segunda-feira, 30 de abril de 2012

Meu defeito

Bom aquele tempo em que, por mérito meu ou generosidade tua, o único defeito que me atribuías era a fealdade do meu nariz.

Estante de estrangeiros

Se eu acreditasse na circularidade do tempo e na repetição da felicidade, iria me postar desde já naquela estante de romances estrangeiros da Cultura, diante da letra R de Roth.

Máxima insânia

Estar apaixonado e não tresvariar, não cometer loucuras, não mandar desenhar no céu o nome da bem-amada, é, isto sim, a mais maçante e a maior de todas as insanidades.

Dor amada

Com o tempo, afeiçoou-se aos infortúnios, criou-lhes até amor, e, se não está sob o agradável jugo de um deles, faz a memória, como um dedo sobre uma ferida de estimação, ir apalpando a superfície, em busca do ponto exato, porque sabe que as dores, quando sinceras, nunca nos abandonam e, quando amadas, nunca nos deixam sem retribuição.

Vigias

E quem foi que disse aos cachorros que eles têm de prestar contas de tudo que ocorre na rua e carimbar com seus latidos a passagem de homens, outros cães, pássaros e até do fantasma que, à noite, abre o portão do sobradinho e vai instalar-se no quarto onde, de olhos bem abertos, dorme a viúva Ribas?

Sucedâneo

Dormir não é o ideal, mas é sempre um recurso, à falta daquela corda, daquele revólver, daquele veneno, daquele viaduto que tardas tanto em escolher.

Essa tendência

Sim
tenho essa tendência
de chorar por tudo
e por nada
chorar é a minha
convicção mais arraigada

Uma história antiga
a foto de uma
onça em extinção
um passarinho
morto no caminho
um pombo aleijado
um gato estraçalhado
debaixo de um caminhão

Sim
tenho essa tendência
de chorar assim
por tudo
por nada
por coisas importantes
ou por mim

domingo, 29 de abril de 2012

Alunas

Gosto do outono. Em suas desbotadas tardes, nem preciso convocar as tristezas de minha alma. Todas, sempre, alunas aplicadas, me dizem logo presente.

Retribuições

Se estivesses morto, não sorririas. E como seria bom se não precisasses a todo instante retribuir, com a tua, tantas falsidades. Não há pessoas mais honestas do que os mortos.

Modo de ver

Formas generosas, as tuas. Sim, mas generosas para quem, para quê? Para os meus olhos, decerto, talvez também para a minha alma, mas os meus dedos e a minha boca as acusam de mesquinhez e de tortura.

Ela e eu

Sei que já devo estar enfadonho na defesa que faço da depressão, mas insisto: melhor tê-la que não tê-la. A depressão e eu temos um acerto antigo. Eu me habituei a ela, e ela a mim, há talvez até alguma afeição nisso, e, quando lhe peço que me dê uma trégua, sinto-me um cínico de primeira.

E se

Pesam-lhe de dia a falta de futuro e de dinheiro, as dez horas na lavanderia passando a ferro as roupas alheias. Pesa-lhe à noite o corpo do homem, que vem só para fornicar e dormir, noventa e cinco quilos mal distribuídos tanto sobre ela quanto sob. Quando ele enfim se cansa, depois de dar duas voltas completas nela, como se fosse um garoto numa montanha-russa, e, passando-lhe os braços em torno, para mantê-la abarcada, se põe a roncar, ela tenta imaginar onde ele, que nem para os preservativos tem, encontra dinheiro para comer e engordar. Tapa os ouvidos, pelo menos até o momento em que o trânsito da madrugada começa a abafar os roncos, e só pega no sono quase na hora de acordar. Desvencilha-se dos noventa e cinco quilos e toda vez, no chuveiro, só agora limpando das coxas os resíduos da noite, promete a si mesma, de novo, que ou ele traz preservativos ou nada feito hoje. Cantando debaixo da água, porque falta uma hora ainda para entrar na lavanderia, seria quase feliz se não lhe voltasse a todo instante o pensamento: e se eu engravidar? E se eu já engravidei?

sábado, 28 de abril de 2012

O homem que sabia javanês

O homem que sabia javanês tinha outras vantagens: era belo como os gregos reproduzidos em estátuas, cantava como um tenor italiano e dançava como um bailarino russo, embora tivesse nascido em Java.

Na Cultura

Nas estantes da Livraria Cultura, encontro Proust; mas é no seu café que a memória vai buscar a epifania das madeleines - o pãozinho de queijo seguro certa manhã por aqueles dedos que, no entanto, não perceberam o prodígio que operavam.

Omar Khayam

Li tantos poetas, e nenhum, com a exceção de Omar Khayam, me ensinou, depois de incitar-me a admirar os frutos e louvar-lhes a beleza, como colhê-los e prová-los. Depois de ler Khayam, as tâmaras jamais foram o que eram: aprendi que, assim como a brisa, e mais ainda que ela, temos o direito de tocá-las e trazê-las aos lábios e à língua, para saber como pode ser açucarado o sol.

Diário, 28 de abril

Hoje, senti finalmente, lendo "As coisas da vida", crônicas de António Lobo Antunes (edição da Alfaguara), que ele, se às vezes parece esmerar-se em escrever o complicado, o não usual, não é porque não saiba escrever o simples. Aconteceu, no caso, o mesmo que se deu quando, depois de ler "Ulisses" (ou ao menos tentar), li "Dublinenses". Na experiência com Joyce, assim como nesta, com Lobo Antunes, fica a ideia, de resto óbvia, de que, para subverter uma ordem, é necessário conhecê-la. Para quem possa julgar que o único leitor com quem se preocupa Lobo Antunes é ele mesmo, as sessenta crônicas estão aí para satisfazer aqueles mais afeitos às formas conservadoras. Resumindo, com satisfação: se eu tinha certa birra de Lobo Antunes, a responsabilidade certamente não era dele.

De joelhos

Ele se ajoelhou aos pés dela. Ela perguntou se ele havia enlouquecido. E ele lhe disse que aquela era a melhor, talvez a única maneira correta e digna de ele pedir um beijo a ela e considerar-se merecedor dele. Ela se ajoelhou também, deixando o rosto resvalar sobre o dele, e, mesmo antes de as bocas se unirem, os dois sentiram, além da dor nos joelhos e de uma mornidão auspiciosa, algo que depois jamais conseguiram expressar.

Sobre deuses

Como qualquer religião, a literatura nos engoda quando proclama a perenidade de seus deuses e nos incita a acreditar na nossa própria, se a eles formos semelhantes. De qualquer forma, se de algum deus, eterno ou não, quero ser súdito é de, digamos, Shakespeare.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Na Quinta

Na Quinta Avenida
ou em outra qualquer
tire o chapéu
ainda que inexistente
e cumprimente uma mulher

Sei que há muitas
avenidas aí
e mulheres também
e a que eu tenho
na minha mente
me desarvora
tão desarvoradamente
que nem sei
descrevê-la muito bem

Escolha uma
ao acaso
uma bela
bem bela
porque assim é ela
e a reverencie gentilmente

Pode ser
que eu falhe
mas pode ser
que calhe
de esta que
no meu coração
tem seu lugar
ser a mesma
que por esta procuração
você venha a cumprimentar

Cumprimente-a pois
e se ela depois
de cumprimentada
sorrir lisonjeada
não olhe para trás
siga em frente
porque só de imaginar
alguma coisa mais
entre os dois
que esse simples cumprimentar
meu ciúme mesquinho
se eriça envenenado
como um porco-espinho
ou como um gato eletrificado.

Prima-dona

Chamá-la não adianta nada

A morte
assim como o amor
se faz sempre de rogada

Não lhe mostrem atestados
não lhe escancarem hemorragias
não lhe tragam petições
abaixo-assinados
recomendações
radiografias

A morte ignora os laudos
as dores
os estertores
os apelos
as agonias

A morte
assim como o amor
gosta de se fazer esperada
e entra na peça
só quando quer
não na ocasião
que os morituros
acham adequada

E se a enfadarem
se a perturbarem
como agora
exibindo-lhe o doente
que com o corpo carcomido
por ela implora
como se fosse
um direito adquirido

bem pode ela
revigorar o moribundo
e levar para o túmulo
como vingança
essa criança
que no colo da mãe
abre seu primeiro
sorriso para o mundo.

Dois de trinta e seis e meio

Reconheço em mim, hoje, todos os defeitos que na minha adolescência eu via nos velhos. E o desprezo que eu tinha por eles é o mesmo que agora mereço. Anotem aí, por favor, enquanto ainda digo algo que se aproveite: eu me troco, sim, por dois de trinta e seis anos e meio, de preferência xucros, bem xucros, notívagos, beberrões e mulherengos.

Eleição matinal

Os periquitos invadiram minha rua e espatifam as manhãs com sua alegria. Estão aqui já há uma semana e, pelo alarido que fazem, todo dia elegem um rei.

No chão

Se ao menos não precisássemos esparramar as vísceras do amor ao sol, em cima dos classificados do jornal. Devemos fazê-lo, porém, para que os jovens não se iludam, como nós nos iludimos. Todo dia, numa das esquinas da cidade, estendemos o jornal, esperamos que as moscas apareçam e, com o cenário pronto, começamos nossa pregação. No início nem todas as pessoas acreditam que aquelas moelas, aqueles bofes sejam o que o amor nos dizia serem flores. Sempre há por ali um ou dois poetas. São os que mais fortemente se recusam a reconhecer a verdade.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Vida e obra

Talvez também
eu comece a mancar

Um louco manso
um louco manco
pode fazer mal a alguém?

