quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
A flor
Tantas eram as flores do seu jardim que ele vivia quase só para cuidar delas, para que não as açoitasse o vento, não as secasse o sol e não as violassem os insetos. Numa decisão que lhe custou amargas lágrimas e por muito tempo a suspeita de que era um ser insensível, ele optou por cultivar uma só, para que pudesse tratar das outras solicitações da vida. As outras que contassem com a misericórdia de Deus e da natureza. Assim fez. Cedo observou que havia escolhido a mais frágil, porque ela lhe exigia mais do que todas as outras que havia relegado. Era tão bela e tão delicada que ele acordava, à noite, se uma brisa soprava na veneziana, e corria para o jardim, receando que o vento, aquele cigano, a carregasse. Punha então as mãos em volta dela e a protegia. Veio-lhe o hábito de conversar com a flor, e de cantar para niná-la. Só saía de casa em dias nos quais não visse ameaça de chuva forte, e voltava logo. Certa manhã, sua previsão falhou e, ao chegar da rua, encharcado, não viu sua flor. Chamou-a - tinha lhe dado um nome, como se fosse um gatinho amado - e continuou a chamá-la e procurá-la, mas só viu as outras flores, que ele abandonara à sua sorte e, sem que ele houvesse notado, vicejavam como nunca. Então, debaixo da chuva e dos relâmpagos, ele as chutou, todas, e pisoteou, até que nenhuma desse mais sinal de vida.
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