quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Nossa boa educação

Até aquilo que não
valeu valeu

Que bom poder
dizer isso
com boa educação
agora que
a paixão está sepultada
e o amor
parece uma piada
malcontada de salão

Que bom
poder agradecer
e dizer que
até o que não valeu
nada valeu tanto
valeu tudo
que bom
ah que bom

E que bom esquecer
aquelas palavras iradas
aquelas pragas
reciprocamente lançadas
aquela maldade
aquela impiedade
aqueles  xingamentos
que tanto doíam
que tanto machucavam
e no entanto exprimiam
apenas a verdade
naquele tempo
em que entre nós
ainda não havia falsidade.


Feridas de amor

A metáfora não é agradável, mas ele ainda sente a necessidade de apertar diariamente as feridas do amor e vazá-las com a unha, para que o pus escorra. Gostaria de fingir que não há ferida nenhuma, de mostrar-se forte, superior, mas já compreendeu que precisará viver assim até o dia em que o tempo, assim como matou o amor, mate sua memória.

O rapaz

Pouquíssimas vezes se encontrou com ela para o café, mas já sabe quais são os dias em que ela depois irá ver o rapaz. Não pela quantidade de vezes em que ela diz "o quê?, eu não entendi", nem pela forma com que ela apalpa o celular, como se ele tivesse tocado, nem pelo modo com que ela apressa o fim do encontro. Ele sente que ela logo estará nos braços do rapaz quando ela aparece com os cabelos molhados. Ele deve ser sedento como todos os jovens, ele pensa, entre irônico e amargo, enquanto a vê afastar-se depressa para pegar o carro no estacionamento, caminhando sempre pela calçada à sombra, para que o sol não vá beber nos seus cabelos a preciosa água que o rapaz impacientemente espera.

A mesma peça

Quando o amor insiste em se dizer morto, não engana ninguém. Mas ele continua a usar esse truque, como aqueles atores da Broadway que há quarenta anos representam, toda noite, a mesma peça.

O azul absoluto

Era um desses azuis aguados, tímidos, que quase se desculpam por estar no fundo de telas em que, no primeiro plano, aparecem anjinhos travessos. Era um azul de céu matinal sobre o mar, um azul infantil de aquarela, um azul de mansa azuleza. Era assim. Cansou-se talvez de ser coadjuvante, e foi se carregando de um tom mais áspero. Assomou à frente das telas, tornou carrancudas as manhãs, transformou-se em um azul adulto. Para que não duvidassem do seu novo estado, passou em certas tardes a abrigar relâmpagos que faiscavam antes do estrondo dos trovões. Mas era um azul ainda azul, se bem que sombrio. Ninguém, apontando o dedo para ele, lhe daria outro nome, embora um esnobe tenha chegado a chamá-lo de azul-ferrete. Então ele se carregou ainda mais, no limite. Sente-se gloriosamente azul agora, mas, quando surge no céu, os passarinhos voam aflitos para se ocultar nas árvores e as mulheres correm para fechar portas e janelas, enquanto os gatos se põem a miar lancinantemente, como se estivessem possuídos por Belzebu.

Como um vestido

Às vezes ela se lembra dele, como acontece às mulheres quando, convidadas inesperadamente para um evento, vão dar uma espiada no guarda-roupa em busca de um vestido que elas sabem muito bem que não encontrarão, mas mesmo assim passam e repassam a mão em todas aquelas velharias que, se saírem de lá um dia, irão para um bazar de caridade.

Oito versos de Walt Whitman

"Me entrego à terra pra crescer da relva que amo,
Se me quiser de novo me procure sob a sola de suas botas.

Vai ser difícil você saber quem sou ou o que estou querendo dizer,
Mas mesmo assim vou dar saúde,
Vou filtrar e dar vida a seu sangue.

Não me cruzando na primeira não desista,
Não me vendo num lugar procure em outro,
Em algum lugar eu paro e espero você."

(Do livro Folhas de relva, tradução de Rodrigo Garcia Lopes, publicado pela Iluminuras.)

Meu irmão, um passarinho

Posso gritar. Por que não?
Mas quem meu grito ouviria
E quem me socorreria,
Quem me daria sua mão?

Meu irmão fez isso, um dia,
Gritou sua solidão.
Havia uma multidão
Embaixo, mas quem o ouvia?

Gritou uma vez, gritou
Duas, gritou agoniado,
Depois do alto se atirou.

Não sei se ele no ar também
Gritou ou ficou calado.
Só sei que não pousou bem.

A lição

Tu me ensinaste a viver.
Tu me ensinaste a alegria,
Depois a dor e a agonia.
Não me ensinaste a morrer.

Amor, meu morto querido

Quando secar a última lágrima e se dissipar a derradeira lembrança, não terei mais o que dizer. Por todos esses anos, tu, amor, foste meu único assunto e, embora já estejas morto, eu exploro ainda vilmente o teu corpo. Não deixei que ele descansasse em vida, não o deixo descansar agora. Falei tanto de ti, falo ainda, sempre, porque não falar de ti seria não falar de nada, seria morrer. Pobre amor, que Deus cale enfim minha voz e que tu, livre do meu veneno, possas germinar na terra onde estás e dela faças nascer flores dignas não de mim, que desejei ser teu conforto e fui teu algoz, mas de quem venha a merecê-las.

Mensageiro

És tão fria que, se eu te mandasse uma rosa por um passarinho, tu o matarias com um dos espinhos dela.

Amar, e o que mais?

Amar já deveria ser suficiente. Querer ser correspondido, pretender fixar uma relação de troca, estabelecer uma retribuição baseada no mérito parecem itens de um manual de gerência. Amar é uma ventura tão grande que exigir algo mais é ser ingrato com a sorte. Quem deseja recompensa para o amor não o merece.

O escritor da machadinha

Minha mãe não se interessava por literatura, mas tinha horror a autores russos. Culpa de Dostoiévski e seu Raskolnikov. Se ela me via com um Tolstói ou um Tchekhov, invariavelmente me perguntava se era aquele "escritor da machadinha". Mesmo depois de eu dizer não, ela ficava bem atenta aos meus olhos, e às vezes perguntava de novo.

Vida de papel

Às vezes penso que fui estragado pela literatura. Ela vem me marcando tanto, desde meus doze anos, que sou capaz de cumprimentar Anna Karênina ou Emma Bovary na Avenida Paulista e não abrir a porta para uma sobrinha, em casa, por não reconhecê-la.

Convite do mar

À noite, o mar nos recebe melhor. Somos só nós e ele. As ondas dormem e nenhuma gaivota arranha o céu com seu grito. Vamos entrando, devagar. Por alguns momentos ainda temos noção de onde ficou a praia. Depois, tudo é escuridão. Mas um instinto nos indica o rumo. Reconhecemos a voz que havia muito tempo nos chamava. Somos puxados carinhosamente e vamos. Não sabemos quantos passos nos faltam. Sejam poucos ou muitos, chegaremos. À noite, não há guarda-vidas na praia.

Feitos um para o outro

Somos tão compatíveis quanto o rochedo e o mar. Passará uma eternidade e estaremos ainda como hoje, a nos bater, a nos confrontar. E o resultado será sempre este: som, fúria, espuma, só espuma.

Um trecho de Rosa Montero

"Sentiu pulsar dentro dele algo parecido com amor, um eco do seu antigo desejo por Marina. E por um momento quis recuperar o afeto perdido, enterrado debaixo dos estragos. Mas não, era impossível. Era um anseio ingênuo, irrealizável. Porque Marina era a assassina da felicidade, sim, nisso era como todas as mulheres: duras, implacáveis, insaciáveis em sua busca de perfeição. Ali estava, presa a ele como um cão de caça, exigindo tudo e mais um pouco, exigindo que fosse melhor do que era e humilhando-o com aquele eterno olhar depreciativo que era como um espelho para sua derrota."

(Do livro Instruções para salvar o mundo, tradução de Celina Portocarrero, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Matadouro

Ouviu mugidos, cada vez mais agudos e aflitos. Parecia que bois, muitos, berravam seu nome. Era noite, mas numa parte do céu uma frágil claridade, semelhante a leite batido, já antecipava o sol. Foi caminhando na direção dos mugidos. Aproximando-se, viu crescer à sua frente um prédio imenso, cuja brancura se destacava na treva. A impressão de que os mugidos diziam o nome dele acentuou-se. Já a cinco passos do que parecia ser a entrada, ouviu uma voz entre severa e brincalhona: "Puxa, até que enfim. Dez novilhos para matar e você não chegava nunca!" Ele olhou para cima, para as nove letras que a fachada ostentava: MATADOURO. Acordou encharcado de suor. Com falta de ar, abriu a janela. Era noite, mas numa parte do céu uma frágil claridade, semelhante a leite batido, já antecipava o sol.

Tanta saudade

Sentirei saudade
de você
de suas notícias
das más
e das propícias
sentirei saudade
sim

Sentirei saudade
das suas gatas dorminhocas
da papagaia nada loquaz
das suas cachorrinhas nobres
e daquele cachorrinho
tão caipira
tão sem classe
que por ciúme
ou por maldade
você não deixou
que eu amasse

Sentirei saudade
daquele que eu era
quando a conheci
e sentirei saudade sim
de quem você era
para mim

Dito isso assim
parece até
que você é a vilã
da nossa história
e você é.

Sinonímia

Disseste-me nunca mais.
Julgando cruel a expressão,
Te disse, e a mudaste então,
E me disseste: jamais.

A pontualidade da Morte

Sempre que acontece
dizem que foi
de repente

A Morte nos escolhe
já no primeiro dia
na maternidade
nos nutre de vida
nos acompanha
por nossas idades
envaidecida como
se fosse nossa mãe.

Enquanto não é
ainda a hora
nos mima tanto
nos trata ternamente
nos salva de cânceres
de acidentes
vive por nós

Desde o nascimento
não descuida de nós
nem um momento

Mas quando nos leva
para a casa que nos reservou
na treva macia
se diz levianamente
que foi de repente
que ela nos levou.

De entre os mortos

No corpo volta a pulsar
Um frenesi, um espasmo,
Talvez ainda não de orgasmo,
Mas um frisson similar.

Questão de idade

Chegada a maturidade,
Deve ser nossa atitude
Esperar sem ansiedade
Que venha a decrepitude.

Kama Sutra - CVI

Já nem olha para as coxas e para os braços da mulher de bíquini deitada sobre uma esteira, na praia. De vez em quando, ainda detém o olhar nos seios, que sobem e descem com suavidade, como as ondas. Mas o que o fascina no corpo é a perolazinha que cobre o umbigo e faísca quando tocada pelo sol. A mulher está de olhos fechados. Ele os fecha também e fantasia uma situação. Ajoelha-se ao lado dela e respira fundo. Baixa a cabeça e começa pela pérola, resvalando pelo umbigo, presenteando a língua com um sabor que ela nunca havia provado - um tanto áspero, um tanto salgado, deliciosamente perturbador.

O silêncio

Quem ama as palavras costuma ser vítima desse amor. Supomos que tudo deve ser tratado e resolvido por elas. E desandamos a falar, a escrever, a verbalizar. Nós nos afligimos com o silêncio, ele nos incomoda. Há uma infinidade de situações em que o silêncio nos salvaria e até nos daria a improvável felicidade, ou um vislumbre dela. Mas nós escolhemos as palavras, optamos pelo sofrimento que elas acabam nos impondo, às vezes só pelo doloroso prazer de narrar nossa desventura.

Não há dor

Não há dor mais dura que essas
Que nos martirizam quando
Vão todas se desmanchando
As nossas caras promessas.

Um sonho, quando é de amor,
Se morre, dói atrozmente,
De modo mais inclemente
Do que nenhuma outra dor.

Porém queixar-nos seria
Até uma hipocrisia,
Mesmo que pior ela fosse.

Pois também não há lembrança
Tão agradável, tão mansa,
E mais nenhuma tão doce.

Um trecho de Ernesto Sábato

"Cada vez que Maria se aproximava de mim em meio a outras pessoas, eu pensava: 'Entre mim e este ser maravilhoso há um vínculo secreto' e logo, quando analisava meus sentimentos, notava que ela havia começado a ser-me indispensável (como alguém que encontramos em uma ilha deserta) para se converter mais tarde, quando o temor da solidão absoluta já passou, em uma espécie de luxo que me fazia orgulhoso, e era nesta segunda fase de meu amor que haviam começado a surgir mil dificuldades; do mesmo modo que quando alguém que está morrendo de fome aceita qualquer coisa, incondicionalmente, para em seguida, uma vez que o mais urgente foi satisfeito, começar a queixar-se crescentemente de seus defeitos e inconvenientes."

(Do livro O túnel, tradução de Janer Cristaldo, Livraria Francisco Alves Editora.)