Tropeçarei
como os meus versos
cambalearei nas rimas
claudicarei
na métrica
e minha vida
e minha obra
serão uma aférese
uma erda
uma osta
uma oisa só.

Doce inimiga

Me lembrarei de ti quando
Com a mesma inveracidade
Alguém jurar, me beijando,
Me amar com sinceridade.

Lembrarei de ti também
Sempre que alguém me disser
Que quer somente meu bem
E apenas mal me fizer.

E, de todos os que eu sei,
O teu nome é o que direi,
Quando alguém se aproximar

De mim sorrateiramente
E me chamar ternamente
Antes de o punhal puxar.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Nunca mais

Não se verão jamais
mas não sabem
e um deles mente
sobre um compromisso
que não tem
e diz ter pressa
e o outro também
diz estar atrasado
para um compromisso inventado

Ele ainda
antes do beijinho final
pergunta
que tal um cafezinho
ia bem não ia
mas ela diz não
o outro me deu azia

Ou é ela
quem propõe o café
e é ele quem
olhando o relógio diz não
já vou indo até

Poderiam dizer-se
tantas palavras ainda
tantas têm no coração
mas dizem só
vamos indo
vamos então

E nunca mais
se dirão nada
nunca mais

Isso foi naquele dia
em que pareciam
ter tempo para sempre

E quem hoje
isso descreve
(um deles)
escreve nunca mais
e no fim crava
como extrema-unção
um patético
ponto de exclamação!

O que te cabe

O que te cabe fazer,
Com o amor já morto, enterrado
E por teus olhos pranteado,
É te deixares morrer.

Como poderás viver
Se com ele foi sepultado
Da vida o significado,
Seu conteúdo e seu ser?

Queres ainda fingir
Que ao que fazes pode alguém
Dar o nome de existir?

Pode vida se chamar
Algo que só consiste em
Sofrer, se afligir, chorar?

O endereço da felicidade

A mulher na esquina distribuía folhetos, e as pessoas todas erguiam a mão como se neles estivesse o endereço da felicidade. A três passos de pegar o meu, inspirei o ar fundamente. Precisava parecer digno do momento. Levantei o braço, pronto para a dádiva. A mulher sorriu para mim, mas ignorou minha mão. Eu a baixei devagar, mas em seguida, quase confiante de novo, a ergui, em vão. De que pode servir um sorriso a dedos ávidos? Fui me afastando, seguindo pela rua comprida cheia de travessas, onde em nenhuma outra esquina estavam distribuindo a esperança.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Manifesto

O que nós queremos
uns dos outros
de fato
não nos enganemos
é o contato

Para as coxas
foram feitas
as mãos
para as mãos
as coxas
para todas as
partes do corpo
foram feitas
todas as
partes do corpo

Carne somos
e carne queremos
sexo sexo muito
nada além de sexo

Falamos de amor
é certo
porque Deus nos deu
a arte da falsa sinonímia
e o dom da simulação

E mencionamos flores
e exaltamos frutos
mas nossas flores
nossos frutos
nossa poesia
e nosso amor
têm odor salgado
e sabor de maresia.

Trecho de bilhete enfiado em bolsa

"Se soubesse o que você anda fazendo com elas, minha filha, seu noivo voltaria correndo de Paris, enquanto há tempo ainda de salvar talvez ao menos uma de suas partes pudendas."

No carro preto

Era a esta hora
mais ou menos
quando o sol vai embora
que ele chegava
procurava-o pela casa
e enquanto o afagava
conversava também com ele
dizia-lhe coisas
que ele não entendia
e por brincadeira ou
para ser compreendido
dava também uns latidos
que também não eram entendidos
mas soavam muito bem
como latidos caninos
originais

Era quem
mais o amava
na casa
mas já há dias
que não chega
nem o procura mais
nem o afaga
desde que naquela
caixa o puseram
e lá se foi ele
sem falar nem latir
subindo a rua
no carro preto.

Sobre amores

Talvez a mais bela e precisa parábola sobre amores que não se consumaram e mantiveram, assim, sua substância ideal, sua atemporalidade e, com esta, sua perenidade, esteja no poema Desejos, de Konstantinos Kaváfis:

"Belos corpos de mortos que nunca envelheceram,
com lágrimas sepultos em mausoléus brilhantes,
jasmim nos pés, cabeça circundada de rosas -
assim são os desejos que um dia feneceram
sem chegar a cumprir-se, sem conhecerem antes
o prazer de uma noite ou a manhã luminosa."

(Do livro Poemas de Konstantinos Kaváfis, tradução de José Paulo Paes, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

segunda-feira, 23 de abril de 2012

E também não

Leviano, te prometi
Tão grandes coisas, tão belas,
E logo me esqueci delas,
Nenhuma jamais cumpri.

Te disse que princesa eras
E, por seres, merecias
Os mais esplêndidos dias
E a graça das primaveras.

E vieram os dias, vieram
As estações, mas não eram
Esplêndidos nem graciosas.

E também não eram rosas
As flores murchas, sem luz,
Que a teus amados pés pus.

Silêncio

Entender que dias há
em que não há
o que dizer
(e saber não dizer)

Deixar que as palavras
como ovelhas
se nutram de verde
até o anoitecer.

A mão

É manhã ainda
mas ele segue
a loira gorducha pela noite
com passos furtivos
e a faz andar
ora devagar
ora com pressa
(a pressa dele
a falta de pressa dele)

Ele a seguirá até o quarto
que ele ainda não escolheu
(nem os dedos por ele)
mas onde
quando o momento chegar
(o momento dele
o momento
dos dedos dele)
com mão firme
e jeitosa
a despirá
e com essa
mão firme e nervosa
ora rápida
ora morosa
a possuirá
com o vigor
maquinalmente natural
de uma função matinal.

Tevê

Há um problema
em ligar a tevê

Você vê
um menino ferido
um menino baleado
um menino perdido
um menino encontrado
morto num matagal

Você estraga
seu domingo com isso
você sofre
você se sente mal

Há um problema
em ligar a tevê

Você vê
um menino ferido
um menino baleado
um menino perdido
um menino encontrado
morto num matagal

Você diz
ah é tudo sempre igual
não vou estragar
meu domingo com isso
você não estraga
você sofre
você se sente mal.

Cavalos

O que em nós
há de racional
afeta o nosso
ser animal

Ah, pudéssemos
refocilar-nos
na grama
comê-la
ainda com a terra
e alegrar-nos
e relincharmos
e escoicearmos o ar
e darmos alegres
cavalgadas
devolvendo o viço
à natureza
com nossas
bolotas esverdeadas.

domingo, 22 de abril de 2012

Poeminha fisiológico

As grandes glandes
e as pequenas
todas murcharam
ou murcharão
(questão de tempo apenas)

A gata

Ficou o tapete
e ainda alguns pelos cinzentos
até a próxima lavagem

Os olhos não
se fixam mais nele
dali não vêm mais miados
e os pés descuidados
já não se importam
de pisá-lo.

O compromisso

Tem um compromisso
com a morte
mas ainda um tanto vago

E enquanto
não se decide
pela corda
pela lâmina no pulso
pelo raticida
finge que vive

Não se nota nele
nenhuma diferença
a não ser
um sorriso
de quem se sabe superior
embora ainda
não tenha chegado a hora
de os outros saberem.

Fascination

O piano, que já esteve mais em evidência, agora ocupa um canto com seu aspecto austero. Pertenceu a uma bisavó que tirava alegres valsas dele. É o único sinal de sofisticação na sala, além de um busto de Chopin. Ontem de madrugada, a família julgou ter ouvido Fascination, a música favorita da bisavó, e como era o dia em que ela completaria cem anos, se viva estivesse, a ela se atribuiu a execução. Mas certas notas dissonantes, embora na sala acesa às pressas não houvesse ninguém, fizeram a suspeita recair sobre o gato, dado a travessuras. Como a tampa do piano era muito pesada, tanto para um fantasma quanto para um gato, o fenômeno ficou sem explicação. Mas o gato não se livrou da acusação de rachar a cabeça de Chopin, estatelado a cinco passos do piano.

A pedra e a estrela

O menino pegou a pedra, mediu a distância até o céu, concentrou-se e fez o arremesso. Esperou alguns segundos, mas, mesmo olhando fixamente, não viu a pedra ao lado das estrelas, como pretendera. E notou que faltava uma delas, justamente a mais brilhante. Procurou no quintal com a ajuda de uma lanterna, mas também ali não viu nem a pedra nem a estrela.

As cadeiras

Aa seis cadeiras ficaram quase quatro décadas na família, consertadas, reformadas, modernizadas. Quando não se podia fazer mais nada com elas, uma neta as vendeu a um negociante que pagou só o valor da madeira, sem ouvir o argumento de que numa delas se sentara certa ocasião um vice-presidente da república, até porque ninguém na família sabia dizer em qual delas havia sido e porque, se marca ou chancela tivessem deixado as vice-presidenciais nádegas, as sucessivas reformas a haviam apagado.

sábado, 21 de abril de 2012

A razão

A razão é a razão, ninguém há de querer negar-lhe a supremacia entre as virtudes do homem. Mas às vezes ela irrita por sua pose de infalibilidade, por querer dar a impressão de ter razões que só ela conhece.

Trai(du)ção

Tradução livre é, muitas vezes, eufemismo de tradução desleixada.

Despensa

Por décadas usou desbragadamente o amor como tema. Advertiram-no do exagero, mas ele, obstinado, persistiu no hábito, até notar, um dia, com fatal espanto, que não havia mais um só grão de amor em seu estoque.

