamomo,
com a boina velha e um roupão cinza rasgado,
sento no frio escrevendo poesias,
rabiscando nas margens nus angustiados,
copulando com as gatinhas
ninfomaníacas da minha imaginação."
(Tradução de Leonardo Fróes, extraído do livro Poesia beat, publicado pela Azougue.)
Conta de chegar
Modesto, porque modesto é sempre o horizonte de um revisor, não aspira mais a deixar um traço na vida. Já se contenta com um hifenzinho.
Tanka (para Alice Kobayashi)
Na noite cerrada
Tombou a borrasca, e estou
Só, na encruzilhada.
A vida me deu um coice
E foi-se, rompendo a brida.
Tombou a borrasca, e estou
Só, na encruzilhada.
A vida me deu um coice
E foi-se, rompendo a brida.
"Três haicais americanos", de Jack Kerouac
"Por um hiato
A lua teve
Bigode de gato."
"Atravessando o campo de futebol
Voltando do trabalho -
O empresário solitário."
"Nenhum telegrama hoje
Apenas mais folhas
Caíram."
(Tradução de Sergio Cohn, extraídos do livro Poesia beat, publicado pela Azougue.)
A lua teve
Bigode de gato."
"Atravessando o campo de futebol
Voltando do trabalho -
O empresário solitário."
"Nenhum telegrama hoje
Apenas mais folhas
Caíram."
(Tradução de Sergio Cohn, extraídos do livro Poesia beat, publicado pela Azougue.)
Kama Sutra - DCXV
Sobre o quarto paira certa maresia, como se os dois houvessem deixado a janela aberta para o mar. O lençol parece um veleiro.
Kama Sutra - DCXIV
Agora que os dois dormem, o sol entra no quarto, insinua-se nos lençóis e deita-se sobre ela, como se o homem, inábil, tivesse deixado algo por fazer.
Kama Sutra - DCXIII
Dormem agora, os dois. No sono, desfez-se o abraço que os manteve entrelaçados até que sucumbissem esperando que fosse a cena final. Não morreram, porque o amor é um diretor exigente. Há perfeições ainda a atingir, gozos do corpo e da alma, coisas indizíveis. O amor refaz o script e recusa-se a pôr o ponto-final.
Kama Sutra - DCXII
O travesseiro, lisonjeado, recebe ainda um roçar de saliva, junto com a última sílaba da palavra amor. Quem a diz já dorme agora, exausto. Quem a ouviria dorme também, satisfeita.
Kama Sutra - DCXI
O melhor do amor é o momento em que o corpo já não sabe se está vivo ou morto e jaz, com os olhos no teto, estupidificado de tantas doçuras.
Kama Sutra - DCX
Não tínhamos fome nem sede que o amor não saciasse. Tudo de que precisávamos estava em nossos corpos e a nós cabia só o prazenteiro trabalho da colheita.
Kama Sutra - DCIX
Que bom quando me deixavas passar a língua bem de leve na tua orelha, nas duas. Saudade desse tempo, em que não receavas o alucinado descontrole dos meus dentes e a fome do meu amor.
Kama Sutra - DCVIII
Esperar que a brisa sopre um fio de teus cabelos para os teus lábios, e beijá-los, e engoli-los, lábios e fio, com a tua saliva e a minha.
Kama Sutra - DCVII
Teu dedo quando, antes de recolocares a tampa, o levavas à boca para a última lambida na geleia de pêssego.
Kama Sutra - DCV
Talvez, lembrando-te de mim, vás descendo o dedo até ali onde começa a trilha de todas as delícias e transgressões.
Kama Sutra - DCIV
Eu continuarei a gritar teu nome enquanto estiverem me enfiando a camisa de força, amor, e o gritarei tantas vezes que o grito, enfraquecido, parecerá um gemido de gozo: amor, amor.
Kama Sutra - DCIII
Enquanto eu enfiava os dentes sedentos na pele do fruto, para rasgá-lo, um passarinho alucinado me bicava loucamente, perversamente, enciumadamente.
Kama Sutra - DCII
Ah, polpa, polpa macia, um instante mais e esguicharás teu mel no céu de minha boca.
Kama Sutra - DCI
Rasgo a carne do fruto, engulo seu sumo e cuspo o caroço para que o solo receba sua seiva.
Kama Sutra - DC
E minha boca se alvoroça como se, dentro dela, dois frutos trocassem com volúpia suas sementes.
Kama Sutra - DXCIX
O sexo é a pedra que, atirada por mão afoita, faz ondular a água do lago e alvoroça os peixes como se Baco e Eros os incitassem a uma orgia.
Kama Sutra - DXCVIII
A seiva do amor pinga gota a gota em mim, como o mais delicioso de todos os suplícios. Um pouco mais, Deus, só um pouco, para que eu me desmanche em êxtases.
