"Estremeceu-me uma notícia que li esta manhã no jornal; recortei-a e guardei-a em uma das gavetas de meu arquivo, entre esses tantos retalhos que nestes anos têm-me ajudado a viver.
Uma mulher, em um inverno rigoroso, vestindo apenas uma camiseta e uma calça, fugiu de um hospital psiquiátrico no desejo de procurar seu companheiro. Aproveitando uma distração do maquinista, roubou uma locomotiva e, fazendo-a funcionar sem dificuldade, começou sua odisseia. Ele havia trabalhado na ferrovia e a ensinara a conduzir trens e 'muitas outras coisas'.
'Se vocês soubessem o que é o amor, me deixavam continuar', dizia ao policial que a deteve, e, enquanto a levavam para a delegacia, aos prantos desesperados, gritava: 'Você nunca fez nada por amor?'
Quão mais humanos são esses gestos que os de tantos indivíduos que correm pela cidade toldados por seus projetos!
Quis resgatar essa história dentre meus papéis porque, de certo modo, quando a razão nos leva à beira da psicose coletiva, atos como esse são o mais parecido com uma salvação."
(Do livro de memórias Antes do fim, tradução de Sérgio Molina, publicado pela Companhia das Letras.)
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