Novos sinônimos

Quando caiu em si e descobriu que o amor ao qual se entregara não merecia ser chamado de sublime, celestial e divino, como ele tolamente fizera, começou a organizar uma lista que chama pouco modestamente de dicionário de novos sinônimos do amor. Vai anotando num caderninho as palavras que lhe parecem dignas de figurar na obra. Talvez com medo de plágio, não deixa ninguém abrir o caderno. Depois de muito insistir, consegui ver as quatro palavras que ele já registrou na letra P (anda já adiantada a lista). São, em ordem alfabética, como convém a um dicionário: peste, piorreia, praga, pústula.

Os pés

Entre dormir
e morrer
deve haver
um passo
ou dois
uma distância
que talvez se vença
num piscar de olhos
no meio de um sonho
e no entanto
ele acorda
toda manhã
e com desgosto vê
que seus preguiçosos pés
mais uma vez
não andaram nada
nem à noite
nem de madrugada.

Talvez não te importe

Quando eu estiver morto, talvez não te importe dizer que me amaste. A mim não importará que o faças baixinho, tão baixo que só um morto possa ouvir-te.

Gravata

Se eu estivesse morto, não gostaria que fosses a incumbida de me vestir. Quando chegasse a hora de dares o laço na gravata, meu pescoço se contrairia como o de uma galinha no cepo. A ti também não agradaria. Gostas de carne fresca.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Seis versos de Wislawa Szymborska

Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir.
Nos recusaste a multidão ululante.
Uma dúzia de pessoas na sala,
já é hora de começar a fala.
Metade veio porque está chovendo,
O resto é parente. Ó Musa.

(Do poema "Recital da autora", do livro "Poemas de Wislawa Szymborska", tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

Meu presente para ti

Pelo que foste
pelo que representaste
para mim
eu gostaria de dar-te
algo que fosse
o que eu queria dizer-te
e não consegui

Um poema
de Wislawa Szymborska
te diria tudo
que vi em ti
e te diria melhor

Já um livro
de Wislawa Szymborska
diria tudo que és
mas deveria
ser não o presente meu
mas o de alguém
muito melhor que eu.

Big C

Assim como faz com certa doença, cujo nome nunca pronuncia, ele não chama o amor senão de aquela coisa, aquilo.

Amanhã

Anteontem
deixaste para ontem

Ontem
deixaste para hoje

Por que não deixas
hoje para amanhã?

Por que responder hoje
ao tolo que amor te pede?

Sobre ele
além da tolice
pesa a velhice
e amanhã
não precisarás
a um morto responder.

Uma pessoa

Vieram as respostas para os poemas sem eco, para os apelos desconsiderados, para as aflições sem remédio. Foi simples. Um dia, ela olhou para ele sem olhar, como vinha fazendo havia um mês, e disse: "Conheci uma pessoa."

Bendito amaldiçoado

Amaldiçoado amor, por que dóis tanto, por que fustigas tanto a carne e a alma? Por que tantos espinhos, amor, por que tantos cravos, por que tantos gumes? Abençoado amor, por que dóis só isso, por que não dóis mais, por que não dóis tudo agora? Tristes serão os dias quando não flagelares mais, quando não açoitares nem zurzires, quando a memória, já muito velha e cansada, não te reconhecer mais como és hoje e te cuspir no rosto a pecha de farsante. Insuportável será a vida, amor abençoado, quando minha voz não tiver mais força para te amaldiçoar nem para rogar a Deus que te faça arder eternamente no mais horrendo dos infernos.

Decepção

Os cinco parentes que velavam o corpo foram tomar café. Um cão vadio entrou na câmara mortuária e deu três latidos curtos, mas, não vendo simpatia no homem deitado, saiu.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Ouropéis

Ah, berloques, ah, pechisbeques de outrora, que brilhastes nos pulsos e nas orelhas das mais belas mulheres dos romances de Eça, de Balzac e de Machado, quem quer encontrar-vos hoje precisa procurar-vos na goela dos dicionários.

Talvez

Talvez um dia, quem sabe,
Não estando ainda inteiro,
Possa mudar o roteiro
E tudo melhor acabe.

Talvez o meu roteirista,
Por algum germe atacado,
Adoeça e seja trocado
Por outro, mais otimista.

E possa o inverno talvez
Partir sem mim outra vez
E eu possa ficar à espera,

Depois de tão grande frio,
De um bafo morno, um cicio,
Um sopro de primavera.

R de Roth

Tantos entram na livraria, tantos mexem e remexem em suas estantes, livros são tirados e postos, reputações literárias se decidem nesse tirar e pôr. Tantos anos se passaram e, no entanto, hoje rocei minha mão na letra R, em Roth, ali onde fizeste passear também tua mão naquele dia, e busquei algo que pudesse haver permanecido do teu tato. Saí procurando nada mais tocar com ela. É noite, agora, e ainda olho para esta mão, esperando algum sinal, alguma lembrança daquela manhã distante, e um calafrio me percorre. E se eu tivesse estado todo esse tempo com essa epifania entre os dedos e hoje, desafortunadamente, a tiver devolvido àquele ponto, àquele mágico território do R em que Philip Roth, sem saber, recebeu de ti seu maior prêmio?

Primeiro o sol

Talvez ele tenha salvação ainda. Hoje, ao acordar, não foi para aquele nome nem para aquela obsessão seu primeiro pensamento. Pensou no sol. Depois de um mês de tratamento, foi a primeira vitória.

Cão heráldico

Podes olhar-me com orgulho agora. Foi bom teu trabalho. Tu me adestraste. Não mais te pedirei amor, nem com os olhos. Te olharei com o respeito que mereces, com a reverência que me ensinaste. Atenderei aos teus comandos só, a nenhum dos meus impulsos. Posso ficar o dia inteiro te contemplando, sem trair um só dos meus pensamentos. Sei que nada queres de mim senão isto, esta passividade de causar inveja a qualquer zen-budista. Sabes que dentro de mim borbulha ainda aquele vulcão que domaste. Sinto orgulho de mim, pelo que me ensinaste. Talvez tenhas orgulho de mim, também, embora nunca me exibas ao público. É provável que viessem a gostar de mim. Mas não me deixas sair para o mundo. Às vezes penso - tolo pensamento - que fazes isso porque um dia talvez sintas saudade de minhas patas em teu corpo e queiras para ti, somente, aquele fogo que um dia te dei e desejes também só para ti o espetáculo que posso dar, agradecendo tudo a ti, como se fosse um cachorro heráldico, um cão rampante com as patas dianteiras graciosamente empinadas.

Auto-homenagem

Deprimido, dorme das oito da noite às oito da manhã. Toma café e às nove, depois de fingir que leu o jornal, senta-se no sofá. Dali a cinco minutos reacomoda-se, deita-se e dorme até pelo menos as quatro. Há alguns dias vem prometendo a si mesmo que reagirá. Ontem, às nove e cinco estava sentado no sofá e assim continuou até o meio-dia. Dormiu todo esse tempo, mas ficou orgulhoso de sua força de vontade. Dormir sentado lhe pareceu uma transgressão bem menos grave. Depois de olhar o relógio e se certificar de sua façanha, resolveu homenagear-se. Estirou-se languidamente no sofá. Ronronava como um gato velho. Entrou logo num sono profundo e, pelo sorriso, devia estar sonhando com ratinhos de carne tenra.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Impressão

Me amas, acho, desde quando
Os olhos puseste em mim,
Ou fui eu que achei assim
E assim continuo achando.

Do que gostaste não sei,
Não tenho estilo nem jeito.
Já nasci assim, malfeito,
E jamais me transformei.

Se assim de mim tu gostaste,
Não vou te dizer que erraste,
Quem sou eu para julgar?

Podem, dize-me por Deus,
Olhos lindos como os teus
Por acaso se enganar?

Nem idade nem juízo

O coração não tem idade nem juízo. Se tivesse, como explicar certas repentinas esperanças de amor que meus olhos procuram em outros olhos, quando aspirar por piedade já seria demasiada pretensão?

O homem na vitrine

Hoje, diante de uma loja, me surpreendi com a feia velhice de um homem. Procurando ser discreto, aproximei-me lentamente para vê-lo melhor. E aproximei-me tanto, com meus olhos míopes, que quase encostei meu nariz no do homem. Ou, por outra, quase encostei meu nariz no meu próprio nariz. A vitrine devolvia minha imagem e, pego assim de surpresa, me envergonhei ao ver o rosto que tenho feito sorrir para mulheres no metrô e na rua, pensando em atrair pelo menos alguma simpatia. Jesus, que ridículo tenho sido. Até meus olhos, que eu supunha moderadamente verdes, estão de uma opacidade tão ferrenha que nem minhas lágrimas os fariam reverdecer.

Aquele tempo

Maravilhoso aquele tempo em que se podia oferecer à mulher amada o coração e, se parecesse pouco, também a alma. Hoje tudo isso é ou saudosismo ou má literatura.

Ana C.

Devo ter lido o jornal do dia seguinte, Ana Cristina, mas para mim ainda eras apenas uma menina que fazia versos e se matou. Eu não sabia, então, quanto virias dizer à minha alma, Ana Cristina, e como me arrepiaria toda vez que imagino os oito estágios do teu voo, as oito estações do teu martírio.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Ele

Parecia o mais feliz de todos, no velório. Era o morto.

Wislawa

Ele espera que haja tempo para chegar de Portugal aquele livro de poemas traduzidos de Wislawa Szymborska. A encomenda já completou dois meses, e nada. Cabral terá tardado tanto? Precisa consultar o livro de história. Não saberia escolher sua última refeição, mas o derradeiro poema há de ser de Wislawa.