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Um trecho de Mario Benedetti

"Se eu algum dia me suicidar, será num domingo. É o dia mais desalentado, o mais sem graça. Quem me dera ficar na cama até tarde, pelo menos até as nove ou as dez, mas às seis e meia acordo sozinho e já não consigo pregar o olho. Às vezes penso o que farei quando toda a minha vida for domingo. Quem sabe? Vai ver que me acostumo a despertar às dez horas. Fui almoçar no Centro, porque os rapazes saíram para o fim de semana fora, cada um para seu lado.  Comi sozinho. Nem sequer tive forças para entabular com o garçom o fácil e ritualístico intercâmbio de opiniões sobre o calor e os turistas. Duas mesas adiante, havia outro solitário. Tinha o cenho franzido, partia os pãezinhos a socos. Duas ou três vezes olhei para ele, e numa oportunidade seus olhos se cruzaram com os meus. Tive a impressão de que ali havia ódio. O que haveria para ele nos meus olhos? Deve ser uma regra geral, isso de nós, os solitários, não simpatizarmos uns com os outros. Ou será que, simplesmente, somos antipáticos?"

(Do livro A trégua, traduzido por Joana Angélica D'Avila Melo e publicado pela Alfaguara.)

Um trecho de Rosa Montero

"Era um pensamento precavido e muito pouco otimista, mas, por outro lado, a noite tinha algo embriagador e promissor, como se alguém tivesse acionado o mecanismo da felicidade. Ou como se o mundo começasse a se encher de luz. De repente, todos intuíram que as coisas poderiam acabar bem. Sentiam-se empurrados pelo vento da boa sorte, que é aquela percepção que alguns jogadores de roleta sentem exatamente uns momentos antes de se arruinarem."

(Do livro Instruções para salvar o mundo, traduzido por Celina Portocarrero e publicado pela Editora Nova Fronteira.)

Um trecho de Guillermo Cabrera Infante

"... Aproveitei a folga para olhar uma mulher já madura (uma mulher madura para mim é quase uma adolescente para Balzac: aquela era uma femme de trinte ans) que era uma habituée. Vinha todas as noites ao Carmelo acompanhada por seu marido, um médico ou um barbeiro de aspecto científico. Sentavam-se sozinhos, mas um pouco depois havia um grupo de homens que vinham e a rodeavam e falavam com ela e riam com ela, e, às vezes, conversavam com ele. Gostava de seu riso, seu belo rosto, descobridor, suas pernas bem formadas, um pouco gordas, porém mais que de outra coisa gostava de sua generosidade total: com seu riso, com seu encanto, com seu corpo, que exibia a todo o universo. Em algumas ocasiões sentia um pouco de pena pelo marido, mas somente em algumas ocasiões. Cheguei a pensar que Maupassant teria gostado desse casal, apesar de que ela lhe teria agradado mais do que ele. Também pensei neste dia ou talvez em outro que Tchekov não teria gostado de nenhum dos dois e que Hemingway (o jovem H) teria gostado dele como herói autobiográfico."

(Do livro Delito por dançar o chá-chá-chá, traduzido por Floriano Martins e publicado pela Ediouro.)

De Hemingway, sobre Zelda e Sott Fitzgerald

"Zelda tinha ciúme do trabalho de Scott e, à medida que os conhecíamos melhor as crises se desenvolviam numa sequência regular: Scott decidia deixar de lado as noitadas em que se embriagava, a fim de começar um programa de vida sadia e produtiva. Começava de fato a dedicar-se ao trabalho, mas Zelda imediatamente se declarava infeliz e paulificada, lastimando-se tanto que acabava por arrastá-lo a mais uma noite de dissipação. No dia seguinte brigariam como cão e gato; fariam as pazes depois; Scott (tendo eliminado o álcool em longas caminhadas comigo) novamente se dispunha a trabalhar de verdade. Daí a dias tudo ia por água abaixo e o ciclo recomeçava, exatamente igual ao anterior."

(Do livro Paris é uma festa, tradução de Ênio Silveira, publicação da Civilização Brasileira.)

Um poema de Paul Celan

"Foste minha morte:
pude deter-te,
enquanto tudo me escapava."

(Do livro Cristal, tradução de Claudia Cavalcanti, publicado pela Iluminuras.)

Prêmio de consolação

Era uma amizade triste, como todas aquelas que nascem de um amor frustrado.

Mariazinha de régios Joões

Namorei esse
namorei aquele
esse era assim
aquele assim era

Alongava-se a tarde
e eu ali ouvindo
o nome das celebridades
com quem ela estivera

Eram cem duzentas
personalidades reais
talvez trezentas
talvez até mais

Todos nobres
todos ricamente herdeiros
e a tarde se alongando
e eu lá escutando

Pensei que seria indelicado
sair antes que fossem citados
o soberano da Inglaterra
e o príncipe da Baviera

Porque demorava essa citação
eu disse que era hora
pedi-lhe perdão
e avisei que ia embora

Já na outra calçada
eu a vi ainda acenando
ei espera aí espera
que ainda não te contei nada.

Tolinho

Não se conforma. Com sete décadas de idade, ser feito de bobo por uma garotona de cinquenta...

Gatos (para Cloé e Gohan)

Sabem que tudo na casa é deles. Poderiam ocupar o que quisessem, mas contentam-se com a sala e o sofá. Deixam que os humanos pensem que são donos de tudo, desde que continuem fazendo um cafunezinho bem gostoso e tragam a ração na hora certa.

Meu diário

Não sei como me classificaria um psicanalista, mas é provável que me considerasse digno de pelo menos meia dúzia daqueles distúrbios que requerem medicamentos de tarja preta. E, se ele não fizesse isso, eu me sentiria frustrado. Desde menino, sempre quis ser doente - e não um doente comum, mas um graduado. Entre ser triste e ser alegre, preferi sempre ser muito triste. Estar triste é minha alegria, e eu sempre me esforcei para obtê-la. Sou um tardio e obstinado fruto da leitura dos poetas românticos. Para eles, sofrer era a glória mais desejada, e morrer aos vinte e um anos, nos braços da amada, era a suprema aspiração. Eles sofreram, morreram aos vinte e um. Eu, inábil discípulo, caminho já pelo meio da sétima década e, quando leio os índices de expectativa de vida, receio que precise ainda lutar por muitos anos para manter esta tristeza morna e aguada dos que não merecem tristeza maior.

Nós, heróis do nosso tempo

Heróis do nosso tempo
para nós tudo é desafio
uma nova carreira
uma nova mulher
um novo apartamento
um novo casamento
uma nova baboseira
qualquer

Somos fortes
e sentimo-nos bem
na companhia dos outros
desses heróis
que assim como nós
vencendo desafios
são todos e cada um
filhos do século vinte e um.

Richard Burton e Liz Taylor, por Rosa Montero

"Ela, uma mulher vitoriosa e esperta, tinha prazer em submeter-se a um homem inteligente e frágil; e ele, conhecedor de sua própria fragilidade, tinha prazer em submeter-se a uma mulher poderosa. Esta é uma velha fórmula de casal que sempre funcionou bem, e com eles funcionou especialmente. Por outro lado, os maus-tratos públicos e as bofetadas e insultos de Burton em seus momentos endemoniados eram compensados por uma adoração evidente, pela certeza de que ela era a mulher mais bonita do mundo e a melhor atriz, pela ternura delicadíssima dos bons momentos. Nas anotações do seu diário, Burton deixa comovente e abundante registro de seu amor por Liz. 'Não me importaria em morrer, mas o que vai ser de mim se ela morrer? Acho que me transformaria num pneu de ônibus e rodaria para sempre sobre peixinhos inocentes', escreveu quando estavam juntos havia oito anos."

(Do livro Paixões, traduzido por Maria Alzira Brum Lemos e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)

De Rosa Montero sobre Eva Perón

"Quase tudo o que rodeia Evita soa assim grandiloquente e falso; seus discursos (redigidos por um roteirista de melodramas de rádio), sua autobiografia, seus gestos públicos... Mas o caso é que, por baixo de todo esse palavrório, estavam as terríveis condições sociais da Argentina da época, a fome e a miséria de milhões de seres humanos; e estavam também as lembranças pessoais da própria Eva, suas humilhações e angústia. Todo esse sofrimento, o público e o privado, eram auutênticos, numa extraordinária e quase perversa mistura de dor real e exagero fingido de melodrama. Eva Duarte, atriz de radionovelas, fez de sua vida a maior e mais bem-sucedida novela."

(Do livro Paixões, tradução de Maria Alzira Brum Lemos e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)

Gentileza

Encharcada pelo repentino temporal, ela se abrigou sob o toldo da padaria. Enquanto decidia se entrava para tomar um suco, uma mecha de seus cabelos molhados se antecipou, desceu para os lábios e deu-lhes de beber.

Toca

Está no fundo mais fundo do poço seco, mas ainda não é o bastante. Em dias claros, vê que o sol aparece sorrateiramente na abertura e o espia. Só à noite se acalma e consegue dormir, mas acorda cada vez mais cedo, e imediatamente olha para cima. Apesar de toda a cautela, pressente que não escapará. Não há como se esconder para sempre do mundo.

Metamorfose

A barata cresceu tanto que, certa manhã, andando pela calçada diante do colégio, foi vista por dois professores. Um deles apontou: "Ei, olha lá." "É o Kafka", disse o outro.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Sobre Dashiell Hammett e Lillian Hellman, por Rosa Montero

"O que une mais que o sexo, o que é mais forte que a atração abissal exercida pela carne? A dor, talvez: a agressão compartilhada. E o carinho que às vezes emerge da superação das agressões. O casal atípico formado pelo genial escritor de romance noir Dashiell Hammett e pela dramaturga Lillian Hellmann foi construído sobre o sofrimento e a ternura. Sua relação durou três décadas, ainda que na realidade tenham convivido pouco e além disso tenham tido outros amantes. Ela viveu quinze anos a mais que Dashiell, e nesse tempo inventou retrospectivamente, em suas memórias, uma história de amor luminosa e esplêndida. Não foi assim, mas sem dúvida a relação era tão profunda que só a morte pôde romper o vínculo. Suponho que aquilo que os unia (a melancolia, o desejo e a impossibilidade de se quererem bem, a necessidade, a frustração) é o que comumente chamamos de amor."

(Do livro Paixões, tradução de Maria Alzira Brum Lemos e Ari Roitman.)

Big C

Ele nos ataca
às vezes uma
às vezes
duas vezes
às vezes mais

Seus ataques
são mortais
mas como um gato
encurralando um rato
ele nos fere
nos maltrata
mas só nos mata
quando já brincou demais

No entanto o jornal
diz que fomos valentes
sofremos atrozmente
e que morremos
mas lutamos bravamente
até o final.

Palavras, sorrisos, amores

De todos os perfumes que sentimos, há sempre um que fica, nos acompanha aonde formos e, mesmo nos parques mais floridos, se distingue de todos. Há sorrisos que permanecem tão vivos nos nossos olhos que nenhum outro, nunca, parecerá sequer semelhante. E há amores que dão a impressão de ser únicos, e por eles morreríamos mil vezes. Por felicidade, todos os amores são iguais. Logo descobrimos que valem o que valem - e morrer uma vez por eles já é mais do que suficiente, sejam dez, quinze ou oitenta e quatro.

A alma

Triste é o destino de nossos corpos. Falam alto, pisam forte, ocupam espaço, se empertigam, se alardeiam, se magnificam. E tão breve é o seu tempo na terra. Quando chega a hora de deixá-la, empalidecem. Ouviram dizer que têm uma alma, e que ela é imortal. Mas como acreditarão nisso? A alma não fala alto, não pisa forte, não ocupa espaço. A alma não se empertiga, a alma não se alardeia, a alma não se magnifica. Sobre nossos corpos já começa a pairar um cheiro de morte - e nossa alma, onde está?

Kama Sutra - CV

Ainda hoje, quando ele a evoca,
Ela se faz tão presente,
Que até seu cheiro ele sente
Se com ternura se toca.

Memórias naftalinadas

Como são aborrecidas as confissões de velhos como eu. Ah, aquele café, como era saboroso!... Ah, aquele cinema!... Nunca houve igual!... Ah, aquela atriz!... Ah!... Ah!... Ah!... Todas as nossas frases terminam com exclamações e reticências. Como nos esforçamos para convencer os jovens de que houve um tempo em que, assim como eles, estivemos vivos - ou coisa parecida!...