Às vezes eu...
... me acho abençoado por dizer tantas vezes por dia essa palavra que os outros parecem ter esquecido para deixá-la só para mim. Eu me empapuço com ela, eu a deixo correr como baba pelo meu peito: amor.
O homem passou...
... com seu caminhãozinho gritando Cândida, Cândida, e eu, infectado pelo vírus do romantismo, imaginei um cavaleiro chamando por sua amada para arrebatá-la e levá-la a um lugar em que não possam alcançá-los as misérias da vida e o sabre da morte.
Kama Sutra - DXCVII
Meu amor fala pelo coração e pelos lábios. Se queres algo diferente, procura-o um palmo abaixo do umbigo dos carroceiros.
No meio
No meio da algaravia que vem da rua, julguei ouvir a palavra amor. E meu velho coração voltou a ser boboca como antigamente.
Daqui, da janela,
sopro uma pluma, esperando que o vento propiciatório a leve às mãos de quem, recolhendo-a, possa acolhê-la no peito, como se fosse um pássaro.
Melhor assim
Jamais fique amargurado
Se um sonho não se consuma.
Um sonho, se consumado,
Nem sonho é, nem coisa alguma.
Se um sonho não se consuma.
Um sonho, se consumado,
Nem sonho é, nem coisa alguma.
Estilhaços
É um homem estilhaçado.
Suas partes deu, uma a uma,
E não há parte nenhuma
Que dele tenha sobrado.
Suas partes deu, uma a uma,
E não há parte nenhuma
Que dele tenha sobrado.
Peles
Um escritor assume várias peles. A melhor é sempre a original, aquela que ele com nenhuma outra consegue ocultar.
Kama Sutra - DXCVI
Às vezes, o amor e o sexo parecem um só, e o dedo volta do sul com um olor de rosa.
Soneto da impossível consolação
Que compaixão, que conforto
Pode oferecer-se a alguém
Cujo amor é o maior bem
E um dia vê o amor morto?
Que novo rumo, que porto
Pode sugerir-se a quem
Não viveu um dia sem
Estar pelo amor absorto?
O que podemos lhe dar
Capaz de o reconfortar
E de lhe aliviar as dores?
Certamente não abraços,
Estes nossos, tão escassos,
E certamente não flores.
Pode oferecer-se a alguém
Cujo amor é o maior bem
E um dia vê o amor morto?
Que novo rumo, que porto
Pode sugerir-se a quem
Não viveu um dia sem
Estar pelo amor absorto?
O que podemos lhe dar
Capaz de o reconfortar
E de lhe aliviar as dores?
Certamente não abraços,
Estes nossos, tão escassos,
E certamente não flores.
Birras
De quem diz que o preço está salgado, que não cabe no bolso, que tal coisa custa os olhos da cara, que o custo de vida está pela hora da morte.
Kama Sutra - DXCVI
Nas noites em que o sexo a espicaça, ela toma banho antes que ele. Esmera-se, cantarola e deixa no sabonete sempre um fio dourado que colhe entre as pernas. É o sinal para que ele não se demore no chuveiro e nem coloque o pijama. Ela o espera com a mão no tufo viçoso ao qual o fio colhido não faz falta.
Luz
Revivi esta semana uma das alegrias da infância. Faltou luz e, quando ela voltou, as crianças da rua (não sabia que eram tantas) fizeram uma algazarra. Viva, viva, gritaram, e eu as invejei. Como gostaria de estar com elas e ensinar-lhes um grito do meu tempo: viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu.
Vice-deus
Qualquer menino com uma caixa de doze lápis de cor desenharia um mundo bem mais habitável.
Um trecho de J.M. Coetzee
"Sua própria explicação para os fracassos no amor, agora velha e cada vez menos confiável, é que ainda tem de encontrar a mulher certa. A mulher certa enxergará, através da superfície opaca que ele apresenta ao mundo, as profundezas interiores, a mulher certa destravará as intensidades ocultas de paixão dentro dele. Até a chegada dessa mulher, até o dia destinado, ele está só passando o tempo. Por isso Marianne pode ser ignorada.
Uma questão ainda o atormenta e se recusa a ir embora. Será que a mulher que destravará as reservas de paixão dentro dele, se existir, libertará também o fluxo bloqueado da poesia; ou, ao contrário, depende dele próprio se transformar em poeta e assim provar-se digno do amor dela? Seria bom se a primeira hipótese fosse a verdadeira, mas desconfia que não é. Assim como se apaixonou à distância por Ingeborg Bachmann de um jeito e por Anna Karina de outro, assim também, desconfia, a predestinada terá de conhecê-lo por suas obras, se apaixonar por sua arte antes de ser tola a ponto de se apaixonar por ele."