Com essa linguagem

Te chamo às vezes de fada,
Outras vezes de rainha,
Outras tantas de adorada
Ou, então, de paixão minha.

Sou velho e, queira ou não queira,
Só sei assim me expressar,
Com essa antiquada maneira,
Com esse tolo linguajar.

Quisera poder louvar-te
Com mais espontânea arte,
Porém não consigo, amiga.

Perdoa-me, por favor,
E lembra-te de que o amor
Também é uma coisa antiga.

Gentleman

Apesar de tudo, deves deixar - como te ensinaram quando eras menino - a marca de tua boa educação: agradecer à dama depois da dança, sorrir-lhe, garantir que não, que as mãos dela não estão suadas e sobretudo não lhe dizer, porque as mulheres são muito sensíveis, que estás disposto a morrer por ela hoje mesmo ou daqui a dez anos, conforme ela preferir.

Em ouro

Devia ter, como premeditei, furtado um fio ou dois dos teus cabelos naquela tarde. Não teria sido difícil, e eu poderia agora, molhando-os com minhas lágrimas, se eles já não fossem isso, transformá-los em ouro.

Imolação

E, diante do teu espanto, repetir, fazendo cada sílaba retumbar como uma nota de órgão na catedral: "Dilacera-me, estraçalha-me, devora-me." E curvar meu pescoço como curvavam os primeiros cordeiros, quando ainda se consideravam sagrados os sacrifícios.

Nos teus dentes

Ter sido um daqueles que tiveste em teu poder, e ter fingido resistir, e haver ansiado por tuas garras e ter tido como última e venturosa visão o brilho agudo do sol nos teus dentes ávidos do meu sangue.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Alô, Alemanha

Todo dia vejo que surpreendentemente, quase miraculosamente, pelo menos dez leitores da Alemanha acessam o blog. Depois do Brasil, onde tenho parentes e amigos, e dos Estados Unidos, onde tenho filho, nora e neta, a Alemanha me intriga pela fidelidade dos leitores, que suponho sempre os mesmos dez abnegados. Fico imaginando quem serão eles e - como alguém arriscando um palpite naquelas antigas cartelas de nomes - às vezes me apanho a murmurar aqui: bom dia, Hans, bom dia, Helga.

A prova

Se querem saber como o amor pode estragar um homem, olhem para mim. Isto, assim. Não, não virem o rosto.

E ela

Amanhã ou depois
daqui a três
dias ou um mês
ele estará morto
e ela
não correndo mais
o risco
de ser vista com ele
em lugar nenhum
até agradável
achará a lembrança
dos dias em que
baixava a cabeça
quando pressentia
a presença
de um amigo próximo
ou uma prima distante
nas imediações

Livre de precisar
simular amor
ela até o sentirá
de vez em quando
como se sente
por um bibelô
quando ele
finalmente se quebrou
irremediavelmente
e não se pode mais
ver quão desengonçado
era com aquele esparadrapo
colando suas metades

Trazida agora
pela memória
a voz dele
não parecerá
tão desagradável
e ela
que não suportava
quando lhe perguntavam
agora gostaria
que lhe perguntassem
por ele
para dizer enfim
quantas qualidades
ele tinha
que lindos poemas escrevia
como conhecia
todos os truques da crase
e todos os títulos
dos livros
de Philip Roth.

Joguinhos

Muitos brincam com o amor como se não fosse mais que um desses joguinhos que circulam pelas redes sociais. Que suas gerações se multipliquem até o derradeiro dia do homem sobre a Terra e que amaldiçoadas sejam todas elas, até a última.

Lá fora

Às vezes, nas madrugadas insones, ele pensa ouvir lá fora um rumor, um toque de mão na porta. Já não se levanta para ir ver. Sempre que foi se decepcionou. Mas a simples expectativa, ainda que falsa, mantém em júbilo sua alma. Por isso, quase não há madrugada em que ele não se force a pensar que algo roça a porta, o trinco, algo que não é o vento.

domingo, 15 de abril de 2012

O caminho

Fui preparado para a arte, para a música, para a fruição das coisas da alma e do espírito. Este é sempre o melhor caminho para se sofrer na vida. Foi o erro que cometeu minha família, supondo que me faria bem. Falem de tripas aos seus filhos, de tubos digestivos, de vísceras, de coisas do dia a dia. Para cada Mozart há um milhão de redes de esgoto no mundo.

DNA

Agora, quando se deita, recorda histórias de antepassados que morreram durante o sono. Dorme sorrindo. É uma boa compensação para os casos de câncer na família.

Lição

Não é fácil reconhecer isso, mas não são os outros que são falsos; tu é que és tolo.

Num desses domingos

Depois que o amor morreu, ele voltou a ser um homem normal: sabe onde pisa, o que quer, o que pode esperar. E como é triste tudo isso, Deus, ele pensa, num desses domingos feitos sob medida para quem sabe onde pisa, o que quer e o que pode esperar: nada.

O amor e seu punhal

Um dia
ele voltará

Virá
mirrado
triste
e tão mudado
que na obrigação
se sentirá
de dizer
sou eu
ei sou eu
o amor
aquele que prometeu
te amar para sempre
está lembrado?

E te pedirá perdão
e dirá
que se arrependeu
e que se outra
chance lhe deres
verás como
ele está transformado
como está
melhorado

Abrirá os braços
para te abraçar
e quando
os teus tu abrires
aquela tua costela apunhalada
ainda mal cicatrizada
de novo doerá
e te avisará
que ele pode ainda
ter aquele punhal

E tu olharás
e na mão direita
dele verás
não inteiramente escondida
a mesma lâmina comprida
que um dia
procurou teu coração

Mas tu te recusarás
a acreditar
nos teus olhos
nos teus presságios
e o abraçarás
ainda que sintas
no teu ombro
só a mão esquerda dele
e adivinhes
que desta vez
(para tua desgraça
ou redenção)
a direita
não falhará.

Seis sílabas, duas lágrimas

Precisa lavar-se, limpar-se, desinfetar-se do amor, antes de saber se poderá viver outra vez. Enquanto o coração pulsar ainda atropeladamente a cada lembrança do que houve e do que não, ele será isto: um inútil, um desses incapacitados aos quais o governo acaba precisando dar assistência, um desses infelizes que só têm aptidão para contar uma história - sempre a mesma - e pontuar cada seis sílabas com duas lágrimas.

Nem isso

Teria seguido pela estrada que o amor lhe indicou, ainda que acabasse escarnecido como poucos homens foram. Estava pronto para isso e seus pés se inquietaram dezenas de vezes para iniciar a caminhada. Teria abandonado tudo: os amigos, a família, suas crenças, seu país. Teria feito isso com a alegria da sua saudável insanidade. Mas o amor não o considerou digno nem de se humilhar, e ele - como se ainda fosse possível - de vez em quando ainda abre a gaveta e olha nos mapas os lugares aos quais teria ido, e suspira por Índias, Novas Yorks e Japões.

Marionete

És sábia: conseguiste manter aquele estúpido nem muito perto nem muito longe de ti. Se ele não houvesse sido cegado pelo amor, teria visto em ti, além da graça e da beleza, essa astúcia, essa arte de manipular os cordéis, esse talento para fazê-lo, como uma marionete, dar passos para a frente e para trás, por três, quatro, cinco anos, sem que ele, no final, saísse um centímetro do lugar onde estava quando acenaste para ele com tuas falsas esperanças.

Cada pingo

O homem te esperou três horas sob a chuva. Estavas a dez quilômetros dali enquanto ele te imaginava chegando, e gozaste cada pingo e cada um dos cento e oitenta minutos.

sábado, 14 de abril de 2012

Alguma coisa

Alguma coisa há de ter ficado daquilo tudo, daquelas madrugadas em que tiveste o ímpeto de gritar para os outros edifícios, para a noite, para a cidade; eu amo, eu amo, eu amo. Alguma coisa há de ter restado daqueles versos que a alma te ditava. Alguma coisa há de ter permanecido daquele aroma de rosas que te embriagava quando pensavas nela. Alguma coisa deve ter ficado daquilo tudo. Alguma coisa deveria ter ficado.

Motivos

Existem tardes em que você pode estar tão machucado que é capaz de chorar por motivos absolutamente incompreensíveis, como ver um pôr de sol igual a milhares de outros ou ouvir alguém, no meio de uma aglomeração, citar um livro de Zoe Heller.

Vida e arte

A vida oferece assunto à arte; a arte oferece sentido à vida.

Parâmetro

Não existe nada como o amor para fazer um homem sentir, com exatidão, quão velho e tolo está.

Sem perdão

Digam o que disserem, ressalvem o que ressalvarem, acho vergonhoso um homem de setenta e três anos chorar por amor.

Necrológio

14 de abril. Dez anos antes, em 2002, ele estava lançando seu livro de maior sucesso. O jornal do dia 15 registrou o número de exemplares autografados naquela noite: 1.500 - e seriam mais, se a editora houvesse adivinhado e mandado mais livros. Tudo mudou. Há dois anos, não dá entrevista nem faz lançamento. Dois originais seus acabam de ser recusados. Deveria ter morrido dez anos antes. Se morrer hoje, terá talvez dez linhas de necrológio. E se morrer daqui a dez anos? Olha para baixo. Sempre sentiu vertigem ao olhar: são dez andares. Hoje a vertigem se transformou num convite, quase numa incitação. Antes dez linhas que quatro ou cinco.