Meu diário

Acordei hoje com um desejo que havia muito não tinha: estar doente e precisando de cuidados. Cheguei a pôr o termômetro, na esperança de uma febre. Olhei-me no espelho, mas meu rosto não se mostrou mais devastado que na véspera. Concentrei-me um pouco mais. Onde estava aquele meu dom de invocar infortúnios? Deitei-me no sofá e me cobri até o pescoço, para compor a clássica figura do doente. Tiritei e gemi com a maior convicção, disse ai meu Deus do céu, mas não houve meio de me sentir tão mal quanto queria. Desisti, afinal, com uma frustração imensa. Que saudade daqueles meses em que, menino e perigosamente enfermo, entre uma e outra dolorosa injeção de penicilina eu era tratado como um pequeno príncipe e tinha, como especial privilégio, o de pedir que me comprasem outro livro, assim que acabava um. Que vontade de ouvir de novo o retinir das espadas dos quatro três mosqueteiros, as frenéticas imprecações dos piratas nas sangrentas abordagens e os gritos de Tarzan ecoando na selva.

De Alfred de Musset, sobre o amor

"Viver, sim, sentir fortemente, profundamente, que se existe, que se é homem, criado por Deus, eis o primeiro, o maior benefício do amor. Não se deve duvidar, o amor é um mistério inexplicável. De quaisquer cadeias, de quaisquer misérias, e direi mesmo de quaisquer desgostos que o mundo o tenha rodeado, sepultado sob uma montanha de preconceitos que o desnaturam e o depravam, através de todas as imundícies nas quais é arrastado, o amor, o vivaz e fatal amor, não deixa de ser uma lei celeste tão poderosa e tão incompreensível como a que sustenta o sol no firmamento."

(Do livro A confissão de um filho do século, tradução de Paulo M. de Oliveira e Adelaide Pinheiro Guimarães, publicado pela Ediouro.)

Algumas linhas sobre Amedeo Modigliani, por Rosa Montero

"Certa noite trouxeram Modigliani tomado pela febre e delirando. Jeanne o colocou na cama e sentou ao seu lado para cuidá-lo. Era o mês de janeiro de 1920. Não tinham carvão, não tinham água (era necessário descer até a fonte do pátio para buscar, e a gravida Jeanne estava muito fraca), quase não tinham comida. Ficaram esquecidos por todos e trancados no estúdio durante uma semana, tiritando, bebendo álcool, comendo sardinhas enlatadas. Amedeo agonizava e Jeanne desenhava-se a si mesma se suicidando. E anotou em seu diário que nesses dias Amedeo sussurrou-lhe belas declarações de amor e palavras dulcíssimas. Certamente era verdade: certamente a amou então com a cumplicidade dos animais que compartilham o fim, com o desesepero dos últimos sobreviventes do apocalipse. Em seguida Amedeo começou a sofrer dores horríveis: tinha contraído uma tuberculose meningítica."

(Do livro Paixões, traduzido por Maria Alzira Brum Lemos e Ari Roitman.)

Planilha

Orgulha-se do bom-senso:
Tudo - até mesmo o fracasso -
Planeja de modo intenso,
Ponto a ponto, passo a passo.

Paisagem

Até o belo vai dando sinais de que me abandonará. Meu caminho é uma alameda de árvores mortas.

Meu diário

Ter escrito pouco e mal, ontem, não foi a pior coisa que fiz. Para quem vai morrer sem ter lido tantos escritores indispensáveis, o tempo perdido com a minha escrevinhação é que me atormenta. Na época (século passado, milênio passado) em que pus na cabeça a extravagante ideia de me tornar escritor, havia uma forma delicada de dizer que alguém era medíocre: dizia-se que era esforçado. Tenho sido isso - esforçado - em todas essas décadas. Houve tempo de sobra para perceber que a minha vocação, assim como a mentira, tinha pernas curtas e, se ela me permitia algum sonho, era o de chegar até a esquina - se a esquina não ficasse muito longe. Almejar o horizonte, como almejei, foi a catástrofe da minha vida. Tanto tempo depois, continuo esforçado, nada mais, e a única virtude que os leitores encontrarão em mim, se resolverem me acompanhar, é a de que não os cansarei: chegar à esquina continua sendo a minha mais arrojada aventura.

As marcas

Assim como aquele desenho esmaltado na xícara predileta, a marca de posse que o amor nos imprime vai se atenuando. É inevitável. No começo, quase não notamos. Depois, aos poucos, vamos percebendo. E, certo dia, talvez nem muito distante, vamos olhar, e onde está o desenho, onde está a amorosa marca? O tempo apaga tudo. Não lhe importa se está lidando com xícaras ou com histórias de amor.

Flores

Os dias passam em vão. Para o amor morto, já não importam a chuva, o orvalho, o sol. Talvez venham a nascer flores da terra sob a qual o sepultaram. Mas de que lhe servem flores, agora? Se forem para assinalar onde ele está, haverão de ser flores tristes e mofinas, como ele sempre foi, e ninguém irá parar para vê-las.

Couvert

O amor começou a perder o prestígio na década de 1960, e hoje não passa de uma das preliminares do sexo.

Futuro

Não, nós não riremos disto, daqui a alguns anos. Somos insanos, mas não somos cínicos.

Praia

Quando nos formos
deixemos na areia
não mais que um traço

Que o vento
para nos apagar
não precise perder
mais do que um segundo
e possa voltar
àquele ponto azul
em que o veleiro
espera um empurrãozinho
para velejar.

domingo, 27 de janeiro de 2013

O amor ou a vida

Quando, há muitos anos, precisei optar entre o álcool e a vida, cada vinte e quatro horas sem beber eram, mais que uma vitória, um alívio. Houve tempo em que eu podia dizer, se me perguntassem, por quantos meses, dias e horas eu vinha me mantendo sóbrio. Hoje a opção é outra - entre o amor e a vida -, mas o processo é o mesmo: contar minuto a minuto. Logo estarei numa etapa em que poderei talvez dizer exatamente quantos meses e quantos dias dura já a minha batalha. Com o álcool, foi assim. Com o amor, há de ser também - embora, no primeiro caso, o álcool fosse um claro antônimo da vida. Já o amor parece tão sinônimo...

Cançoneta

Quantos
como eu
do amor viveram
o apogeu

Quantos
pelo amor
sofreram o desespero
como eu

Quantos já não
morreram
pelo amor
Por que não eu?

Kama Sutra - CIV

Ele sabia como doeria a saudade, quando se disseram adeus. Não se enganou. Mas não imaginava que a saudade atacaria tão traiçoeiramente, usando armas tão pequenas e tão desleais - como a lembrança de como ela cantarolava enquanto ia tirando a roupa, de como às vezes até assobiava ao fazer isso, de como parecia sempre feliz nessas horas, como se estivesse praticando um exercício num parque. E de como ria gostosamente e dizia "vê se para com esse ciúme, Toninho", quando seu gato gorducho ficava arranhando a porta fechada. E de como ria mais ainda quando, depois de aberta a porta, o gato pulava nele para deixar no seu corpo as marcas que ele hoje olha com um sorriso condescendente e triste.

Algumas linhas sobre Yoko Ono, por Rosa Montero

"Yoko Ono deve ser uma das pessoas com pior imagem que há na Terra. A grande maioria das opiniões sobre ela é tão radicalmente negativa que chega a ser difícil acreditar. Foi qualificada de ambiciosa ao extremo, de dura, violenta e egocêntrica; de calculista e insensível. "É uma pedante insuportável", dizia dela Truman Capote: "a pessoa mais desagradável do mundo". Ono se considerava uma artista genial e reivindicava para si a criação do Flower Power, do happening e da arte conceitual; segundo ela, seu imenso valor não havia sido reconhecido por causa do racismo e do machismo. A obra de Ono não parece grande coisa: pequenas engenhosidades conceituais como fazer um quadro com um buraco no meio através do qual ela apertava mãos; happenings que consistiam, por exemplo, na aparição de Yoko em um cenário, vestida de preto e com umas tesouras grandes para que os espectadores fossem cortando suas roupas em pedacinhos; filmes vanguardistas como Bundas (retratos de 365 traseiros de pessoas) ou Sorriso (55 minutos com a cara de John Lennon mostrando a língua e sorrindo); e discos sofríveis e insuportáveis recheados de gorgorejos. Mas ela devia ter alguma razão quanto à discriminação por ser mulher e oriental, pois outros artistas atingiram o estrelato sem fazer muito mais que isto."

(Do livro Paixões, tradução de Maria Alzira Brum Lemos e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)

Pragmatismo

Já não se importa em perder o amor-próprio. Incomoda-o perder o alheio.

A verdade

No entanto, alguns presunçosos ainda dizem procurar a verdade e cada vez que nos encontram garantem, com voz misteriosa e sussurrada, que estão mais perto. Se os gregos não a descobriram, quem de nós poderá encontrá-la? E como ficaria pobre o mundo se um dia a verdade se revelasse, aguda e clara como o sol. Que tédio haveria... Fascinantes são as mentiras, multiplicáveis até o infinito. Como é belo ver alguém que sabe mentir. A mentira é uma arte. Todos nós a praticamos, todos os dias, mas, como em tudo mais, alguns são mestres. Tudo que o homem construiu de admirável e majestoso não foi procurando a verdade, mas o belo. A verdade nos asfixiaria. Quem precisa dela, e para quê? Entre a companhia de um padre e a de um pintor, prefira o pintor, e entre ler um grande filósofo e um grande escritor, prefira sempre Shakespeare. Kant? Cite-me uma frase dele que possa mudar a minha vida. Conhecer a verdade foi um fardo que tentaram nos impor e que sabiamente recusamos.

Kama Sutra - CIII

Seus dedos, tão velhos quanto ele, distraem-se às vezes em ficar contando e recontando os finos fios do novelo triangular e negligenciam outras tarefas que em nome do prazer tão bem executavam. Entretidos nesse contar e recontar, não se aventuram mais em torno do novelo nem exploram o interior úmido que anseia pelo toque. Também seus lábios, que poderiam compensar a inabilidade dos dedos, andam desatentos e quando se aproximam do novelo se aproximam sem o ímpeto antigo, como se fossem olhos e estivessem interessados apenas em conferir a conta feita e refeita pelos dedos.

Caridade

Peço-te que crispes as mãos, craves as unhas nas palmas, mordas o lábio, revires os olhos. Que recordes a liturgia do prazer e finjas revivê-la com a intensidade da primeira vez. Que possas fazer isso não porque te incitem meus versos, tão inúteis, mas por meus olhos, pisados pela ansiedade irrealizada de tantos cios, e pela veracidade deste meu rosto de libertino, cada dia menos crível. Que faças isso pelo que ainda há de haver de homem em mim - e que nem eu mesmo sei quanto é. Que faças isso, mesmo que ao fazê-lo te assome ao pensamento a incômoda palavra caridade. Venho perdendo tudo, a dignidade, o amor-próprio, a vergonha. E por que me importaria ser objeto de um sentimento cristão - embora de todos ele talvez seja o mais humilhante para quem o recebe?

sábado, 26 de janeiro de 2013

Um poema de Maria Teresa Horta

"SEGREDO

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar."

(Do livro Minha senhora de mim.)

Um poema de Casimiro de Abreu

"CLARA

Não sabes, Clara, que pena
Eu teria se - morena
Tu fosses em vez de clara!
Talvez... Quem sabe?... não digo...
Mas refletindo comigo
Talvez nem tanto te amara!

A tua cor é mimosa,
Brilha mais da face a rosa,
Tem mais graça a boca breve.
O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
És clara da cor da neve!

A morena é predileta,
Mas a clara é do poeta:
Assim se pintam arcanjos.
Qualquer, encantos encerra,
Mas a morena é da terra
Enquanto a clara é dos anjos!

Mulher morena é ardente:
Prende o amante demente
Nos fios do seu cabelo;
- A clara é sempre mais fria,
Mas dá-me licença um dia
Que eu vou arder no teu gelo!

A cor morena é bonita,
Mas nada, nada te imita
Nem mesmo sequer de leve,
_ O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
És clara da cor da neve!"

(Do livro As primaveras, publicado pela Livraria H. Antunes, 1955.)

Gato louco (para a Cleó)

Tive há muitos anos um gato que, de um dia para outro, mudou seu comportamento. Não brincava mais, não queria colo nem agrados. Passou a não comer e a não aceitar leite nem água. Enfiou-se atrás do fogão e de lá não saía. Nunca mais ninguém o viu dormir. Ficava ali, parado, como se fosse uma peça publicitária anunciando a breve inauguração de uma estátua. Movia só os olhos, e isso quando alguém se aproximava muito. Três dias se foram sem nenhuma alteração. A essa altura, toda a vizinhança conhecia o problema, e os comentários se multiplicavam: tinha comido carne envenenada, levado uma mordida de rato, era vítima de bruxaria. Para esses males, sugeriam-se soluções que iam desde a óbvia, de levá-lo ao veterinário, até algumas inusuais, como uma visita a uma curandeira e a defumação da casa com ervas. No quarto dia, já com a suspeita de que teria enlouquecido e logo começaria a se mostrar agressivo, eu consegui tirá-lo de trás do fogão, acomodá-lo na sua caixa e, pegando o carro, tomei o caminho do veterinário. Para melhor vigiá-lo, levei-o no banco da frente. Toda vez que olhei para ele, doeu-me a tristeza dos seus olhos, uma tristeza tímida, receosa, como se ele me pedisse desculpa por estar doente. Afaguei sua cabeça e ele me olhou mais triste ainda. Chegando ao veterinário, eu estava tão ansioso que tropecei num dos degraus da entrada e derrubei o gato. Ele, que ficara quatro dias sem se mexer, saiu correndo, atravessou a rua no meio dos carros e nunca mais o vi. Se um dia eu enlouquecer (ando perto disso), que minha loucura seja, como a dele, uma loucura calma, tímida, quase envergonhada. E que, se eu escapar quando estiverem me levando para a cura, que eu encontre um lugar como ele deve ter encontrado, um lugar em que não lhe tenham exigido nada e tenham se satisfeito com a pura verdade dos seus olhos, esse pobre gato de cujo nome nem me lembro mais.

