Não preciso
das manhãs de hoje
Bastam-me as de outrora
que fulgem ainda
com seu sol esparramando-se
espalhafatosamente
por todos os quarteirões
por onde menino
andei e desandei
Basta-me aquele cheiro
de terra
de seiva vigorosa
de sêmen da natureza
aquele desfalecimento
de rosa embriagada
putona enrustida
abrindo-se afinal toda
ao zumbido
das abelhas cobiçosas
Basta-me aquilo
que eu sentia
aquilo que eu
por uma precoce sabedoria
sabia que precisava reter
na pele
nas narinas
na boca
para quando tudo
não pudesse ser
senão lembrança
como agora é
Aqui onde tudo
é sempre noite
e conversas murmuradas
e injeções
e soros
e comprimidos
e Deus é citado
como santo remédio
basta-me isto
este sopro de uma brisa antiga
este sussurro de uma primavera
que já amareleceu
cinquenta anos
nas páginas dos jornais
e nas fotos dos álbuns
de uma primavera
em que um corpo
que era este e já não é
tinha a presunção de julgar
as manhãs feitas para ele
e gabar-se
de ter cinco sentidos
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
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