O cheiro

Sou incompatível com a alegria. Nas poucas vezes em que ela tentou se manifestar em mim, eu a sufoquei. Jamais me habituei ao cheiro de suborno e corrupção que ela exala.

Todos estão

Os que te dei e os que não,
Os beijos todos estão
Nos lábios meus ou então
Na minha recordação.

Mérito

A tristeza há de ser sempre um mérito nosso, uma conquista - e jamais fruto de uma circunstância. A tristeza é um direito adquirido.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Sete versos de Ana Cristina César

No entanto
também escrevi coisas assim
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

Ela

Há quem tão alta se veja,
Tão perto do céu, da lua,
Que nunca na terra esteja,
Que nunca esteja na rua.

Não olha para os mortais
E não lhes dá atenção.
Se um dia os viu, não vê mais,
Chamá-la é chamá-la em vão.

Eu mesmo, que tanto a amei,
Que por amor a chamei
E não paro de chamar,

Sei que ela está decidida
E, podendo dar-me a vida,
Prefere a morte me dar.

De madrugada

E subitamente, como se estivesse cansado de doer atrozmente dia e noite, o amor começou a doer também de madrugada, mais atrozmente ainda.

A arte

O sofrimento é uma arte que precisa ser cultivada assiduamente. A contribuição dos outros para o desenvolvimento dessa arte jamais será superior à contribuição que nós mesmos podemos - e devemos - dar.

O ladrão

O homem, assaltado depois de receber todo o dinheiro do fundo de garantia, chega em casa e, chorando, diz à mulher: "Não posso comprar seu fogão novo, não vamos poder consertar a geladeira. Por que não me mataram, Dorinha? O ladrão sou eu. Sou eu. O ladrão do dinheiro da família."

Naquele tempo

A informática acabou com uma cena que se via nas agências de correio: o rapaz de olhos sonhadores afagando o envelope da carta para a namorada, como se o papel fosse um gatinho branco.

O exercício

Fingir que estamos vivos é um exercício que começamos a praticar depois dos cinquenta anos.

Um pinguim para a rainha

Malu é uma garotinha de quatro anos. Seria uma menina comum, se não fosse uma rainha. Ela não pertence a uma família real: a mãe é professora, e ganha muito mal, e o pai é auxiliar de escritório, e não ganha nada bem. Os avós paternos, e os maternos, são também gente simples. De onde, então, Malu tirou a ideia de que é uma rainha, ninguém sabe. O fato é que desde os dois anos ela é mandona, respondona, majestática. Quer tudo, exige tudo, e que nem pensem em contrariá-la: ela esperneia, grita, xinga e despeja sobre os desobedientes sua ira régia. Esses acessos, que felizmente são apenas dois ou três por dia, a fizeram ser conhecida, na família e até fora dela, como Rainha Maria Lúcia. Às vezes, esse tratamento assume um tom jocoso, e até depreciativo. Malu, porém, não dispensa nenhuma das prerrogativas que o título lhe concede. Um exemplo de como ela defende com veemência esses direitos pôde ser observado neste fim de semana. Ela estava em Santos, com o pai e a mãe, e, tendo achado a praia muito desinteressante, foi levada ao Aquário Municipal. Entrou compenetrada - era a primeira vez que ia lá - e começou a observar, com sua indiferença de rainha, as tartarugas, os polvos, as lagostas, os tubarões. Enquanto as outras crianças, em alegres tropelias, enchiam o imenso aquário de exclamações de júbilo, de surpresa, de admiração e de medo, ela olhava tudo como se já conhecesse aquilo desde antes de nascer. Parecia uma senhora de sessenta anos examinando uma coleção de tecidos raros com um pincenê. O pai e a mãe, quando ela disse que queria ir embora, se olharam, decepcionados: ela não tinha gostado. Por isso, foi enorme a surpresa deles quando a pequena rainha, assim que saíram do aquário, determinou: "Eu quero um pinguim." Diante do aquário, uma banca de camelô exibia miniaturas de animais marinhos. O dono da banca estava conversando com um vendedor de sorvetes e foi seu filho, um garoto de uns dez anos, quem atendeu a menina. Pegou um pinguim grande e um pequeno e os mostrou a ela. "Um de verdade", disse Malu. "O quê?", perguntou o pai. "Eu quero um de verdade", respondeu Malu, mexendo-se inquieta no colo dele. O menino ofereceu de novo o pinguim grande e o pequeno. "Eu disse de verdade"", berrou a jovem rainha, dando um tapa que jogou os dois pinguins ao chão. Enquanto Malu, o pai e a mãe se afastavam, o dono da banca puxou o filho pela orelha: "Menino burro! Nunca você vai aprender a trabalhar." O garoto pensou nos amiguinhos, que naquele momento deviam estar vagabundeando, jogando bola e nadando, e recolheu os pinguins com uma revolta que o fez desejar que a menina riquinha quebrasse as pernas, os braços, morresse. Quem ela pensava que era? Uma rainha?

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Amanhã

Toda manhã minha alma espera que seja a última, mas vêm o dia, a tarde, e à noite ela ouve resignada a voz que lhe mente uma vez mais: amanhã, amanhã.

Um doce nome de menina

Os dois homens estavam no balcão da padaria, tomando cerveja. Um deles não aguentava mais a ansiedade de falar de futebol, porque seu time, na noite anterior, tinha disputado uma partida decisiva. "Você viu o..." Mas o outro não estava ouvindo o que ele dizia. Sua preocupação e seu assunto eram outros: "Minha mulher está com palpite de que ela vai chegar antes da hora." "Ela quem?" "A nossa filha. Ela anda chutando a barriga da minha mulher com vontade." "Vai ver que ela vai ser jogadora de futebol", comentou o primeiro homem e, esperançoso de que o assunto enveredasse pelo rumo que ele queria, completou a pergunta: "Você viu o jogo ontem?" "Jogo? Você acha que eu tenho disposição de ficar vendo futebol, com essa história do nome me esquentando a cabeça?" "Aquele gol que a bandeirinha anulou foi um escândalo. Nem sei o que eu faço, se me aparece pela frente aquela..." "Eu só consigo pensar no nome da minha filha." "... Ana Paula." "Ana Paula? Não, não acho um bom nome. É, sei lá, muito comum." "O que você acha de Escarola?", disse o amante de futebol, furioso. "Eu não gosto muito. Prefiro espinafre." "Não estou falando de verdura. Estou falando de nome." "Nome? Que nome?" "Para a sua filha." "Escarola?" "É, você disse que não quer um nome comum e eu então achei que... Se você não gostou, esquece. Você não viu nem um pedacinho do jogo de ontem?" "Você está brincando comigo? Escarola? Se você não fosse meu amigo faz tanto tempo, eu ia achar que você quer arranjar briga comigo." "Briga? Eu brigar com você? Não tem hipótese. Briga saiu foi no jogo, ontem, você viu aquilo?" "Não adianta desconversar. Eu quero saber se você está falando sério. Escarola? Só se eu estivesse louco." "Louco por quê?" "Você ainda pergunta? Escarola pode ser um bom nome só se for para a filha dos outros." "É isso que eu estou tentando dizer faz meia hora. Escarola eu acho um ótimo nome para a sua filha. A minha se chama Selma. Toninho, ô, Toninho, me traz outra. Você viu o gol anulado, Toninho? Como é que pode uma coisa assim?"

Mulher e chuva

Eu estava na Avenida do Cursino, no início de um quarteirão ocupado por dezenas de pequenas lojas de autopeças. A manhã estava feia e chuvosa, mas nem pensei em reclamar de nada, porque à minha frente ia uma mulher dessas que costumamos chamar de inesquecíveis. Quando ela passou diante de uma das lojinhas, a chuva engrossou e os dois homens que estavam na porta entraram apressados. Mas, antes, um disse: "Que maravilha! Melhor que o sol, é ou não é?" Achei justo o elogio. Só uma mulher como aquela poderia despertar a poesia num homem simples. "Ô, bem melhor!", respondeu o outro. E o primeiro, para meu desapontamento, concluiu: "Veio na hora certa. Ninguém estava mais aguentando o calor."

A praça

Quando a passarela foi inaugurada, os pedestres descobriram que, além da segurança, tinham agora uma esplêndida vista da ampla e arborizada praça à qual, no tempo em que lutavam para escapar dos carros lá embaixo, não prestavam atenção. Nos primeiros dias depois da inauguração, era comum ver gente debruçada no parapeito, soltando interjeições de admiração, como se também a praça fosse obra recente. Num desses dias, um office-boy, olhando lá de cima, imaginava como seria bom passear de bicicleta ali, num domingo. Já economizava mentalmente para comprar a bicicleta, quando viu passar lá embaixo uma mulher de vestido curto que ele, se fosse mais íntimo dos adjetivos, definiria como magnífica. Logo esqueceu a bicicleta e se pôs a pensar em empreendimentos maiores. Encostado ao lado dele, estava um sessentão que comentou: "Mas que maravilha, hem?" "É, o senhor viu que pernas?" O homem cuspiu palavras e perdigotos num jato só: "Pernas? Que pernas? Eu estou falando da praça, seu tarado!"