(Do romance Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)
Uma questão ainda o atormenta e se recusa a ir embora. Será que a mulher que destravará as reservas de paixão dentro dele, se existir, libertará também o fluxo bloqueado da poesia; ou, ao contrário, depende dele próprio se transformar em poeta e assim provar-se digno do amor dela? Seria bom se a primeira hipótese fosse a verdadeira, mas desconfia que não é. Assim como se apaixonou à distância por Ingeborg Bachmann de um jeito e por Anna Karina de outro, assim também, desconfia, a predestinada terá de conhecê-lo por suas obras, se apaixonar por sua arte antes de ser tola a ponto de se apaixonar por ele."
(Do romance Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
Preservação (para Frida Costello)
Por prazer
por lazer
para comer
por tudo e por nada
matamos o lobo
e o cordeiro
com o tiro certeiro
e a faca afiada
Tudo que pudemos
fizemos
para destruir
para dizimar
para extinguir
E depois da destruição
da dizimação
e da extinção
preocupados com o dia
em que não haveria
mais animal nenhum
para destruir
para dizimar
para extinguir
nos congregamos
numa causa comum
e a bandeira levantamos
da preservação
E com que empenho
a desfraldamos
a defendemos
e a empunhamos
Ah como nos admirariam
ah como diferentes nos veriam
ah como nos perdoariam
aqueles todos que nós destruímos
aqueles todos que nós extinguimos
aqueles todos que nós dizimamos.
por lazer
para comer
por tudo e por nada
matamos o lobo
e o cordeiro
com o tiro certeiro
e a faca afiada
Tudo que pudemos
fizemos
para destruir
para dizimar
para extinguir
E depois da destruição
da dizimação
e da extinção
preocupados com o dia
em que não haveria
mais animal nenhum
para destruir
para dizimar
para extinguir
nos congregamos
numa causa comum
e a bandeira levantamos
da preservação
E com que empenho
a desfraldamos
a defendemos
e a empunhamos
Ah como nos admirariam
ah como diferentes nos veriam
ah como nos perdoariam
aqueles todos que nós destruímos
aqueles todos que nós extinguimos
aqueles todos que nós dizimamos.
Os ditados e sua chatice
Ditados costumam ser de uma chatice proverbial. Salva-se um em cem. Falo dos ditados oficiais, aqueles dicionarizados. Os populares são no geral mais interessantes. Lembro-me de um que vi afixado no velho Três Porquinhos, na avenida São João, conhecido por seus sanduíches de salsicha (não estava ainda disseminada a nomenclatura hot-dog). Para evitar a presença de desocupados, a recomendação era clara: "Se não tens o que fazer, não o faças aqui."
Soneto dos sinais do amor
Talvez possamos supor
Que o nó em nossa garganta
E o poema que nos encanta
São ainda sinais do amor.
Talvez possamos dispor
Da sua imagem, tão santa,
Da sua voz, que ainda canta
Embora sem tanto ardor.
Nós, que soubemos matá-lo,
Saibamos hoje louvá-lo
Pelo que foi para nós.
Que ao proclamar-lhe a beleza
O façamos com firmeza
Com toda a força da voz.
Que o nó em nossa garganta
E o poema que nos encanta
São ainda sinais do amor.
Talvez possamos dispor
Da sua imagem, tão santa,
Da sua voz, que ainda canta
Embora sem tanto ardor.
Nós, que soubemos matá-lo,
Saibamos hoje louvá-lo
Pelo que foi para nós.
Que ao proclamar-lhe a beleza
O façamos com firmeza
Com toda a força da voz.
Estilicídio
Olham para baixo e veem
O que não verão jamais.
E, com desespero ou sem,
Saltam enfim dos beirais.
O que não verão jamais.
E, com desespero ou sem,
Saltam enfim dos beirais.
As dificuldades do haicai
Se feito na forma proposta por Guilherme de Almeida (o primeiro verso de cinco sílabas poéticas rimando com o terceiro, também de cinco sílabas, enquanto no segundo, de sete sílabas, há uma rima interna), o haicai é mais obra de artesanato, se bem que em casos excepcionais, como no exemplo abaixo, do próprio Guilherme de Almeida, a arte se faça presente:
"Um gosto de amora
Comida com sol: a vida
Chamava-se agora."
"Um gosto de amora
Comida com sol: a vida
Chamava-se agora."
Escritor
Acredito que o escritor seja um sujeito capaz de escrever alguma coisa interessante sobre qualquer coisa, ainda que desinteressante.
Ode à bunda
Empinada sobre dois
saltos altos
bunda de primeiro andar
bunda de mezanino
mescla de carnal e divino
bunda celeste
bunda de trottoir
bunda essencial
bunda existencial
bunda sartriana
bunda algreniana
bunda sem silicone
bunda de simone de beauvoir
Sabe-se que
Sabe-se que as quintas-feiras são melhores à tarde, quando os calos do amor, já mais entrosados com os tênis, permitem caminhadas que não levam a lugar algum mas cansam o corpo e a alma para que à noite a insônia seja um pouco menos virulenta.
