sábado, 30 de novembro de 2013

Entomologia

O amor primeiro nos mata

O que vem depois não lhe importa
às vezes tira umas fotos
às vezes não
depende da ocasião

Está cheio já
seu álbum de recordações

Para ele somos só
mais uma borboleta espetada
uma entre porções

Mas é comum ele deixar
de nos espetar
por preguiça
esquecimento
ou por não sermos
um bom exemplar.

Kama Sutra - CDLXXVIII

Minha mão retém na palma a memória imaginada do teu corpo e, nos dias de aflição, a imprime naquela parte do meu corpo que nunca te tocou.

Esfinge

O amor às vezes finge
que se esqueceu
e me pergunta se ele e eu
já brincamos de esfinge

Me decifra ou te devoro
diz com seu timbre abaritonado
como se tantas vezes
eu já não tivesse tentado
como se tantas vezes já
não me tivesse devorado.

Poema concreto

O poeta concreto
pega areia
cimento
esquadrias
um pouco de terra
escoimada de sementes
(que não vá a obra comprometer-se
com o despautério de uma rosa)

Fará hoje
um poema curto
de tamanho normal

Anda cada vez
mais caro o material.

Instrução básica

Quando estamos começando a compreender a vida, a morte nos ceifa. Que não queiramos saber mais do que o nosso Mestre.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Eu me lembro de que discuti, certa vez, com Lawrence e ele disse: 'Devemos jurar um solene pacto de amizade. A amizade é tão unificadora, tão séria quanto o casamento. Aceitamos um ao outro por toda a vida, enfrentando tudo - para sempre. Mas não basta dizer que faremos isso. Precisamos jurar.'
   Na ocasião eu estava sem paciência com ele. Achei aquilo uma coisa extravagante - um fanático. Mas quando a gente se lembra de como é o mundo entende perfeitamente por que L. (especialmente em se tratando de L.) é levado a fazer uma reivindicação desse tipo. De minha parte, acho que o orgulho é o que faz a amizade ficar difícil. Submeter-se, reverenciar o outro, não é fácil, mas deve ser feito se quisermos de fato compreender o modo de ser do outro. A amizade não é fusão. Não devemos, portanto, nos tornar uma sombra. Devemos, acima de tudo, continuar sendo uma substância."

(Do livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

A natureza gaiata dos sábados

Talvez por não serem dias úteis, os sábados se comprazem em brincadeiras. Uma delas é a de nos matarem de saudades. Nenhum outro dia sabe, como eles, montar cenas, armar um filme, a que vamos assistindo com espanto. Momentos únicos, ensolarados, nos quais qualquer mortal se sentiria tocado pela rara simpatia dos deuses. Vivemos mesmo tudo aquilo? Tivemos mesmo diante dos olhos a revelação do amor? Somos nós, não há dúvida. É o nosso o rosto que a tela mostra, um rosto que nunca mais teremos, um rosto ao qual o amor emprestou seus traços. Que hábil cineasta é o sábado. No meio do filme, vamos sentindo que aquilo, como na vida, só pode acabar mal. A boa vontade dos deuses dura pouco. O sábado, com licença deles, nos conduz para as últimas cenas. Puxa uma tesoura e começa a cortar tudo. Tem sangue entre os dedos. Quando fechamos os olhos, ele nos tranquiliza. É tudo só uma brincadeirinha, diz, e manda que lhe lambamos a mão. É extrato de tomate, garante. Só o gosto é de sangue.

Quando

Quando tiveres te cansado de confiar tuas tristezas aos teus gatos e aos teus cachorros, e eles já estiverem tão velhos e surdos quanto tu mesma, talvez te lembres de mim, que te ouvia tão atento e amoroso. Mas eu também já estarei surdo, daquela surdez insanável que os mortos insistem em manter.

Soneto das mãos que vão perdendo sua serventia

As mãos já não me obedecem,
Já não confiam em mim.
Sabem que chegou o fim,
E tudo que peço esquecem.

Ah, se ainda agora pudessem,
Em vez de estarem assim,
Escrever o poema enfim
Que há tanto tempo merecem.

Estão com a vida encerrada,
Não servem mais para nada,
Nem para a orelha coçar.

Esperam só o momento
Em que, para o sacramento,
Alguém as venha cruzar.

Desforra

Agora que entrou na mais irrevogável velhice, todos passaram a tratá-lo como a um bebê. Ele retribui. Embora bem pudesse levantar-se e ir ao banheiro, urina na cama de madrugada, para não decepcioná-los.

A Platão o que é de Platão

Um romance só de ideias tem tudo para ser enfadonho. Deixar com os filósofos o que é deles.