O velhote

O sinal para pedestres abriu. O velho pôs o pé direito lentamente na rua, como se testasse a temperatura da água numa banheira. Depois, tão devagar quanto o direito, moveu o pé esquerdo, como se estivesse descalço e ali houvesse cacos de vidro. Foi aí que a moça de uniforme branco resolveu ajudá-lo. Manicure, ela estava atrasada, mas não podia deixar o homem atravessar sozinho a rua. O sinal para pedestres ficava aberto só meio minuto e, sem o auxílio dela, o homem ia ser um alvo perfeito para os carros dali a alguns segundos. Ela lhe deu o braço. Mesmo apoiado nela, ele parecia que ia desabar a cada passo. Quando chegaram ao outro lado, o peito dele chiava como uma cafeteira e a voz saiu como um suspiro quando ele disse obrigado. "De nada. Bom dia para o senhor." Quando ela se virou para retomar seu caminho, ele, já com melhor fôlego, perguntou: "Moça, sabe que você é bem gostosa?" "Olha, vovô. Quer saber? Vá pra..." A resposta dela não o abalou. Com um sorriso instantaneamente rejuvenescido, ele contrapropôs: "Eu vou. Eu vou. Não precisa mandar de novo. Mas vou melhor se você for comigo, minha delícia."

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Soneto da morte como prêmio (versão final)

Morrer conforme os ditames,
Morrer tranquilo, esperando
Que Deus acabe chegando,
Quer o chames quer não chames.

Morrer sem se lastimar,
Morrer como se isso fosse
Não mais que o exercício doce
De os olhos enfim fechar.

Morrer como se morrer
Fosse o prêmio mais ansiado
Que quisesses receber,

Morrer dormindo, enlevado,
Ao som distante de um sino
Ou de um discreto violino.

Chapeuzinho

Se eu fosse
amável
se eu fosse
doce
talvez me amassem

Um lar
se eu soubesse agradar
se eu sorrisse
talvez conseguisse

Mas posso ser amável
devo ser doce
se no dia em que fui
levaram-me
para onde me arrastaram
me mexeram
me bolinaram
me aproveitaram
me estragaram toda
e me largaram no mato
chorando sem consolação
e sem um centavo
para a condução?

Posso ser amável
devo ser doce
se assim como aqueles moços
(aqueles dois
que me comeram
e cuspiram
meu bagaço depois)
também os velhos
com aquela voz de vovozinhos
me dizem
vem comigo docinho
vem minha casa conhecer
vem ver meu gato
meu passarinho
vem minha bela
meu chapeuzinho
minha cinderela
que te dou depois um dinheirinho?

Caminhos

Quer sigas para leste, oeste,
Quer prefiras sul quer norte,
Não há caminho que preste,
Todos conduzem à morte.

De Rousseau, sobre a solidão

"Quando os homens me reduziram a viver só, senti que, isolando-me para me tornar infeliz, tinham feito mais para a minha felicidade do que o soubera fazer eu mesmo."

(De "Os devaneios do caminhante solitário", tradução de Fúlvia Maria Luiza Moretto, Editora Universidade de Brasília-Hucitec.)

terça-feira, 10 de abril de 2012

A bênção de dizer

Que Deus me enseje cantar,
Enquanto fôlego houver,
O amor que me coube amar
Enquanto vida eu tiver.

E que o canto que eu fizer
Para esse amor exaltar,
Nenhum homem ou mulher
Consiga nunca igualar.

E que eu, no fim da jornada,
Quando não souber mais nada,
Possa, seja como for,

Se não mais te enaltecer,
Ao menos a bênção ter
De dizer teu nome, amor.

Viventes

Lamentam-se, execram tudo, tudo abominam, mas apegam-se ferrenhamente à vida, porque não sabem fazer outra coisa.

Nossas alegrias

São tristes todos os dias,
E as tardes ensolaradas
Preparam as agonias
Das noites desconsoladas.

São tristes as alegrias
Pela memória guardadas,
São nênias, são elegias,
Cantigas choramingadas.

Tão doces eram, tão ternas,
Que as desejamos eternas,
E isso foi nossa desgraça.

Cada alegria provada
E em tristeza transformada
Não morre nunca, não passa.

Tanto e tão pouco

Foi tanto amor, tanto, que
Nada no mundo eu amava,
Nada no mundo importava,
Nada, somente você.

Deixei amigos, deixei
Projetos, planos, pendores,
Deixei afetos, amores,
E os livros abandonei.

Foi tanto amor e no entanto
Morreu como um indigente
Sem posse alguma e sem casa.

Morreu e agora num canto
Desfaz-se anonimamente
Dentro de uma cova rosa.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Aquela felicidade

Perguntas, nunca te cansas,
Se ela vai mal ou vai bem,
Renovas as esperanças,
Mas as respostas não vêm.

Perguntas com aflição,
Queres, precisas saber,
Mas ninguém sabe ou então
Ninguém quer te responder.

Melhor talvez que assim seja.
Pode ser que onde ela esteja
Possa agora desfrutar,

Com quem seja digno dela,
A felicidade, aquela
Que não lhe soubeste dar.

Duas pessoas

Triste é a velhice, quando tudo que nos resta é a memória. Contamos e recontamos nossos dias de ouro, nossos bailes, nossos amores declarados e jurados, e tudo aquilo nos parece tão extraordinário que, no fim da narrativa, temos a certeza de que se trata de duas pessoas na história - uma precocemente morta (a protagonista), e a outra subjugada pelo vício da mentira (o narrador).

O voo

Quem me dera eu tivesse hoje, correndo em mim, o sangue dos meus dezoito anos, aquela disposição de nada temer e tudo enfrentar. Ah, se eu pudesse pendurar-me no gradil deste viaduto e tentar um voo. Se eu quiser fazer isso com estas pernas de hoje, levarei tanto tempo que alguém me apanhará, me passará um sermão sobre como é sagrada a vida e me mandará ir cuidar dos meus netos. Os jovens estão certos em sua ojeriza aos velhos. Quem há de respeitá-los, se eles são incapazes de pendurar-se num viaduto, lançar-se no espaço e sair flutuando como pássaros?

Ideais

Assim como o amor, os ideais, quando já mortos, devem doer em nós toda vez que a memória lançar sobre eles sua pálida luz. Eles são a prova de que fomos melhores um dia e não soubemos persistir.

Testemunho

Melhor louvares que deplorares os ferimentos que o amor te impõe. Há muito tempo eles são o único testemunho de que estás vivo. Ai de ti quando não te doerem mais.

domingo, 8 de abril de 2012

O fruto

Não é este, não é, não,
Aquele pomo vistoso,
Aquele fruto valioso
Que nós tivemos à mão.

Aquele ao sol se mostrava
E com cintilações de ouro,
Como o mais raro tesouro,
Na tarde amena brilhava.

Não é este, que colhemos,
E que com tristeza vemos
Rapidamente murchar.

Aquele ainda, na memória,
Cintila em toda sua glória
E sempre há de cintilar.

A ameaça

Acordou, foi à janela e a abriu. Esperava um dia carrancudo, porque chovera de madrugada, mas foi recebido por um sol pleno e saudado por um coro de bem-te-vis. Assobiou inadvertidamente e, ao sentir que nos lábios começava a aflorar um sorriso, fechou a janela e pôs-se em guarda. Estava ameaçada sua melancolia.

Pois nisso razão não há

Do amor fui sempre cativo,
Nas suas galés remei
E enquanto eu estiver vivo
Súdito dele serei.

E , por ser ele meu rei,
Do seu jugo não me esquivo,
E me humilho e humilharei,
Sentindo-me sempre altivo.

Perguntam-me sempre se eu
Sou demente ou sou sandeu,
Pois nisso razão não há.

E eu digo, a quem perguntou,
Que, se o amor não me matou,
Nada mais me matará.

sábado, 7 de abril de 2012

Nosso adeus

Agora que o adeus se disse
E que esse adeus se aceitou,
Sabemos quanta tolice
Nosso amor nos inspirou.

Dissemo-nos tanto afeto
E tanto amor nos dissemos,
Tudo tão certo e correto,
E depois nos desdissemos.

Foram tantas inconstâncias,
Tantas tolas discrepâncias,
Tantos erros seus e meus,

Porém de todos, amiga,
Se permite que eu lhe diga,
O pior foi nosso adeus.

Enquanto

Em cada beijo pedido,
Em cada beijo beijado,
Em cada abraço perdido,
Em cada abraço apertado,

Em cada adeus decidido,
Em cada adeus adiado,
Em cada adeus abolido,
Em cada adeus lamentado,

Por serem coisas do amor,
Que tenham elas cantor
E seja inspirado o canto,

E soe vívido, enquanto
Longe ainda está o momento
Do imortal esquecimento.

O grito

É inútil chamá-lo agora.
Do teu amor não cuidaste,
Por ele jamais chamaste
E a hora não é mais a hora.

Passou o tempo, e a manhã,
Que bela podia ser,
Já não a podes obter
Nem hoje, nem amanhã.

Fizeste do amor tão pouco
Que vês agora, já rouco,
Que chamá-lo não adianta.

Mas tu o chamas, aflito,
Só para sentir teu grito
Arranhando-te a garganta.

Das flores

Não te perguntarei das flores que te mandei esta manhã. Tão bem me senti ao enviá-las que me agrada pensar que nisso, no envio, estava já uma felicidade tão plena que pedir algo mais seria desarrazoado. Não te perguntarei delas, embora não tenha ido com elas nenhum bilhete nem assinatura. Creio que imaginarás quem as mandou, assim como elas sabem com certeza que nasceram e cresceram para ser recebidas por ninguém menos que tu.