Mesa posta
O amor prepara a mesa com requinte. Pratos e talheres no lugar exato, uma flor no jarro, se não for cafona, guardanapos, tudo. Morrerá se, na hora, algo destoar. Demora para decidir pela conveniência de uma música. Testa e retesta o candelabro e incute na memória a necessidade de não pisar de forma alguma no terceiro taco à esquerda, que soa desagradável. Colocará sua melhor roupa e abrirá a porta com um alvoroço de cem pássaros assustados. Então, o sexo entrará, coçando os bagos, perguntará qual é o rango e antes mesmo de jantar estará arrotando.
O amor é hoje
O amor é hoje um velho que tosse como um cachorro estropiado e urina sem perceber em todos os cantos. Em vão se tentará ler, na urina, versos belos como os que escrevia outrora.
Garota,
eu deveria ter feito para ti um número em que, com a roupa de Carlitos, dançasse graciosamente, fazendo girar a bengala como se dela saíssem fogos de artifício que escrevessem teu nome no céu de São Paulo pelo tempo suficiente para que tirasses uma foto no celular.
Paz
Paz, agora que a chama do amor é só um bruxuleio que mal ilumina a carta em cujo final se lê a palavra adeus.
Ucrânia
Talvez ainda aí, em Tchetchelnik, flutue a pétala de uma flor soprada pela menina Clarice. Se houver outras, a de Clarice se distinguirá por ser a única semelhante a uma borboleta.
O amor é
O amor é um pássaro atingido pelas setas de todas as manhãs, para que à tarde seu canto soe com delicadeza anêmica e não fira os ouvidos da amada.
Cotação do dia
A convicção de que a carne nunca estará à altura dos nossos sonhos e de que isso não é uma derrota, mas a glória do nosso ser.
Amores eternos
Uma característica dos amores eternos, hoje, é a facilidade com que se esquecem de sua eternidade.
Em que mãos
Já não me importa em que mãos irão cair meus versos. Que eles sigam seu caminho. O amor não há de ser mesquinho e exclusivista. Que haja muitas mãos para receber estas confissões é algo que eu começo a reputar como um milagre. No fundo, sempre amei uma mulher ideal, concebida por mim e por minha alma inquieta.
Moleca
Nunca mais me virás menina como naquele dia. Para seres uma moleca, faltava-te só um estilingue. Mas, mesmo com a mão desarmada, desalmada menina, atingiste meu coração, e até hoje mantenho a mão ali, saudosa.
Fernanda Lima
De uns tempos para cá, venho submetendo os adjetivos que exprimem beleza a um teste: coloco-os ao lado de Fernanda Lima. Alguns mantêm o brilho.
Soneto de quem caiu na teia
Não tenho pena de mim.
Sabia desde o começo
Que o apreço com desapreço
Me pagarias no fim.
Minha culpa reconheço.
Fui eu que buscando vim
E que hoje desfruto enfim
O infortúnio que mereço.
Não incorri em engano,
Não fui tolo, fui insano,
Tua fama eu conhecia.
Quem tantos já desgraçara,
E nenhum jamais poupara,
Por que não me mataria?
Sabia desde o começo
Que o apreço com desapreço
Me pagarias no fim.
Minha culpa reconheço.
Fui eu que buscando vim
E que hoje desfruto enfim
O infortúnio que mereço.
Não incorri em engano,
Não fui tolo, fui insano,
Tua fama eu conhecia.
Quem tantos já desgraçara,
E nenhum jamais poupara,
Por que não me mataria?
Kama Sutra - DXCVI
Há instantes em que a carne se mostra tão imperiosa e rude que o amor sai furtivamente do quarto e só volta quando já não ouvem nem os gemidos dos corpos nem os da madeira.
Pássaro e violino
Gostaria de ter no peito um violino e um pássaro canoro. Fingiria não tê-los, até o dia em que a mulher predestinada, aquela que só ele reconheceria, o olhasse num entardecer de primavera e ele pudesse, antes mesmo de dizer a ela seu nome, fazer soar juntos o pássaro e o violino, nas mais agudas notas que o amor conseguisse produzir.
A árvore
O pai apontou as árvores carregadas de frutos e perguntou ao filho de quatro anos qual delas ele achava mais bonita. O menino ficou mostrando "aquela, aquela", sem que o pai a distinguisse, até que um pássaro se soltou de um galho e o menino completou: "Aquela ali, que canta."
O pior tolo
O pior tolo não é aquele que morreu de amor. É aquele que, não se deixando matar pelo amor, sobreviveu para exibir esse rosto rosado, esse sorriso presunçoso, esse ar de quem conhece tudo da vida. Olhem para o idiota, olhem. Que asno! Que asco!