Do intervalo na poesia

Muito mais na poesia que na prosa, o intervalo entre as palavras, o silêncio, ainda que mínimo, entre uma e outra, têm uma função de harmonia. Há, nesses hiatos, e nos maiores, entre os versos, uma expectativa de surpresa, da aparição de um termo, uma imagem de cuja aproximação possivelmente nem o poeta se dê conta. Para usar uma expressão de Caio Fernando Abreu, há nesses silêncios inquietos um murmurar de pequenas epifanias.

Kama Sutra - CDLXXVII

Toda noite sente a inquietação fálica do telescópio quando o aponta para o edifício defronte ao dele, dois andares acima do seu apartamento, na hora em que a mulher entra, acende a luz, liga a tevê, se despe e, nos intervalos da novela, vai à cozinha, pega um sanduíche ou um refrigerante e volta para sentar-se no sofá vermelho, ao lado do gato peludo que logo lhe sobe ao colo.

O tema

O que cantará
o menestrel

a lua
com sua beleza
inalcançavelmente pura
ou aquela criatura
cujo anel
e cuja bainha
dela fazem
uma rainha?

Dois poemas de Heinrich Heine

"Os teus beijinhos foram tantos,
Meu lábio está em carne viva;
Agora exijo um outro tanto
Para curar minha ferida.

Não te preocupes, por favor,
Em apressar o expediente:
A noite é longa, meu amor,
E o teu enfermo é paciente!"

                    ***

"Me entupiram de conselhos,
Me fartaram de honrarias,
Prometeram de joelhos
Que depois me ajudariam.

Já estaria em pele e osso,
Apesar da distinção,
Não tivesse um valoroso
Homem me estendido a mão.

Devo a vida ao cavalheiro
Que de mim não se esqueceu!
Eu quisera dar-lhe um beijo,
Só não dou porque sou EU!"

(Do livro Heine hein? - o poeta dos contrários, tradução de André Vallias, publicado pela Perspectiva.)

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Kama Sutra - CDLXXVII

Engatadas por artimanhas amorosas, as duas moscas se descuidaram do rumo e, antes de morrer dentro da xícara fumegante, zumbiram ainda num êxtase de sexo, morte e chocolate açucarado.

Similitude

Quem me disse que eu era fácil como uma puta, era fácil também, embora não para mim.

Soneto de louvor a quem bem mais que o homem pode

A um homem nada mais cabe
Senão fazer o que deve
E o que a razão lhe prescreve:
Não o que quer; o que sabe.

Não deve ser presunçoso
E achar que será possível,
Mesmo que seja impossível,
Sair sempre vitorioso.

Mais forte que o homem é o amor,
Capaz de tudo o que for.
Ele, sim, pode fazer

Um pobre sentir-se nobre,
Um rico sentir-se pobre,
Um vivo querer morrer.

Um poema de Emily Dickinson

"Examinar, reverente, uma caixa de ébano
Depois de passados os anos;
Remover o aveludado pó
Ali deixado pelos verões.

Trazer, sob a luz, uma carta
Pelo tempo esmaecida,
Perscrutar a letra pálida
Que nos aqueceu, feito vinho.

Entre os guardados talvez se encontrem
A corola fanada de uma flor,
Colhida por mão nobre e fértil
Certa manhã, muito longe.

Ou caracóis de frontes,
Por nossa constância olvidadas;
Talvez um antiquado adorno
Em perdidas vestes usado.

Depois, tornar a guardar essas coisas
E voltar aos afazeres,
Como se a pequena caixa de ébano
não nos dissesse respeito."

(Do livro Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicado pela L&PM.)

Revelação

A pior coisa que já me disseram é que eu sou muito fácil. Nesse dia, compreendi a importância e a utilidade das cordas e dos viadutos.

Kama Sutra - CDLXXVI

No restaurante, observa a mulher, já beirando a meia-idade, com a mão na coxa do rapaz, quase um adolescente ainda. Ela tem as compridas unhas pintadas com um esmalte rubro que, ele não sabe por quê, o faz pensar numa sucuri aproximando-se de um bezerro. O rapaz parece intimidado, mas não assustado. Sua excitação é visível. Seu receio talvez seja o de ser visto por algum amigo ou amiga com essa mulher que, se não fossem os dedos subindo milímetro a milímetro pela coxa dele, poderia ser sua mãe. O restaurante está vazio agora. Restaram só ele e a mulher com o rapaz. A sucuri apoderou-se da braguilha. O garoto está perdido. Deveria ter pena dele, mas sente crescer uma raiva e um ciúme que o fazem apalpar a própria braguilha. Gostaria que sua mão fosse como a da sucuri, que aperta agora descaradamente o rapaz. Ele, observador, nunca mais se livrará dessa cena. Ela o acompanhará noite após noite, e a mão, cada vez mais afeita ao enredo, o apertará como se a sucuri tivesse sede de leite e o ordenhasse.