Autossugestão

Tão humilde, tão fraco, tão inferior me fiz, que eu mesmo acreditei - e tanto, que senti pena de mim. Mas os outros, não.

Tolice

Que tolice eu ter imaginado que poderia ser importante na tua vida. Mesmo colocando-me sempre no centro do mundo, nunca consegui ser importante nem para mim.

Qualquer Manuel

Se eu pudesse ter sido um dos heterônimos de Fernando Pessoa, o menos brilhante de todos, que se chamasse Manuel Algo ou Joaquim Qualquer Coisa... Ou que ao menos fosse um Alcebíades do Rego, citado num poema de Manuel Algo ou Joaquim Qualquer Coisa...

Uma frase de Agustina Bessa-Luís

"A melhor prova duma real amizade está em evitar os compromissos entre aqueles que se estimam."

(Extraído de artigo de Maria João Martins, publicado hoje no jornal O Estado de S. Paulo.)

Uma frase de Henry Miller

"Se algum homem ousasse traduzir tudo quanto há em seu coração, expressar o que é realmente sua experiência, o que é realmente sua verdade, penso que o mundo se despedaçaria, que se reduziria a pedacinhos e nenhum deus, nenhum acidente, nenhuma vontade poderia jamais reunir novamente os pedaços, os átomos, os elementos indestrutíveis que entraram na formação do mundo."

(Do livro Trópico de Câncer, tradução de Aydano Arruda, edição da Bibliooteca Folha.)

Um trecho de Alfred de Musset

"Amor, oh, princípio do mundo! Flama preciosa que a natureza inteira, como uma vestal inquieta, vigia incessantemente no templo de Deus! Centro de tudo, por quem tudo existe! Os espíritos da destruição morreriam soprando sobre ti! Não me admira que blasfemem contra teu nome, porque não sabem quem és."

(Do livro A confissão de um filho do século, tradução de Paulo M. de Oliveira e Adelaide Pinheiro Guimarães, publicado pela Ediouro.)

Os que

Os que se lamuriam por amor, os que bradam por ele e dirigem súplicas atormentadas aos céus, os que se atam a crendices, os que recorrem a amavios, não têm noção de decência. Do amor há de se falar baixinho, com reverência. O amor é um assunto íntimo. Que arda no inferno quem, como eu, clama pelo amor como se estivesse anunciando na mais remota periferia pamonhas de Piracicaba.

A última tentação

Estás sozinho, outra vez, e sozinho estarás até o fim. O mundo te tentou hoje, com a mais doce das tentações, e mostraste o que és: um velho. Não atendeste a campainha, foste para o mais remoto canto da casa e nem respiraste, para não denunciar tua presença. A campainha soou, soou, mas só ousaste mover-te depois de ouvires o som não mais na tua casa, mas na vizinha. Estás feliz agora, na tua covarde segurança de velho. Sentado no sofá, na obscuridade da tarde que se vai, tens orgulho de ti. Mesmo que a campainha volte a soar um dia, já sabes que conseguirás resistir, ainda que venhas a ter o ímpeto de, ouvindo o toque na casa vizinha, correr e gritar ei, eu estou aqui, tocaram na minha casa primeiro - como hoje tiveste. Mas correr com o quê? Com essas pernas que mal conseguem esperar o dia em que as ajeitarem horizontalmente, lado a lado, com o par de sapatos das grandes ocasiões, e elas não precisarem andar nunca mais?

À maneira de Dalton

No hospital, a mulher lhe dá sopinha na boca, e depois de cada colherada lhe passa amorosamente o guardanapo nos lábios rústicos. "O que eu seria sem você, Maria? Ai, meu anjo, eu estou tão fraco, ai." A mulher o conforta: "Logo você vai estar forte que nem um touro, João, você vai ver." João geme. Acha que a morte é certa.  Se escapar, a primeira coisa que vai fazer é procurar Zuleica. Ah, Zuleica, com aquele dentinho de ouro na frente. Maria às vezes acerta suas previsões. Quando for ver Zuleica, tomara que esteja mesmo forte como um touro. Toma um pouco mais de sopa, geme: "Ai, Mariazinha, eu estou morto."

Meu diário (tarde)

Tristes são aqueles que assumem compromissos. Mais tristes, ainda, aqueles que os assumem com honestidade. E mais tristes, muito mais, os que assumem compromissos não com os outros, mas consigo mesmos. Há nessa palavra - "outros" - quase um convite à burla: quem são esses outros, que nos cobrarão se rompermos o compromisso? Fugir de nós é mais difícil. Nossa sombra nos acompanha, e nosso espelho, que tem nosso retrato falado, nos denuncia. Há muitos anos o compromisso de escrever, que assumi comigo, é mais um fardo que uma ventura. Sei que nunca escreverei como quero. Mas continuarei, perseverarei, persistirei. Um obcecado jamais abandona sua obsessão, e escritores ruins também assumem compromissos.

Hem?

Para os grandes acontecimentos
também sempre chega o momento
em que alguém vai citá-los
e mesmo quem deles participou
faz um ar abobado
de quem não se lembrou
e pergunta: hem?

Esmola

Às vezes me dás uma esmola (um olhar, ainda que oblíquo, um sorriso amestrado) e fico feliz como se eu fosse ou aquele rei que babava na sopa ou o bobo da aldeia.

Quando chegar o dia

Tu, que me fechaste a porta do teu afeto e o acesso ao teu amor, espero que sejas assim prestimosa e diligente quando chegar o dia de juntares minhas mãos, me cobrires com flores, para melhorar meu cheiro, e cerrares meus olhos para que nunca mais tenham a felicidade e a desventura de te verem.

Meu diário

Deito-me cansado, acordo cansado, levanto-me cansado. Viver é um exercício cada vez mais penoso. Quando os ideais morrem em você, e você precisa aceitar a realidade de que é só um corpo, não há como não se enojar de tantas artérias, tantas secreções, tantos fluidos, tantas vísceras, todos esses mecanismos estúpidos que se empenham em não permitir que você morra, mesmo que essa seja sua mais cara ambição. Ah, se ao menos nosso corpo fosse leve, como o de uma pluma ou o de um passarinho, e conseguisse ir até o horizonte e ser tragado por ele. Meu corpo me sufoca como uma vergonha. Ele me repugna, e vê-lo diante de mim, no espelho, é a prova mais cabal de que Deus ou não existe ou me abandonou.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Dois pequenos poemas de Izumi Shikibo

"Ouço dizer que
tornam os mortos às casas
esta noite mas
tu não tornaste à minha
desolada moradia."

*********************

"Ah, tu mesmo sabes
que nem sempre o coração
seguir podemos!
Se tu mesmo o teu não podes
eu ao meu muito menos."

(Do livro 14 contos de Kenzaburo Oe, traduzido por Leiko Gotoda e publicado pela Companhia das Letras.)

Kama Sutra - CII

As complicadas noções
De côncavo e de convexo,
Assim como outras lições,
Ele as aprendeu com o sexo.

Com o sexo aprendeu a ver
Que entre receber e dar
E entre dar e receber
Pelos dois convém optar.

Aprendeu também os vícios
De acariciar orifícios
E de adestrar sua mão

Na arte de tornar o gozo
Mais gostoso, mais gozoso,
E de eriçar a paixão.

Marinha

Que concha te guardará, música das ondas e da brisa marinha? Que menino te encontrará, e quando? Talvez ainda não tenha nascido esse menino que, ao te ouvir como soas agora, verá na imaginação o veleiro branco saltando graciosamente o mar azul-claro, como uma menina puxando a saia para cima, para não molhá-la. O menino talvez não venha a imaginar a gaivota, mas dela, mergulhando ao avistar um peixe, será o som agudo que a concha um dia lhe trará.

Um trecho de Joyce Carol Oates

"Amor. Lealdade. Fidelidade. Mas o tempo: será que tudo que é humano não está corporificado no tempo, inserido no tempo? O que ele queria seguir, o que ele acreditava que estava destinado a seguir, era algo mais profundo, mais profundo do que o tempo..."

(Do livro Educação sentimental, tradução de Lia Alverga Wyller, publicado pela Editora Anima.)

Um trecho de Henry Miller

"Quando ficava lá deitada com as pernas abertas e gemendo, ainda que gemesse daquele jeito para todo mundo, era bom, era uma demonstração apropriada de sentimento. Não fitava o forro com ar vazio, nem contava os percevejos no papel da parede; conservava a mente em seu negócio, falava sobre as coisas que um homem deseja ouvir quando está trepando em uma mulher. Ao passo que Claude - bem, com Claude sempre havia certa delicadeza, mesmo quando estava com alguém embaixo das cobertas. E sua delicadeza me ofendia. Quem quer uma puta delicada? Claude chegava a pedir que você virasse o rosto quando ela se agachava sobre o bidê. Tudo errado! Um homem, quando ardendo de paixão, quer ver coisas; quer ver tudo, até mesmo como elas vertem água. E, embora seja muito bonito saber que uma mulher tem uma mente, literatura vinda do cadáver frio de uma puta é a última coisa que se pode servir na cama. Germaine tinha a ideia certa: era ignorante e sadia, punha o coração e a alma em seu trabalho. Puta de alto a baixo - e essa era a sua virtude."

(Do livro Trópico de Câncer, tradução de Aydano Arruda, Biblioteca Folha.)

Um trecho de Georges Bataille

"Nem sequer por um instante imaginei, na violenta paixão que minha mãe me inspirava, que ela pudesse, mesmo no tempo do desvario, tornar-se minha amante. Que sentido teria tido esse amor se eu perdesse um mínimo que fosse do respeito sem limite que sentia - e que, na verdade, me desesperava? Aconteceu de eu desejar que ela me espancasse. Eu tinha horror desse desejo, ainda que ele se tornasse lancinante, algumas vezes; via nele minha trapaça, minha vileza! Jamais houve entre mim e ela nada de possível. Se minha mãe tivesse desejado, eu teria amado a dor que me fizesse sentir, mas não poderia humilhar-me diante dela: aviltar-me aos seus olhos teria sido respeitá-la? A fim de gozar essa adorável dor, precisaria, em troca, espancá-la também."

(Do livro Minha mãe, tradução de Maria Lucia Machado, publicado pela Editora Brasiliense.)

Um trecho de Guillermo Cabrera Infante

"Fitou seus olhos, sua boca, o nascimento de seus seios e - lembrou. Gostava de lembrar. Lembrar era o melhor de tudo. Às vezes acreditava que as coisas não lhe interessavam mais do que para poder lembrá-las depois. Como isto: exatamente este momento: os olhos, os largos cílios, a cor amarela de azeite de seus olhos, a luz refletida na toalha da mesa que tocava seu rosto, seus olhos, seus lábios: as palavras que saíam deles, o tom, o som baixo e acariciador de sua voz, seus dentes, a língua que às vezes chegava até a borda da boca e se retirava rápida; o murmúrio da chuva, o tilintar das taças, dos pratos, dos talheres, uma música distante, irreconhecível, que chegava de parte alguma: a fumaça do charuto: o ar úmido e fresco que vinha do parque: apaixonava-lhe a ideia de saber como recordaria exatamente este momento."

(Do livro Delito por dançar o chá-chá-chá, traduzido por Floriano Martins e publicado pela Ediouro.)

Tabela paulistana

São Paulo, puta metida,
Além do preço normal,
Tu cobras adicional
Se pedem uma mexida.

Um rapaz de futuro

Que pena tenho de mim
do rapaz que estudou trigonometria
história gramática filosofia
e até um pouco de latim

Que pena tenho de mim
do rapaz tão tolo e poético
Que a vida transformou num velho
patético entre os patéticos

Nos livros confiei tanto e hoje
eles apodrecem na estante
enquanto eu murcho no sofá -
frutos eu e eles que a morte colherá.

Pequena ode aos homens duros

Eu fui sincero contigo
E tão honesto me dei,
Que juro que não consigo
Saber onde foi que errei.