O cigarro

A mesa e as quatro cadeiras estão vazias agora: nem papéis, nem pastas, nem documentos, nem os importantes traseiros dos diretores da agência de turismo. Os planos para a temporada de férias de verão foram aprovados em meia hora, hoje é sexta-feira, o prédio está vazio e daqui a pouco alguém gritará na rua: "Olha! Fogo!" Os planos estão a salvo na memória dos diretores, mas a pergunta que eles se farão, quando souberem do incêndio, será sobre a apólice de seguro. Algum deles deve tê-la renovado. Instalações tão modernas e tão caras, nem três anos de uso, tudo perdido. E o cigarro estava tão perto de uma das cadeiras. Se ela o tivesse esmagado com um dos pés... Mas ela o deixou queimar o piso, a mesa e, no fim, ela e as outras três, tudo ardeu ali, justo na sala de reuniões da diretoria. Se culpa se apurar, ao menos reecairá sobre uma cabeça coroada.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Uma frase de Jean-Jacques Rousseau

"Aprendi assim, por minha própria experiência, que a fonte da verdadeira felicidade está em nós e que não depende dos homens tornar verdadeiramente infeliz aquele que sabe querer ser feliz."

(Do livro "Os devaneios do caminhante solitário", 2.a edição, tradução de Fúlvia Maria Luiza Moretto, Editora Universidade de Brasília-Hucitec.)

Neste dia, com esta voz

Falo de coisas simples, de árvores, de flores, de uma bola chutada um dia na direção do sol com a pretensão de derrubá-lo, de um dedo apontado para a lua e da decepção de esperar a verruga que não veio. Falo da infância e do seu cheiro, dos pecados imaginados, tantos, e dos outros, tão poucos, cometidos. Falo do amor, mas do amor que aprendi com os poetas românticos, do amor devotado mais à renúncia que à fruição, do amor chorado e doído, mais concebido que consumado, do amor cheio de olheiras, do amor tuberculoso definhando satisfeito em seu martírio. Falo de coisas simples e de como eu as amei. Falo de lágrimas, de como eu as prefiro ao riso, não por escolha mas por imposição do meu destino. Falo de coisas simples, de coisas de que não falei no devido tempo porque não sabia como dizê-las. Por isso, talvez minha voz possa soar falsa, por eu falar não de sabedorias adquiridas, mas de anseios que me marcaram a alma desde cedo e que não consigo esquecer. Falo de coisas simples, de coisas de que devia ter falado quando jovem, com esta voz de agora. Falo de coisas que já não me pertencem, ou não deveriam pertencer. Falo dessas coisas todas imperdoáveis e, por ser hoje o dia que é, vos peço perdão.

Aristóteles

Os peripatéticos hoje estariam na moda. Com a mídia exaltando diariamente os benefícios das caminhadas, Aristóteles talvez fosse garoto-propaganda dos tênis Nike ou Adidas.

A fonte

Estar apto a receber o poema e ter o cuidado, apenas, de transcrevê-lo sem pôr as mãos em sua delicada carne. Os poemas nascem perfeitos, como as mulheres, e ao homem cabe a humildade de acolhê-los exatamente como lhe vêm, esquivando-se à tentação de alterá-los com acréscimos ou supressões. Para saber se um poema manteve sua pureza na transcrição, basta olhar como ele fica na página: alguém terá a pretensão de, olhando o mar, achar-lhe defeito? O mar, os poemas e as mulheres provêm da mesma fonte.

Saída

O que a vida tem de mais simpático é essa constante possibilidade, essa iminência de acabar.

E vice-versa

Beijá-la muito, beijá-la,
E, como a brisa mais breve,
Tocar-lhe a face de leve,
E acariciá-la, e afagá-la.

Dizer-lhe coisas gentis,
Frases belas que somente
Quem ama, e ama intensamente,
À pessoa amada diz.

Beijá-la, afagá-la, ter
O inigualável prazer
De beijar e acariciar.

E, para vulgar não ser,
A ordem talvez alterar
E acariciar, e beijar.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Pausa

Fechar os olhos, dormir,
Esquecer por um momento
O insuportável tormento
De viver e de existir.

Anotação

Não querer, não persistir,
Afrouxar, esmorecer,
Bater-se para perder,
Obstinar-se em desistir.

O amor, esse mistério

Quer o trates bem ou mal,
Seja da forma que for,
Jamais saberás se o amor
Irá te tratar igual.

O amor é sempre um mistério
E tanto pode zombar
De ti e te ludibriar
Como te levar a sério.

Às vezes, quem o desmente
Recebe como presente
A chave do paraíso.

E há quem, cedendo-lhe tudo,
Logo perceba, contudo,
Que bem mais que isso é preciso.

Querido advérbio

Em certa época, por mais ou menos um ano, estive estranhamente apaixonado por um advérbio: mormente. Sei hoje - e acredito que soubesse também naquele tempo - que é uma palavra metida a besta, presunçosa e frequentadora do vocabulário daqueles homens que, em reconhecimento dos extensos e paulificantes discursos que proferem, são chamados de tribunos. Mas por um ano acolhi em meu coração esse advérbio, como se fosse o nome da mais amada de todas as amadas, e, se precisasse alongar um texto para que atingisse o tamanho previsto na diagramação, não tinha dúvida: colocava o mormente ao lado de algum verbo, lamentando apenas que não pudesse dar-lhe o destaque de sublinhá-lo, de colocá-lo em letras maiúsculas, em itálico ou em negrito. Assim é o amor, assim são os amores: geralmente inexplicáveis. Imagino hoje, pensando nesse mormente, que nem mesmo os tribunos acima mencionados tenham jamais amado essa palavra tanto quanto eu.

Terceirização

Não sei quantos personagens já matei em meus contos, felizmente quase todos inéditos, o que talvez me livre de ser catalogado como um serial killer. Lembro-me, porém, ainda com certa angústia, do meu primeiro morto e do remorso que senti. Sem coragem de narrar sua morte, eu a transmiti pela boca de outra personagem, sua filha. Mesmo com essa terceirização, eu me afligi e recordo-me de ter pensado no que sentiu Dostoiévski quando Raskolnikov empunhou a machadinha.

Horário de pico

Apesar dos percalços, acho que estou bem, mas parece ser uma opinião exclusivamente minha. Ontem ao meio-dia, no metrô, um senhor tão velho quanto eu (e de bengala!) me ofereceu lugar. Escrevo isto pensando no que dizia Pirandello sobre as diferenças entre realidade e ficção. A realidade não precisa ser verossímil, ela é verdadeira. Já a ficção deve, por sua natureza, estar com as justificativas sempre à mão, esperando o interrogatório. Resumindo: não preciso explicar nada sobre o homem de bengala e sua gentileza; devo cuidar-me mais e, principalmente, evitar o metrô nos horários de pico. Nunca se sabe o constrangimento que um homem da terceira idade pode causar a outro da mesma idade.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Os frutos

Os tempos estão mudados.
Seu sangue flui devagar,
O sol não chega a esquentar
E os frutos lhe estão vedados.

Com os olhos já embaçados,
Ele os olha com pesar,
Os olha e os vê balançar,
Esplêndidos e dourados.

Não são para ele, porém,
Ele sabe muito bem.
Seu tempo já se escoou.

Sente que a maior virtude
De um homem é a juventude
E a dele há muito murchou.

O que tenho

Não tenho comendas
nem honrarias
só escárnio recebo
e zombarias

Não tenho condecoração
alguma
e ordem também
nenhuma
nem sequer de prisão
(trajetória obscura é a minha
não matei o rei
não difamei a rainha)

O que tenho
é um vale-transporte
que conduz
de sul a norte
esta melancolia
que mia dentro de mim
como um gato tuberculoso
abandonado à sorte

O que tenho
e me cai bem
a minha riqueza
é esta tristeza
é esta ligação
que não tenho com ninguém
esta solidão
esta vocação
esta inclinação
esta aptidão que tenho só
para a autodestruição
e este flerte com o pó.

Mordaça

Curiosa essa história, amiga.
Posso tudo. Posso amar-te,
Morrer por ti, adorar-te,
Desde que nunca te diga.

Se digo (e por que calar-me?),
Dizes que é muita pressão,
Que eu enlouqueci, e não
Hesitas em censurar-me.

Então devo ser assim,
Guardar o amor para mim,
Jamais cantá-lo, exaltá-lo.

Isso sentido não faz,
É pura loucura, mas,
Se me pedes, eu me calo.

Cinco mulheres

Dos três homens, um se disse historiador, o segundo se proclamou poeta e o último assegurou ser capaz de possuir cinco mulheres em seguida, sem nenhum intervalo. A dona do lupanar sorriu e lhe disse que poderia mostrar sua façanha, desde que o fizesse ali, na sala, diante de todos os frequentadores. As mulheres seriam oferta da casa, segundo a expressão que ela usou, desde que ele as possuísse conforme havia prometido, sem pausa. Se falhasse, ainda que a falha se desse com a última, ele pagaria o preço que cabia a cada mulher. Sob aplausos, ele escolheu as cinco coadjuvantes de seu número e começou logo a se utilizar da primeira. Guinchava, arquejava, grunhia como um bicho e em vinte minutos tinha dado conta de quatro mulheres, à vista de todos. Quando, porém, se deitou sobre a quinta, caiu para o lado, como se estivesse morto. Mas não estava e, como era um cavalheiro, ao acordar desculpou-se por sua falha e pagou imediatamente o dinheiro que devia a cada uma das cinco mulheres e, isentando a quinta de toda responsabilidade por seu fracasso, declarou que talvez sua pane sexual se devesse ao fato de ela ser ainda mais bela do que as outras. Chamou por sua conta uma rodada de conhaque para todos os presentes e saiu com seus dois companheiros, sob geral admiração. Seu nome era José Batista, ou Baptista, e vinte anos depois daquela noite seu nome ainda é citado na casa de mulheres. O historiador e o poeta que o acompanhavam alcançaram renome depois, cada um em sua área, mas ninguém no lupanar, nem na cidade, guardou seus nomes.