Dias tristes, os atuais,
Em que a verdade dizer
Não é qualidade mais,
Mas de tolo se fazer.

O tempo é dos homens duros,
Não há lugar para os puros,
E aquele que jura que ama

No grande teatro do amor
Não passa de espectador
Oculto embaixo da cama.

Chegará o dia

Chorarás cada vez menos pelo amor - e chegará o dia em que chorarás tão pouco que te sentirás ingrato e desprezível, como o mais ingrato e desprezível de todos os seres.

Vila Alpina

São Paulo
minha querida
quando eu me for
não poluirei
tua terra já poluída

Poluirei
por um momento só
bem reduzido
esse teu vento
escuro e apodrecido.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A pequena cicatriz

Um dia o amor será como a pequena cicatriz que você tem na perna desde os dez anos, quando caiu da bicicleta. Toda vez que você quer mostrá-la, não a encontra. Mas nas noites frias ela ainda dói um pouco.

Kama Sutra - CI

Agonicamente seguro pela mulher - que o arranha nas costas e com os tornozelos fincados nas suas coxas o impede de fazer qualquer movimento que não seja aquele no qual ela busca o prazer -, ele sabe que ela não o deixará escapar enquanto ela não gemer os cinco minutos de sempre, depois dos quais ela se afrouxa toda e, como se fosse alguém que tivesse recebido a mais especial das graças, murmura obrigada, obrigada, obrigada, até que o sono a imobiliza como se estivesse morta. Ele se esforça, se esfalfa, mas parece cada vez mais difícil atender a mulher, que continua porém a incitá-lo, agora com palavras que mexem com seu orgulho de jovem macho. São essas que, despertando seu ódio, lhe devolvem a força e o fazem redobrar as estocadas. Quando, além da mulher, a cama se põe a gemer, sacudida como um pequeno barco na tempestade, ele começa a gritar à mulher que nunca mais duvide dele - e assim, enlaçados como dois lutadores num ringue, ele e ela são vencidos por espasmos tão intensos que é como se o quarto tivesse sido atingido por um maremoto.

Bijuterias literárias

Dos truques que encantam o jovem escritor, o mais fascinante talvez seja a aliteração. O novato entra em êxtase quando consegue fazer uma frágil folha farfalhar ou a lânguida lua lançar seu pálido brilho no lago. O sentido importa menos do que o efeito. A onomatopeia melodiosa faz o aspirante a escritor sorrir como se lhe tivessem atribuído o Nobel. Com o tempo ele irá descobrindo que uma das mais sérias tarefas de um escritor é fechar os olhos para essas bijuterias. Os bibelôs devem ser varridos das estantes da literatura - e também metáforas ruinzinhas como esta.

Só um pouco

Ferido mortalmente pelo amor, ele é patético quando tenta ocultar o sofrimento. Age como aquele personagem de piada que, depois de um acidente no qual havia quebrado vértebras e costelas, dizia aos amigos que iam visitá-lo no hospital: "Dor? Nenhuma. Só doi quando eu respiro."

Kama Sutra - C

A flor escura, tocada por dedo hábil e autorreverente, faz flutuar no quarto um odor salgado, um aroma morno, um perfume de mormaço. É o momento em que, toda noite, Lúcia pensa no marinheiro imaginário a quem deu o nome de Jim.

Desigualdade

Eu, que tive tantos anos para ser ridículo - e fui -, não disponho de quase mais nenhum tempo para livrar-me da vergonha. Só para limpar este palco, varrer todos os ovos, todos os tomates e sair pelos fundos, eu precisaria de uma eternidade.

Matéria-prima

Em tempos como este, amenos,
Em que me dá trégua o amor,
Sofro pouco, escrevo menos,
Quem agradece é o leitor.

"Comediazinhas", de Wislawa Szymborska

"Se existem anjos
acho que não leem
nossos romances
sobre esperanças frustradas.

Receio que - infelizmente -
nem os nossos versos
reclamando do mundo.

Os espasmos e os gritos
de nossas peças teatrais
devem - suspeito -
impacientá-los.

No intervalo de seus afazeres
angélicos, isto é, não humanos,
assistem antes
às nossas comediazinhas
do tempo do cinema mudo.

Aos que se lamentam,
rasgam as vestes
e rangem o dentes,
preferem - penso eu -
aquele pobre-diabo
que agarrra o que se afoga pela peruca
ou faminto devora
o cordão do sapato.

Acima da cintura peitilho e pretensão,
abaixo um camundongo assustado
na perna da calça.
Ó sim,
isso é que é diversão de verdade.

A perseguição em círculos
vira fuga à frente do que foge.
A luz no fim do túnel
se transforma num olho de tigre.
Cem catástrofes
são cem alegres piruetas
sobre cem precipícios.

Se existem anjos,
deveriam - assim espero -
estar convencidos
dessa alegria que oscila no terror
e nem sequer grita socorro socorro
porque tudo se passa em silêncio.

Ouso até imaginar
que aplaudem com as asas
e que de seus olhos caem lágrimas
pelo menos de riso."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)






quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Kama Sutra - XCIX

Depois de lhe recusar por mais de uma semana os seios, ela hoje coloca o relógio de pulso no banco da praça, entre os dois, e diz: tá bom, mas ouve bem, só um minuto. Olha para os lados, para se assegurar de que não há ninguém por perto, e puxa de dentro da blusa um, depois o outro. Pela facilidade com que os tira agora, ele sabe que ela está sem o sutiã que nas noites anteriores ele havia apalpado, arranhado, mordido, para tentar acender nela alguma luxúria. Ela os segura por baixo e os oferece, como se ele fosse um bebê para quem conseguiram uma ama de leite. Ele se debruça sobre um, sobre o outro, sobre os dois, como um enjeitadinho de asilo que não sabe quando mamará de novo. O relógio já deve ter marcado dez minutos, quinze, mas permanece esquecido no banco, enquanto ele se farta, engasga, geme de satisfação, e ela, sem se importar agora em se mostrar vencida, acaricia os cabelos dele, mais, mais, para que ele nem pense em tirar os lábios de onde eles estão.

Meu diário

Sem nada importante para lhes relatar, conto-lhes esta coisa singela: resolvi - com que força de vontade - sair do sofá esta manhã e andar. Foi bom. Dou-me bem com as árvores e as flores do caminho. Não lhes conheço o nome, nem elas o meu. Aprecio-lhes o aroma, e elas não se queixam do meu cheiro ruim de homem. Não lhes importa quem sou, o que faço, nem parece interessar a elas o que me vai pelo cérebro atormentado. Presumo que éticas e morais não lhes façam falta. Não querem saber da minha vida íntima, como uso o corpo, a boca ou a mão, e eu também não lhes pergunto qual é o lance delas com os passarinhos.

Um poema de Dalton Trevisan

"UMA ROSA PARA JOÃO

"Por volta de três da manhã
os moradores da favelinha
ouviram gemidos na rua
uma voz agonizante pedia socorro
com medo ninguém acudiu

de manhã o morto ali em paz
já não tinha nenhum lugar pra ir
o único sem pressa pra nada

o cabo André e o soldado Tito
deram com a cena nunca vista

o corpo sangrado de golpes
os braços abertos em cruz
o punhal até o cabo no peito

uma pequena coroa de rosas
em torno do rosto barbudo

uma flor espetada na boca

o próprio assassino quem diria
cuidou das pompas fúnebres

foram ao todo quinze pontaços
oito no pescoço
quatro no rosto
um no peito um na testa outro na mão

três montinhos de terra
aqui a cabeça ali os pés
demarcavam o corpo

mais o punhal de sangue
o velho par de chinelos
o boné com a inscrição Jesus
um cachimbo partido
a garrafa de pinga vazia

o inventário de todos os bens
no último dia de uma vida

o colega Pipoca deu o serviço
o nome era José João de Jesus
morador de rua
catava latinha
virou andarilho por conta do vício
pela droga e a cachaça

depois de tudo perder
sem mais nada
nadinha de nada
trocando a mulher
por trinta pedras
vendeu a filha
por um tantinho de pó."

(Do livro O anão e a ninfeta, publicado pela Editora Record.)

Um trecho de Hugo Almeida

Agora é sério, amorzinho, vamos dormir. Eu, quer dizer; porque você já deve estar sonhando com os anjinhos todos do céu tem um bom tempo, eu é que não consigo te largar e penso que você está entendendo tudo que eu tô pensando. Pelo menos eu converso assim com alguém. Cresce logo pra gente conversar de verdade. Cresce, amor."

(Do romance Mil corações solitários, publicado pela Editora Scipione.)

Um trecho de Guillermo Cabrera Infante

"Me olhou. Me olhou com seus olhos cor de opala de azeite de urina. Me olhou enquanto comia e sorriu. Comia com correção quase perfeita, exceto pelo leve americanismo do garfo que passava da mão esquerda para a direita para levar comida à sua boca. A mim, que sempre me preocupa a pequena perfeição (a relva cuidada de um parque, as meias combinando com a roupa, a mão sem joias) mais do que as grandes perfeições, me agradava vê-la comer com suas boas maneiras na mesa - recordando suas más maneiras na cama."

(Do livro Delito por dançar o chá-chá-chá, tradução de Floriano Martins, publicado pela Ediouro.)

Primeira noite em São Paulo

Quando o sol se foi, a cidade, bruxa alcoviteira de dentes podres e calcinha suja, lhe ofereceu garotas de vinte que pareciam ter cinquenta e mulheres de cinquenta que pareciam garotas. Em cada esquina, como uma bênção, os generosos edifícios puseram para fora os latões de lixo que na terceira noite ele, para não morrer de fome, começaria a disputar com os ratos e com homens que, não o reconhecendo ainda como semelhante, rosnavam para defender restos de pizza da promoção.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Um trecho de Alfred de Musset

"Sentireis que a razão humana pode curar as ilusões, mas não cura os sofrimentos: Deus a fez boa dona de casa, não irmã de caridade. Verificareis que o coração do homem, ao dizer "não creio em nada, pois não vejo nada!", não disse ainda a última palavra. Procurareis em torno de vós alguma coisa como uma esperança, e ireis sacudir as portas das igrejas para verificar se ainda estremecem, mas as encontrareis muradas. Pensareis em vos fazer trapistas, mas o destino, zombando de vós, vos responderá com uma garrafa de aguardente e uma cortesã. E, se beberdes a garrafa, se tomardes a cortesã e a levardes para a cama, pensai no que possa acontecer."

(Do livro A confissão de um filho do século, tradução de Paulo M. de Oliveira e Adelaide Pinheiro Guimarães, publicado pela Ediouro.)

Kama Sutra - XCVIII

Sopra mais uma vez, leve, bem leve, como se não soprasse. A perolazinha do umbigo parece dar uma piscada, como um olho brincalhão, e um pouco abaixo a penugem ruiva começa a despertar, como o trigal à primeira brisa da manhã.

Pusilanimidade

Foi sempre vacilante, hesitante, dúbio. Nunca, em toda sua já longa vida, deu um ultimato sequer. Foram sempre penultimatos, nada além disso. Agora nem para esses tem mais coragem. Quando muito, dá antepenultimatos e depois de cada um deles vem invariavelmente um pedido de desculpas.

Um poema de Dalton Trevisan

"CANTARES DE SULAMITA

CANTAR 1


Se você não me agarrar todinha
aqui agora mesmo
só me resta morrer

se não abrir minha blusa
violento e carinhoso
me sugar o biquinho dos seios
por certo hei de morrer

estou certa perdidamente certa
se não me der uns bofetões estalados
não morder meus lábios
não me xingar de puta
já hei de morrer

bata morda xingue por favor
morrerei querido morrerei
se você não deslizar a mão direita
sob a minha calcinha
murmurando gentilmente palavras porcas
sem dúvida hei de morrer

também certa a minha morte
se você não acariciar o meu púbis de Vênus
com o terceiro quirodátilo
já caio morta de costas
defuntinha
toda morta de morte matada

morrerei gemendo chorando se você titilar
a pérola na concha bivalve
morrerei na fogueira aos gritos
se não o fizer

amado meu escuta
se você não me ninar com cafuné
me fungar no cangote
mordiscar as bochechas da nalga
me lamber o mindinho do pé esquerdo
juro que hei de morrer
certo é o meu fim

te peço te suplico
meu macho meu rei meu cafetão
eu faço tudo o que você mandar
até o que a putinha da rua tem vergonha

eu fico toda nua
de joelho descabelada na tua cama
eu fico bem rampeira
ao gazeio de tua flauta de mel
eu fico toda louca
aos golpes  certeiros do teu ferrão de fogo
ereto duro mortal

ó meu santinho meu puto meu bem-querido
se você não me estuprar
agora agorinha mesmo
sem falta hei de morrer

se não me currar
em todas as posições indecentes
desde o cabelo até a unha do pé
taradão como só você
é certo que faleci me finei
todinha morta

se não me cucificar
entre beijos orgasmos tabefes
só me cabe morrer
minha morte é fatal
de sete mortes morrida
mortinha de amor é Sulamita."

(Do livro Capitu sou eu,  publicado pela Editora Record.)


Notinha policial

Por obra de um mau destino
E de uma ainda pior sina,
Amar foi sua ruína
E o amor foi seu assassino.

Ai

Conseguiu curar-se de todas as suas sandices, menos de uma: às vezes, ainda chora à toa, baba sem perceber e no bloquinho de poemas escreve todo dia o mesmo. O título é "Ai" e o texto é "Aiaiaiaiai", ocupando ora uma linha, ora duas, ora três, ora a folha inteira. O médico diz que são simples sequelas do amor.

Mãe

Se um dia tiver coragem para fazer aquilo, estará com sua melhor roupa. Lembra-se da mãe, que o vistoriava todas as manhãs, antes de ele ir para o colégio, no primário. Fiscalizava-lhe as mãos, as orelhas, o colarinho, para ver se estava impecavelmente branco, e às vezes fazia-o descalçar os sapatos, para examinar as meias: "De repente você morre atropelado, tiram os seus sapatos e as suas meias estão sujas..."

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Um poema de Jacques Prévert

"DÉJEUNER DU MATIN

Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mit le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec la petite cuiller
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a reposé la tasse
Sans me parler
Il a allumé
Une cigarrette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis les cendres
Dans le cendrier
Sans me parler
Sans me regarder
Il s'est levé
Il a mis
Son chapeau sur sa tête
Il a mis
Son manteau de pluie
Parce qu'il pleuvait
Et ils est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder
Et moi j'ai pris
Ma tête dans ma main
Et j'ai pleuré."

(Do livro Paroles, publicado pela Librairie Gallimard.)

Pela concisão e pela ecologia

Cortar, suprimir e despojar devem ser verbos presentes sempre na mesa de trabalho do escritor. Assim como um pai precisa estar pronto para ver defeitos mesmo no seu filho mais querido - ainda que na opinião alheia ele seja perfeito -, ao escritor cabe tratar com severidade seus textos. Ele há de ser seu leitor menos condescendente e não ter piedade com palavras ou trechos que, retirados, não fazem falta nenhuma ao conjunto. A concisão há de ser sempre uma de suas metas principais. Um dos apelos do movimento em defesa das árvores - e do meio ambiente, por extensão - deveria ser dirigido a escritores que, podendo muito bem dar seu recado em cento e cinquenta páginas, se derramam em quatrocentas e quarenta e ainda prometem uma sequência.

"Meu diário"

Acordei hoje num estado de espírito que talvez possa definir como depressão morna, ou apatia. Uso aqui essas palavras - depressão, apatia - sem nenhuma convicção nem propósito de que sejam as corretas. Me agradaria dotá-las de uma carga de dramaticidade que conviria à minha preferência antes ao exagero que ao comedimento. Gostaria muito de elevá-las à condição de transtornos ou distúrbios mais graves. Digo tudo isso - ou todo esse nada - para admitir que não me sinto animado a escrever, uma das poucas coisas (talvez a  única) nas quais mantenho ainda algum interesse. Percebo que esse gosto pela literatura tende a ir se tornando dia a dia mais passivo (isto é, de leitor) que ativo (de escritor). Vem-me faltando energia para exercer o segundo papel - nem tanto, talvez, pelo transcurso dos dias por si sós e sua influência na minha saúde, mas pela certeza de que qualquer esforço para produzir será um esforço para produzir um pouco mais do mesmo. A obsessão, nas mãos de um artista verdadeiro, é um instrumento inestimável. Nelson Rodrigues e principalmente Dalton Trevisan são exemplos de como a melhor literatura pode ser feita em torno de um só tema. Nas mãos, porém, de alguém que de artista só tem a pretensão, a obsessão acaba desvalorizando seu objeto e tornando-o não mais que maçante. O amor e os sofrimentos causados por ele vão se descolorindo a cada texto, por minha inabilidade. Talvez esse tema esteja mais intenso, mais agudo, mais vivo e mais mortal do que nunca em mim, mas eu me sinto cada vez menos capaz de ser seu intérprete.

Zelo

Espera que incumbam um redator experiente de escrever a notícia. Pode até sair errado o sobrenome, com aquela aglomeração absurda de consoantes. O que receia é que um foca venha com aquele chavão do tresloucado gesto.

Oitavo andar

O restaurante lá embaixo é antigo: trinta e dois anos, o proprietário disse. Mas, e se o toldo for novo e abafar tua queda? Precisas voltar lá e perguntar. Um bom plano às vezes falha por uma dessas minúcias bobas.

Se o amor te escolher

Se o amor optar por ti, esquece tua autoestima. Se te disseram que o amor é aquele sentimento que nos realiza e nos perfaz, te enganaram. O amor nos apequena, nos humilha, nos esmaga. Depois que nos escolhe, ele nos ignora. Eu nunca vi os olhos do amor. Tu viste? Ninguém os viu, nem verá. Ninguém sabe qual é a cor deles. Eles não nos olham também, depois da primeira vez, quando nos escolhem. Desde o momento em que somos escolhidos, pertencer ao amor é a nossa ventura. Tão docemente ele nos aflige, tão ternamente ele nos atormenta, que nós nos afligimos e atormentamos ao menor receio de um dia nos faltarem essa aflição e esse tormento. Se te disseram que o amor é diferente disso, e acreditaste, podes continuar com teu cineminha das quartas, teu teatrinho mensal, tuas leituras de folhetos para programar as férias à beira-mar, teus beijinhos protocolarmente estalados depois do café da manhã e teus carinhos contados, aqueles exatos que servem como aquecimento para o exercício noturno depois do qual vem o sono tranquilo dos corpos satisfeitos. Se te disseram que o amor é essa ginástica, e acreditaste, continua com ela. Mas, se o amor, o único que merece esse nome, optar por ti, prepara-te para a angústia da carne e da alma, para a solidão, para a cama revirada pela insônia, para as lágrimas que os outros, aqueles pelos quais o amor não optou, chamam de ridículas.

Sonho

Uma das mulheres de tuas pinturas enterrou o salto alto e agudo no meu coração e começou a girar como uma bailarina ou uma patinadora. Era graciosa ela, assim, quando me fitava depois de cada giro, embora o sorriso não ocultasse a centelha de ódio que havia nos olhos. Eu soube, então, que não  era o primeiro que ela matava.

Google

Dizer-se famoso para uma garota, logo no primeiro encontro, é cada dia menos recomendável. Cinco minutos depois de você se despedir, ela estará abrindo o google no apartamento, e o beijo que você lhe deu antes de ela subir pode ter sido o último.

Plumas

Passa os dias soprando plumas para o alto e acompanhando sua trajetória, para resgatá-las. Um dia, uma não voltou. Foi há muito tempo. Continua a soltar as plumas, mas os seus olhos estão mais atentos. Agora, em dias especialmente claros, olha bem para cima, ergue o punho e ameaça: "Vai devolver, maldito?" Nessas ocasiões, vem sempre alguém de branco e o leva para dentro, com sua caixa de fósforos cheia de plumas.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Kama Sutra - XCVII

Ontem, meu amigo Richard e eu fomos a um jantar na casa de uma formosa duquesa viúva, de trinta e seis anos, e sua filha de dezoito, ainda mais formosa. Quem nos fizera chegar o convite havia sido explícito quanto ao que lá deveríamos fazer. Tratava-se de entreter as duas nobres mulheres com nossas trovas, cuja fama chegara a esta parte do país, e servi-las também sexualmente, tarefa para a qual, Deus seja louvado, somos também singularmente dotados. Às oito em ponto, conforme combinado, chegamos à mansão, que dava a impressão de ser um antigo palácio reformado. Um lacaio abriu-nos a porta e e nos introduziu em uma sala muito ampla e luxuosa, decorada com objetos de raro valor, cujo requinte me absterei de descrever. Sentadas à mesa, à luz de velas, estavam a duquesa, de rosto belíssimo e farta carne, e a filha, uma cópia exata da mãe. Richard e eu ficamos encantados com elas, imaginando qual das duas iria no fim da noite caber a cada um de nós ou se, por um dos jogos sexuais que andam em moda, nos daríamos os quatro simultaneamente em uma dessas amplas camas destinadas ao prazer. Desagradou-nos um pouco ver, sentados também, dois jovens com típicos rostos de aldeões. A duquesa explicou-nos que se tratava de dois trovadores da região que, sabendo de nossa presença, haviam pedido permissão para nos conhecer. O jantar foi servido com uma riqueza de iguarias que também me absterei de citar. Depois de havermos bebido muitas taças de vinho, a duquesa nos convidou a declamar os versos que ela e a filha disseram estar esperando ansiosamente. Richard e eu nos superamos. Jamais fomos tão bem favorecidos pelas musas. A duquesa e a filha nos olhavam como se fôssemos a encarnação da poesia. A duquesa perguntou, a Richard e a mim, se concederíamos aos dois bardos da região a oportunidade de mostar sua arte. Consentimos, e eles deram uma demonstração da pobreza de seu preparo. Bebemos alegremente até a meia-noite, quando a duquesa saiu da sala e chamou a filha. Ficaram ausentes uns dois minutos e, ao voltarem, a duquesa comunicou, a Richard e a mim, que já podíamos ir embora, pois era hora de elas dormirem. Agradeceu-nos e nos perguntou - o que muito nos ofendeu - se desejávamos levar alguma iguaria da qual tivéssemos gostado. Saímos tentando esconder nossa decepção. Tínhamos dado não mais que cem passos pelo jardim da mansão, quando começamos a ouvir os gritos de júbilo amoroso das duas mulheres. Andamos a noite inteira, sem destino, e chegamos esta manhã a uma estalagem onde o proprietário, ouvindo nossa história, se permitiu rir e dizer-nos que aquilo por que havíamos passado era comum: os dois jovens - aldeões, como supuséramos - eram já fazia algum tempo amantes das duas, que sentiam redobrado prazer quando simulavam ocasiões como a da véspera. Convidavam jovens forasteiros e incitavam-nos a disputá-las, para depois, logrando-os, melhor aproveitarem os atributos dos dois aldeões, pobres de versos mas agraciados com instrumentos sexuais capazes de quebrar cabaças de barro.

Um trecho de J.M. Coetzee

"Ele próprio temeu vir a se tornar um devoto, um lawrenciano. As mulheres dos livros de Lawrence o deixavam inquieto; imaginava-as como insetos fêmeas sem piedade, aranhas ou louva-deus. Sob o olhar das sacerdotisas pálidas, vestidas de negro, de olhos intensos, na universidade, sentia-se como um apressado e nervoso inseto solteiro. Gostaria de ir para a cama com algumas delas, isso não podia negar - só levando uma mulher ao âmago escuro dela, afinal, podia o homem atingir seu próprio âmago escuro -, mas ficava muito apavorado. Seus êxtases seriam vulcânicos; seria fraco demais para sobreviver a eles."

(Do livro Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

Um poema de Jacques Prévert

"POUR TOI MON AMOUR

Je suis allé au marché aux oiseaux
Et j'ai acheté des oiseaux
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché aux fleurs
Et j'ai acheté des fleurs
Pour toi
mon amour
Je suis allé au marché à la ferraille
Et j'ai acheté des chaînes
Pour toi
mon amour
Et puis je suis allé au marché aux esclaves
Et je t'ai cherchée
Mais je ne t'ai pas trouvée
mon amour."

(Do livro Paroles, publicado pela Librairie Gallimard.)

Um trecho de Gabriel Perissé

"A arte de ler bem gera em nós, com o tempo, uma segunda natureza. Ao nosso "eu" acrescentam-se  e mesclam-se contribuições vivas de outras cabeças e corações humanos. Assimilando, digerindo estas contribuições, estaremos nos autoeducando em vista de um aperfeiçoamento pessoal que, por sua vez, se refletirá nas nossas ações, e, dentre elas, em tudo aquilo que dizemos e escrevemos."

(Do livro Ler, pensar e escrever, publicado pela Editora Arte & Ciência.)

Forever and ever

De um lugar qualquer na praça de alimentação do shopping veio a lamurienta voz de Demis Roussos cantando Forever and ever. Seus óculos se embaçaram e ele sentiu que estava estúpida e bregamente apaixonado. Não sabia ainda por quem, mas começaram a pingar lágrimas sobre seu Big Mac.

Anotação

Escrever, continuar escrevendo, para matar a insanidade. Ou para mantê-la.

Reflexão

Às vezes eu achava que te dava importância demais, às vezes pensava que era pouca a atenção que te dedicava. Nunca pensei em saber tua opinião.

A marca

Eu também, buscando um presente que fosse digno do amor, andei esticando o braço para colher estrelas. A vida inteira fiz isso. Peguei uma, e a tive na mão por um instante. Ela me queimou como se fosse feita de vitríolo. Quer ver a marca? É esta. Feia, não é?