As virgens

Os colonizadores garantiram à tribo que cada virgem entregue a eles multiplicaria por dois a colheita anual. Assim se fez, e houve tal fartura no campo que, no início da colheita, foi oferecida uma grande festa aos forasteiros. As antigas virgens, agora todas prenhes, dançaram com uma volúpia até então desconhecida pelas outras mulheres da tribo. As outras virgens, poucas agora, olhavam desoladas para o campo cujo verde chegava a cegar e ficaram se perguntando se seus pais teriam algo mais a pedir aos homens de barba eriçada e olhos azuis.

Imagem

Quando se lembra do amor, a imagem que tem de si mesmo naquela época é a de uma empregada velha, muito velha, num dia frio, muito frio, de joelhos no chão, esfregando com um pano o piso de cerâmica da cozinha, para fazê-lo brilhar.

terça-feira, 3 de abril de 2012

História

Quando o forasteiro pronunciou a palavra amor, o sol foi coberto por morcegos e corvos e um vento irado destruiu em cinco minutos toda a plantação.

Carneiro

Ir buscar lá em cima aquela nuvem que parece um carneirinho e trazê-la para os meus netos, desde que me prometessem brincar um pouquinho só com ele e depois devolver-lhe a liberdade. Carneiros ficam tão mais bonitos no céu...

Um a menos

Tirou do anzol o peixe - mais um daquela espécie cujo gosto ele abominava -, decepou-lhe a cabeça e atirou-o de volta ao rio. Aquele não voltaria a engolir sua isca.

Vodu

No alto da tela, onde seu pincel erguia uma cordilheira, ela esboçou um homem, no sopé de uma das montanhas, e afundou-lhe um punhal no peito. Deixou-o agonizar por alguns minutos e, quando ele não se mexia mais, ela o enterrou sob uma espessa camada de verde-escuro.

Fora do mapa

Estás melhor assim, sem
Os doces frutos do amor,
Sem o seu mel, seu calor,
E sem seu peso, também.

Estás melhor como estás,
Livre das noites vazias,
Daquelas toscas poesias,
Daquelas intuições más.

Estás sempre em teu horário,
Sem aquele drama diário
De no jornal procurar

Se em Amsterdã vai nevar,
Que tempo faz em Seul
Ou se chove em Istambul.

Luvas

Amor, quando fores me matar, usa luvas, eu te peço, não para atenuar minha dor, mas para te isentares da morte de tão ínfima criatura. Não deixes impressões digitais nem pistas. Deves agir com toda a cautela, quando chegar o dia. Ou então me pede, amor, que eu mesmo me encarregue dessa tarefa tão maçante e indigna de ti. O que pedes, amor, que eu não te faça?

Engano

Pelo amor fui ludibriado
Com tanta satisfação
Que mais lhe teria dado,
Quer me exigisse, quer não.

E mais o teria amado,
Com muito mais devoção,
Não tivesse ele cansado
De manter a encenação.

Hoje, da trama liberto,
Desde a hora em que desperto
Me ponho a me lastimar:

Amor, por que me deixaste
E não mais me procuraste,
Por que não vens me enganar?

Teus filhos

Que possas colher todos os dias teus versos, aqueles frutos mirrados de sempre, e acolhê-los se não com alegria, com tua falsidade mais bem encenada. São tua cara, eles. Se fossem melhores, duvidarias de tua paternidade. Fala continuamente com eles e, ao juntá-los no arquivo aos irmãos, elogia-os, como se todos pertencessem à mais ilustre das linhagens. Se não fizeres isso, quem há de fazê-lo? E jamais os deixes perto de versos de Dante, Pessoa, Wislawa Szymborska. Poupa-os do constrangimento. São teus filhos, lembra-te.

Tão vã

Tão prescindível, tão vã,
Tão alheia à alma dos dias,
Tão fútil tu poderias
Parecer nesta manhã.

Com este sol pleno, perfeito,
Que mais eu devo esperar,
Que podes acrescentar,
Em que podes dar jeito?

Nada há para ser mudado,
Tudo está certo, adequado,
Mas, tu não estando, tudo

Que deveria reluzir,
Vibrar e me seduzir
Está fosco, murcho, mudo.

Disfarce

O circo vai continuar ainda um mês na cidade e desde o primeiro dia os dois meninos estão estudando os detalhes do seu plano. Já definiram que cada um ficará uma semana com o elefante, quando eles o tiverem roubado. Já sabem o que um elefante come e também chegaram à conclusão de que o melhor horário para roubá-lo é entre as três e as cinco da madrugada. Só um pormenor ainda os detém: como disfarçar o elefante de tal forma que, se o dono do circo sair à sua procura, nunca perceba que ele é o mesmo que estará com eles.

Mesmo quando surdo

Tão fácil dizer que te amo
Que te digo a cada instante,
Digo e repito, maçante,
E não só digo, proclamo.

Tão fácil dizer que me amas,
Tão sem problema, e no entanto,
Embora eu deseje tanto,
Não dizes e não proclamas.

Com a voz que tenho, já pouca,
Incompreensível e rouca,
Cantarei ainda este amor.

Que bom se um dia o aceitasses,
Que bom se um dia o cantasses,
Mesmo quando surdo eu for.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Prece noturna

Que minha mão direita não saiba o que a esquerda está fazendo e ambas no sonho me estrangulem.

Manhã

Ele abre a janela, olha por uns instantes. Tudo está ali: as árvores, o sol, os pássaros. Nada mudou, é sempre o mesmo enganoso palco. Fecha a janela, vai para a poltrona. Também hoje não sairá. Talvez não saia nunca. Os bons dias se foram. Os maus, quem os levará?

Opinião

Ainda, em algum caderno,
Se tu fores procurar,
Algum poema hás de encontrar
Dizendo que o amor é eterno.

Sabes bem onde ele está
E em que página está dito,
Com tua caneta escrito,
Que o amor jamais morrerá.

Tu sabes onde encontrá-lo,
Seria fácil buscá-lo,
Porém achas melhor não.

Nunca admitirás por quê,
Mas quem te olha logo vê:
Mudaste de opinião.

Para sempre

Ao contrário da alegria, repentina e inconsequente, a tristeza há de ser fruída, provada aos poucos, digerida, assimilada. A alegria é para alguns momentos, a tristeza é para toda a vida.

O assassino

Agonizava e, apontando o copo e a embalagem de pílulas vazia no criado-mudo, sussurrava, como se denunciasse um assassino: amor, amor. Faltou dar o endereço.

Latim para sobreviver

Houve um tempo - uns cinquenta anos atrás - em que, movido pelo instinto de sobrevivência, me vi redator do Quem É Quem, edição brasileira do Who's Who, publicação destinada a catalogar personalidades (não se falava ainda de celebridades) da indústria, do comércio, das artes. Quem não fosse personalidade poderia adquirir o direito à honraria desde que se comprometesse com o editor a comprar determinado número de exemplares. Era necessário que alguém escrevesse um texto laudatório para justificar essa inclusão. Na entrevista a que me submeteu para explicar como seria meu trabalho, um senhor com jeito de vilão dos livros de Charles Dickens discorreu sobre a vaidade humana e me instruiu a não economizar adjetivos nos textos. Segui o conselho e me saí bem. Fundadores de fábricas de grampos de cabelo, de artefatos de madeira, de graxa para sapatos eram todos, quando eu falava deles, eminentes e pioneiros, no mínimo. Mas satisfação, mesmo, eu causei com um texto que começava com uma citação latina. Meu patrão não hesitou em me sugerir que frases latinas constassem de todos os textos. E assim fui, distribuindo In hoc signo vinces e Per aspera ad astram como se fossem comendas. Essas reminiscências me vieram ao ler a saborosíssima crônica de Humberto Werneck publicada ontem no Estadão. Ah, que saudade me deu aquele tempo em que sempre levava na axila, além do desodorante, um dicionário de citações latinas. Pena que não tenha tido a ideia de, com o dinheirinho que ganhava com essa atividade, comprar também para mim um cantinho entre as personalidades. Ah, que bom escritor eu sairia do meu texto.

domingo, 1 de abril de 2012

Preguiça

Deixa a vida passar. Nada mais lhe agrada, nada lhe interessa, nada o comove, mas é preguiçoso demais para se matar.

Autópsia

Se, feita a autópsia, não se encontrarem traços de amor em meu sangue, desconfiem. Foi o amor que envenenou a minha vida.

Como ele era

Lembro-me do amor como era:
Um raio tênue de sol
Anunciando o arrebol
Na manhã de primavera.

Depois o ruído, o clamor
Dos pássaros, a canção
Da natureza, a explosão
Do dia em seu esplendor.

E a tarde rubra, corada
Como uma maçã dourada.
Lembro-me do amor assim.

Não sei, não lembro, não quero,
Nunca lembrarei, espero,
De como ele foi no fim.

Antes só

Se aprenderes a sofrer e fores tentado pela alegria, é melhor ficares calado. A alegria é péssima companhia para um escritor.

Nem para isso

Se fosses uma árvore, serias a única a restar no parque depois do furacão. Até como objeto de destruição és desprezível.

Pregador

Falava de Deus com a boca imunda e salpicava os ouvintes com sua saliva, como se ela fosse a água do Paraíso.

Presunçoso artífice

O homem concebeu Deus à sua imagem e semelhança e quer que Ele tenha os dons da bondade e da justiça.