Egoísmo

Só não dá fim à vida porque, morto, não poderá gozar os efeitos do seu suicídio.

Farol baixo

Sua força de vontade é suficiente apenas para manter viva sua apatia.

"Meu diário"

Ontem falei em fazer aqui revelações e talvez até confissões. Hoje acordei tão esmagado por minha insignificância que só posso atribuir as bravatas de ontem a um desses surtos de megalomania que volta e meia me incitam a enfrentar moinhos. É manhã, agora, e nada me autoriza a supor que o sol tenha nascido por minha causa. É provável que meu estado de espírito se altere com o correr das horas, mas o que sinto neste instante é só esta pequenez gigantesca que me engole com seu peso e seu volume. É uma audácia - quase uma insolência - escrever sobre mim e esperar que alguém me leia. Quem há de se dispor a aturar um exibicionista que em vez de atirar garrafas para o alto mostra suas chagas? Quem há de pôr as moedas da alma, as mais preciosas, no meu chapéu? Sou tão exibicionista que, se não tivesse chagas, eu as simularia com mercuriocromo ou talvez as rasgasse em mim com minhas mãos.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Vernáculo

A mensagem que recebe nos sonhos é sempre igual, e pisca com urgência no monitor: "Você me irrita, mas eu te amo." Toda vez acorda comovido, embora o incomode um pouco aquele errinho de português, aquela mistura de "tu" e "você". Ah, os gramáticos...

Kama Sutra - XCVI

Estamos sós, de novo. Ainda ontem, como nos olhavam, como nos sorriam, como docemente nos falavam. Jovens estrangeiros importados para o prazer de ávidas mulheres, nós três fizemos o que pudemos, nosso melhor. Bebemos em taças marcadas de batom, exibimos nossos músculos, dançamos, copulamos com quantas mulheres pudemos, em camas de alva maciez. Como sempre, quando acordamos, de manhã, estávamos fora da mansão, onde já não brilhava nenhuma das majestosas luzes da véspera. Desde o início desta excursão, que dura já três anos, tem sido assim. Nosso empresário, antes de cada noitada, nos assegura que será a última e que finalmente nos venderá para um grupo de milionárias viciadas em sexo que nos darão sustento e luxo para o resto da vida. Mas há sempre algum empecilho, que ele nunca explica a nós três, e debaixo do impiedoso sol seguimos para outra cidade, para outra festa, onde mostraremos nosso corpo e o alugaremos para prazeres alheios. Não corre mais em nossas veias o sangue que fervia três anos atrás. Temo que logo as mulheres comecem a desdenhar de nossos músculos e nosso empresário acabe nos vendendo para algum negociante de sexo que nos destine a bordéis nos quais satisfaremos velhas flácidas e - tomara que nunca - rapazes degenerados.

O que ele sempre quis

Acostumou-se a sofrer por ela nas noites em que os minutos gotejavam lentos como horas e os cães latiam para espantar os fantasmas dos quintais. Acostumou-se a chorar por ela nos dias de aguda solidão, em que, sentado diante do micro, esperava o alívio de uma mensagem, ainda que o texto fosse só "oi". Ela saiu da sua vida há tanto tempo que ele às vezes duvida que ela tenha existido. Tenha sido ou não só um desvario de sua imaginação, ele continua sofrendo o suplício das noites intermináveis e dos dias solitários, sem mensagens. Sabe que esse é o seu tesouro, e continua a contar as moedas como um pirata avarento.

"Meu diário"

Venho sentindo a necessidade de descrever meus sentimentos com mais precisão, sem os ornamentos da literatura (o texto sobre sadomasoquismo, ontem, é um exemplo). Receio que essa ideia possa ter uma motivação mórbida, algo assim como o registro dos últimos dias de um homem. Mas, com a idade que tenho, posso falar de coisas inaugurais, iniciais? Na hipótese de haver morbidez nesse meu propósito, talvez haja também, nesta disposição de me abrir, um disfarçado utilitarismo, uma esperança de, expondo finalmente a alma depois de tantos anos de falsidade, obter, se não a cura, pelo menos algum alívio. Não duvido que haja. Jamais porei a mão no fogo por mim, em assuntos de ética e moral. Pressinto que falarei muito de coisas tristes, aqui. Excluir a tristeza seria excluir-me. Mas falarei também de outros assuntos - até alegres, se houver. Falarei do amor, esse doce flagelo. Falarei da morte, essa amável esperança. Escreverei para você, seja você quem for, cujo rosto não conheço e cujo nome ignoro. Escreverei para aquele leitor, aquela leitora ideal para quem se escrevem todas as coisas, com o anseio de que alguém nos compreenda e, se possível, nos ame. Pretendo, como se diz, abrir o coração. Cansei-me de dizer tudo como se outro o dissesse. Falarei de assuntos íntimos, correndo os riscos que isso sempre traz. Um homem não há de se esconder a vida inteira sob a proteção da literatura. Não quero mais andar com os passos dos personagens, nem lhes atribuir a minha indignidade. Não suporto mais ficar rodeando certos temas tidos como delicados. Aqui ou ali alguém dirá: "Como ele pode proceder assim, ele, um homem velho, sério, casado? O que vai dizer a mulher, o que vão achar os filhos?" Pois eu procederei como tiver que proceder para limpar, um pouco que seja, minha alma, e espero poder manter a disposição de, neste diário, quando me referir a mim, ainda que na mais desagradável e até abjeta situação, eu e os (im)prováveis leitores saibam que eu sou eu mesmo. Escrevi tudo isto aqui - a primeira página do "meu diário" - com uma rapidez e uma ansiedade que me parecem bons sinais: quero revelar-me inteiro, com minhas fraquezas e meus vícios - porque falar de virtudes seria apenas outra forma de indignidade. Espero registrar aqui não confissões - porque o termo seria empolado demais, inaplicável à minha insignificância -, mas revelações cujo único mérito será o de tratarem de situações cotidianas que, justamente por esse aspecto, talvez possam ter algum interesse. Nem sempre há heróis dispostos a nos contar suas histórias, e é provável que uma voz humilde, determinada a se mostrar sem os subterfúgios da arte, seja ouvida e acolhida com a boa vontade que talvez mereça. Ao escrever a frase final, sou tomado da suspeita de que na verdade eu queira tê-los como confidentes ou psicanalistas sem remuneração. Se vocês pensarem o mesmo, deixem de lado as páginas que, sob o originalíssimo título de "Meu diário", pretendo a partir de agora ir publicando aqui.

Faces do amor

Estranho é o amor. Alguém diz à amada que está escolhendo a corda, o revólver, a gilete, o veneno com que se matará por ela, e implora que ela vá falar com ele. Ela boceja, abre a agenda: "Semana que vem eu vou aí." No mesmo dia, essa mulher recebe uma mensagem em que outro apaixonado se queixa de estar com uma pontada esquisita no coração. E, no meio de raios e trovões, sai correndo para encontrá-lo.

Ideais

Os ideais, para viver,
Só necessitam de nós.
Porém na hora de morrer
Eles morrem por si sós.

Falecer

Palavra estúpida, falecer. É um desses casos em que o eufemismo, pretendendo ser gentil, só se torna ridículo. Diz-se que alguém faleceu como se morrer fosse um ato infame. Qual é o problema de morrer? Eu me recuso a falecer.

Bilhete na pia do banheiro

Que justo tenha sido o caderninho,
Atribuindo ao amor só o que ele fez.
Não foi ele que me tornou mesquinho,
Ele só aflorou minha mesquinhez.

Ele não fez de mim um mentiroso,
Só fez crescer em mim minha mentira,
Nem me tornou irado ou rancoroso,
Só usou o meu rancor e a minha ira.

Tão ternamente ele me enfeitiçou,
Tão fortemente me amarrou a ti,
Que quando me deixaste enlouqueci.

Não foi ele, ah, não foi, quem me matou.
Ele só os três atos escreveu,
Mas quem cravou a lâmina fui eu.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Tempestade

Havia só mais um
lugar no bote
e entre o amor e a vida
o mar furioso te deu
um minuto para optar

Olhaste para o amor
tão fracote
olhaste para a vida
tão forte
e a escolha foi decidida

Faz muito tempo
vinte anos já
e desde o primeiro momento
sabias que pior escolha
não farias jamais

Hoje vives sem viver
e pesa-te o dissabor
de que deverias ter
deixado morrer a vida
e ter salvado o amor.

Eufemismo

Precisei viver muito tempo para aprender que a maturidade é um nome simpático que se dá ao apodrecimento.

Sadomasoquismo na era do msn (subsídios para o dr. Pedro)

Ocorreu-me hoje que registrar algumas características do mal que vem me afligindo há mais de cinco anos talvez possa ser útil a alguém. Não tenho sequer noções de psicanálise e psiquiatria, mas penso estar submetido a uma situação de sadomasoquismo que - ao contrário de tudo que vi em filmes, peças teatrais e livros - não se consuma nos costumeiros atos físicos de castigo e recompensa sexual. É uma tortura apenas mental e, por isso, muito mais cruel. Em todos os anos durante os quais ela me tem sob seu jugo, jamais foi formulada, e nem mesmo sugerida, qualquer espécie de satisfação sexual. Há o conhecido jogo de atração e rejeição, mas o único objetivo parece ser o do suplício mental recíproco. É uma obsessão que se basta, que se perfaz por si só. Não há algemas, chicote, flagelação física. Os corpos - o meu e o dela - estiveram sempre distantes (talvez mais uma dessas mudanças devidas ao msn).  O que cada um de nós se empenha em destruir, com uma determinação quase religiosa, é a mente, a alma do outro. Nunca fui participante de nenhuma relação masoquista clássica, daquela espécie que, por assim dizer, se realiza no corpo e nele busca a redenção. Mas, se pudesse optar, preferiria vergastar e ser vergastado, por mais dolorosas que fossem as feridas que eu causasse ou sofresse. Não há pomadas para a alma.

A cova

O tempo não passa para os mortos - e o amor continua como estava no seu último dia: frio e enterrado, à espera da impossível ressurreição. Quem chegará a este bosque sombrio, onde já não vive nenhum dos passarinhos que o viram ser sepultado? Quem, nesta imensidão, indicará onde é sua cova?

Teu nome

Chegará talvez um tempo em que não me lembrarei do teu nome. Assim são as coisas. Hoje teu nome é sempre a primeira palavra que minha boca amarga está pronta para pronunciar. Apesar de toda a tristeza, de tudo, da vontade (e necessidade) de esquecê-lo, a todo instante meus lábios se unem para dizer a primeira sílaba dele. Eu os reprimo, mas essa sílaba permanece o dia inteiro inquieta, como se estivesse na boca de um menino e quisesse reproduzir o som de uma série de estampidos: pá, pá, pá. Como seria abençoado, hoje, olvidar teu nome, olvidar-te. E como será triste o dia em que eu o olvidar, o dia em que eu olvidar-te.

Esse tão doce sacrilégio

Devemos falar do amor todo dia, como se fosse nosso único assunto, porque é. Devemos fazê-lo enterrar ainda mais fundo em nós suas garras. Ele será sempre bem-vindo. Sempre teremos sofrimento para doar-lhe, e nossas costas dóceis apreciarão receber a ira do seu látego. Devemos falar do amor todos os dias, todas as horas. Louvá-lo, celebrá-lo sempre, porque - mais do que Deus - ele é o nosso senhor.

Por baixo

Tão frágil está sua autoestima que hoje se despediu do psiquiatra com uma frase que só por sorte não terá sido considerada um gracejo: "Doutor, sei que hoje eu falei demais. Desulpe."

A nova floração

Depois da grande dor, vem outra, bem diferente. Esta chega tão devagar que, se mantivermos nossa magoada promessa de jamais olhar para o jardim, não a notaremos. Ela vem com os delicados passos do orvalho, como um visitante que vai ver alguém no hospital e teme prejudicar o descanso do doente. Entregues ainda ao nosso infortúnio, um dia, distraidamente, abrimos a janela para o jardim e, no canteiro em que a grande dor destruiu todas as flores encarnadas, vemos uma floração nova. São flores miúdas, não tão vistosas e imponentes quanto as anteriores, mas têm também sua beleza, com as pétalas esmaltadas pela suave melancolia.

O que ficou

Nós nos debatemos tantos anos, amor, antes de morrer... E o que ficou de toda a nossa agonia? O peixe, ao menos, quando fisgado, deixa no ar uma centelha de prata, como se desafiasse o ouro do sol.

Amanhã

Não, quando nos lembrarmos de tudo isto, não riremos. Rir de um amor morto é como cuspir no caixão de uma criança.

Dignidade

Quando estiveres para morrer, não estrebuches, não agonizes, não lances imprecações nem lamentos. Os poetas nos iludiram quando nos fizeram crer que devemos pontilhar nossos últimos momentos com exclamações. O mundo pouco se importa com as palavras dos vivos. Por que há de dar atenção ao que dizem os morituros? Morramos anonimamente, como morre uma formiga. Quando chega a sua hora, ela simplesmente se deixa afundar sob a folha que estiver carregando. É uma morte delicada, de um ser digno. Quem olhar verá só a folha. Se uma dessas brisas juvenis e curiosas vier, poderá até fazer falar a folha. Mas a formiga, jamais.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A recompensa

Te deste inteiro ao amor. Te imolaste, te lanhaste, te crucificaste. Verteste, como dizem os maus poemas, todo o teu sangue por ele. Por ele choraste como um menino e te lamuriaste como um velho canceroso. Renegaste a tua família e foste por ela renegado. Como um personagem bíblico, foste execrado pelos amigos e escarnecido pelos inimigos. Tudo desafiaste em nome do amor, tudo perdeste por ele, e em cada hora de tua vida pensaste na recompensa. Esperas ainda por ela, porque o amor há muito se foi e, se alguém sabe onde ele está, certamente não és tu. Tu o chamas, tu o invocas no meio das tempestades: amor, amor, amor. Não sabes, infeliz, mas o amor não te deve nada. Pensas que os prazeres são o alimento da alma? Pensas que à alma apetecem as alegrias corriqueiras? Culpas o amor por tua incompetência? Ah, é teu corpo que se julga credor dele? A culpa é tua, infeliz. Tão superior quiseste mostrar-te que, enquanto pernosticamente exaltavas o amor, outros se deleitavam com os frutos que imaginavas estarem amadurecendo para ti.

Dois trechos de Walt Whitman

"Nunca existiu mais princípio do que este agora,
Nem mais juventude nem mais velhice do que esta agora,
Nem vai existir mais perfeição do que existe agora,
Nem mais céu ou inferno do que existe agora."

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"Pra que temer a fusão?
Tire sua roupa... pra mim você não é velho nem descartável,
Vejo através da casimira e do algodão quer você queira ou não,
Estou na área, tenaz, ávido, incansável, ninguém se livra de mim."

(Do livro Folhas de relva, tradução de Rodrigo Garcia Lopes, publicado pela Iluminuras.)

A suspeita

Toda vez que ela dá uma descarga no banheiro, ele tem a certeza de que ainda não está insano. Mas fica sempre atento: se o intervalo entre duas descargas é longo, volta-lhe a suspeita de que mora com um anjo.

Kama Sutra - XCV

É a segunda vez que janta com ela. Acha que hoje vai poder abrir mais o jogo. Na primeira noite alguma coisa já havia ficado subentendida. Gosta do corpo dela, dos olhos, da boca (principalmente da boca). Também das mãos, macias, promissoras, que apertam as suas e se deixam apertar. Já é tempo, enquanto os dedos assim se conhecem, de arriscar algum lance. Desenlaça as mãos das mãos dela, passa a língua nos próprios lábios uma, duas vezes. Na terceira, tem a resposta: ela também molha os lábios com a língua, uma, duas, três vezes. No estacionamento, no banco da frente do carro dela, agora os lábios se buscam, trocam beijos, saliva e gemidos, enquanto as mãos se enfiam por baixo das roupas. Na obscuridade do pátio, o rapaz que roda de moto para prevenir furtos vê os corpos aconchegados. De longe, apalpando-se, pergunta-se se o casal vai ter coragem de ir até o final e procura dar ritmo à apalpação. Ficaria mais excitado se pudesse ouvir os gemidos dentro do carro: "Ai, Denise, ai, ai, isso, aí" "Ai, Luana, por que nós não fizemos isso na primeira vez?"

Avó

Havia aqui uma bailarina espanhola de louça, que um dos gatos quebrou. Qual deles foi mesmo? Já não se lembra dos nomes. Faz tanto tempo. Um era o Tininho, o outro era... Todos mortos, já. Pegar um novo, nem pensar. Não tem idade mais para ficar limpando sujeira. Era uma bailarina ou um moinho de vento?

Os frutos

Ansiou pelos frutos e os antecipou em devaneios. Embrenhou-se nas claras nuvens dos sonhos e o mundo já não tinha nada que o atraísse. Imaginava como seriam os frutos, quando viessem. Em cada sonho eles lhe apareciam mais belos, diferentes de todos os que vira: em casa, no escritório, no metrô, na rua, eles eram acariciados pela brisa e coloridos cada vez mais esplendidamente pelo sol. Passavam os dias e, como cada um lhe trazia uma visão mais majestosa dos frutos, ele não parava de sonhar. Num fim de tarde, na praça diante do escritório, viu uma mulher com uma criança apontando uma árvore. "Que maravilha, olha lá. Eu nunca vi frutas tão bonitas." Ele se aproximou. Tinham se passado tantos anos e seus olhos estavam tão fracos que ele deslizou a mão enrugada por um fruto, por outro, e logo se afastou. Não eram aqueles.

Imagem

Melhor continuares assim - uma terna lembrança na retina da memória - do que seres uma imagem de porcelana que o carregador do caminhão de mudança espatifará um dia.

Como um passarinho

Às vezes - cada dia menos - ele se lembra do amor. Por um instante, as mãos parecem aquecer-se um pouco, assim como o passarinho velho engaiolado no quintal se ilude ainda, toda manhã, quando aparece o sol. Se o instante não fosse só isso, um instante, talvez o passarinho cantasse e ele conseguisse completar o meio sorriso que seus lábios cansados esboçam.

Kama Sutra - XCIV

Atormenta-se quando imagina o gosto que sentiram aqueles que provaram o sal negado à sua boca. Se fosse menino, poderia chorar, e talvez fossem aceitas como consolação as lágrimas salgadas. Quando a frustração se torna intolerável, ele morde o lábio com força, com raiva, com toda a sua esperança frustrada, e um sal de gosto amargo chega até a sua língua.

Tecla

Para ele, o amor não é uma ideia fixa: é a única.

Chorando diante das cinzas

Cometeu um equívoco. Esqueceu-se de que a mulher, além de alma, é corpo. Envolveu numa aura espiritual seios, coxas, nádegas, e, quando descobriu seu engano, tudo já havia sido mamado, acariciado, visitado. Pobre idiota! Chora hoje pelos gozos que perdeu, pelos gemidos que não ouviu, pelas delícias que não desfrutou.

Camisa de força

Se enlouquecer, enlouqueça por amor. É tão belo, tão romântico. E tão fácil, também. Enlouqueça por amor e não se cure nunca. Ao diabo com a psicanálise e os psicanalistas. Que o amor nos aperte em sua camisa de força e não nos liberte jamais.

Feito para ser tocado

Dê uma trégua à sua garganta. Ninguém aguenta mais ouvir amor, amor, amor. Use as mãos. Para que as tens? Apalpe, aperte, percorra, dedilhe. Não receie tocar o corpo de uma mulher. Ele foi feito para isso. Não tocá-lo é mais que uma covardia. É uma ofensa e um desperdício.

A palavra amor

Dispunhas de todas as palavras, mas usaste uma só, todo o tempo: amor. E foste punido por tua autossuficiência. Enquanto teus lábios pronunciavam sem descanso as quatro letras, as camas, cavalgadas pelos amantes, relinchavam como potros selvagens.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Um trecho de Alberto Moravia

"Entre as muitas teorias literárias que às vezes formulo durante as aulas para brindar meus alunos obtusos e indiferentes, com uma generosidade de que mais tarde me arrependo e me envergonho, existe uma que acabou se delineando em minha mente com uma precisão suspeita, e que é a seguinte: a mixoscopia, ou se preferirem, o voyeurismo, estaria na origem de grande parte da narrativa e, obviamente, do cinema. Entretanto parece não haver mixoscopia na pintura e na escultura porque nessas artes falta o movimento: o voyeur espia não tanto o objeto quanto seu movimento, isto é, seu comportamento. Além do mais esse comportamento deve ser estritamente privado, isto é, ninguém, a menos que seja um voyeur, pode espiá-lo sem a consciência de estar cometendo uma indiscrição. Em outras palavras, e restringindo-me apenas à narrativa: o romancista, além de nos mostrar aquilo que todos poderiam ver, mostra-nos muitas vezes aquilo que ninguém poderia ver, a menos que se trate, justamente, de um voyeur. Com efeito, se por um lado não podemos incluir na mixoscopia a representação de acontecimentos tão públicos como um baile ou uma sessão do parlamento, por outro, é certamente voyeurista a representação de um fato tão privado como a relação sexual. E isto pela simples razão de que não se faz amor em público e, portanto, quando o romancista nos descreve dois personagens no ato de copular, na realidade ele olha e nos faz olhar por um imaginário buraco de fechadura. Este voyeurismo do narrador é frequentemente duplicado pelo voyeurismo de um personagem voyeur, como ocorre por exemplo na célebre cena de Proust  em que Monsieur de Charlus é espiado pelo narrador com o 'giletier' Jupien. Ou, ainda em Proust, na cena não menos célebre em que Mademoiselle de Vinteuil é espiada enquanto faz amor com uma amiga."

(Do livro O homem que olha, tradução de Alvaro Lorencini e Letizia Zini Antunes, publicado pela Bertrand Brasil-Difel.)

Um trecho de Guillermo Cabrera Infante

"A coisa sempre começava igual. Ela estava sentada em seu balanceio e ele no dele, assim, de lado, e ela sempre punha uns vestidos de godê, muito largos, e ficava muito calminha em seu balanceio vestida com seus vestidos de godê de luto aliviado, falando ou fingindo que estava falando. Então, quando a velha estava lá dentro, ela virava a cabeça para o lado e olhava e então ele tirava a coisa dele para fora e ela começava a tocá-la, a passar-lhe a mão e logo, acariciando-a, ficava vigiando se a velha vinha ou não vinha, depois pegava e se levantava do balanceio e levantava a saia e sentava em cima do homem e aí ela começava a se mexer e o homem começava a se balançar e de repente ela pulava e se sentava na cadeira e ele cruzava a perna, assim, para lá, de modo que não se visse nada, para ver se a velha vinha, e a velha muito inocente ia até a janela e olhava para a rua ou para o céu ou fingia que olhava para a rua e para o céu e tornava a entrar e eles tornavam a se acariciar, ela tocando na coisa do homem e o homem agora a ela manuseando, e ela pegava e baixava a cabeça e a metia entre as pernas do homem e a deixava ali um pouco e logo a tirava de repente porque a velha vinha de novo. Passavam toda a noite fazendo isso e a velha vindo e olhando para fora pela janela ou então ele disfarçava e falava com a velha, e se ria, e ela, Petra, também se ria e falava alto e a velha ia de novo à janela e voltava para dentro e ficava um bom bocado lá dentro, rezando, rezando ou coisa assim porque era muitorteligiosa e estava sempre rezando, sobretudo depois da morte do marido. Então eles pegavam e recomeçavam a função e nós víamos os dois dali, debaixo do caminhão, e também nos aproveitávamos."

(Do livro Três tristes tigres, tradução de Stella Leonardos, publicado pela Global Editora.)

Mais cinco tankas de Takuboku Ishikawa

"Fez-se logo densa a conversa discreta
um clarão de pistola
uma vida apagada."

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"Este tormento, de vez em quando,
em meu coração, como um trem
por um campo vazio."

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"Em frente à loja de espelhos
o susto repentino
com minha miserável aparência."

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"Esta manhã
pensei em não mais mentir
e agora fraquejo outra vez."

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"O trem. Nem sei por que o tomei.
Desci. Mas não há
para onde ir."

(Do livro Tankas, tradução de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicado por Roswitha Kempf-Editores.)

Fevereiro ou março

Então ela disse que me amava, me amava muito, e eu soube que aquele era um momento que eu jamais esqueceria. Lembro-me bem dela nesse dia, do seu rosto, dos seus olhos. Sei que ela estava sendo sincera. Foi numa manhã, três anos atrás. Era fevereiro ou março, disso eu não lembro direito. Se um dia a gente se topar por aí, eu pergunto.

Um trecho de Georges Bataille

"Para os outros o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o grito do galo ou ao descobrirem o céu estrelado. Em geral, apreciam os "prazeres da carne", na condição de que sejam insossos.
Mas, desde então, não havia mais dúvidas: eu não gostava daquilo a que se chama os "prazeres da carne", justamente por serem insossos. Gostava de tudo o que era tido por "sujo". Não ficava satisfeito, muito pelo contrário, com a devassidão habitual, porque ela só contamina a devassidão e, afinal de contas, deixa intacta uma essência elevada e perfeitamente pura. A devassidão que eu conheço não suja apenas o meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo estrelado..."

(Do livro História do olho, traduzido por Eliane Robert Moraes e publicado pela Cosac&Naify.)