As duas palavras finais

Se um dia fizer mesmo aquilo, aquele ato que o lugar-comum chama de tresloucado, já sabe o que dirá a si mesmo: você mereceu. Só não sabe que entonação dará à voz -  se a de quem entrega um prêmio ou se a de quem aplica uma punição.

Ibama

Pássaros apanhados
e sub-repticiamente
engaiolados
em redondilhas
ou em versos decimais
deveriam muito mais
que os demais
ter a proteção veemente
das autoridades
e das normas ambientais.

Questão de gosto

Como punição supina
o Amor os fez beber urina.

Alguns acharam muita humilhação,
alguns acharam que não.

Soneto da investigação sobre o amor falido

Depois de tantos ardis,
De tão grandes falcatruas,
Tanto minhas quanto tuas,
De tantas manobras vis,

Depois dos golpes que demos
Até o amor arruinar,
É tempo já de explicar
Por que foi que isso fizemos.

No dia da acareação,
Como nos comportaremos?
Nisso tu pensaste, já?

Mereceremos perdão?
O que ao amor nós diremos?
E o amor, acreditará?

Sobre as palavras

No início, o escritor julga que as palavras devem brilhar, aturdir, ressoar. Aos poucos, aprende que convém usá-las como se fosse a primeira vez em que se mostram, quando, acabando de nascer, elas vêm ainda com os olhos meio fechados, como um gatinho, e um pouco da remela que neles deixou o longo sono do silêncio.

Ainda sobre os aforismos

Geralmente, os aforismos não são mais do que uma reunião feliz de palavras, uma espécie de jogo verbal. Soam tão bem que dão a impressão de expressar uma verdade.

Memórias alheias

Eu gostaria de ter vivido coisas maravilhosas. Estaria agora numa boa idade para empertigar-me e me assumir como memorialista. Escrever sobre meus feitos, minhas vitórias, minhas derrotas inspiradoras, minhas consagrações. Não posso. Tudo que tenho para contar são coisinhas de coadjuvante. Eu não fiz nada, não vivi nada. Minhas memórias seriam as memórias de outros, dos outros todos que acompanhei com meus olhos de invejosa testemunha.

Três poemas de Heinrich Heine

"Quem tem um coração e guarda
Lá dentro o amor, então perdeu
Metade da batalha, e eu
Já estou de algemas e mordaça.

Quando eu morrer, me arrancam fora
A língua inútil de defunto,
Com medo que eu retorne ao mundo,
Pra destampar no falatório.

Os mortos apodrecem mudos
No túmulo; não vou jamais
Denunciar, correr atrás
De quem me soterrou de insultos."

                    ***

"A cartinha que me escreves
Não me abala a alegria;
Pra dizer que o amor já era,
Escreveste em demasia.

Doze folhas manuscritas
Com letrinha de notário!
Quem deseja a despedida
Não se dá tanto trabalho."

                    ***

"Sós, na diligência escura,
Viajando a noite inteira;
Lado a lado, com ternura,
Muito riso e brincadeira.

Quando o sol subia a pino,
Que surpresa, minha criança!
Passageiro clandestino:
Eros, entre nós, descansa."

(Do livro Heinrich hein? - poeta dos contrários, tradução de André Valias, publicado pela Perspectiva.)

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Da rapidez do amor

Na gravura, o amor não era o cego, nem o cão que o guiava. Era a mão que, sem ninguém ver, entrou em cena. Ela não está mais ali, foi rápida. Não estão também o cão, nem o chapéu em que havia moedas. Está só o cego.

Soneto do que deves dar a um amor defunto

Que não te poupem as dores
E nem a melancolia,
Se o amor passado tu fores
Rememorar algum dia.

Mas não lhe ofereças flores,
Porque ele as rejeitaria.
Há orgulhosos amores,
Mais do que se suporia.

Se tu não te importares,
Se meu conselho aceitares,
Serei contigo bem franco.

Como o mataste menino,
Nada de preces nem hino.
Dá-lhe só um caixão branco.

Inspiração

A gota que cai
Na folha instiga a uma escolha
De tela ou de haicai.

Um pouco de Enrique Vila-Matas

"O odradek de Salvador Dalí tinha um marcante ar festivo e musical e, além do mais, era extremamente erótico. Nada menos do que um violino masturbador chinês ou instrumento melódico provido de um apêndice vibratório, que servia para ser introduzido, de forma repentina e brusca, no ânus, mas também, e de preferência, na vagina. Depois de introduzi-lo, um hábil músico fazia deslizar o arco sobre as cordas do violino, não tocando a primeira coisa que lhe passasse na cabeça, mas sim uma partitura escrita especialmente para os fins masturbatórios; o músico conseguia, mediante a sábia dosagem de notas em frenesi, intercalando-as com momentos de calma, que as vibrações amplificadas provocassem o orgasmo da beneficiária do instrumento no preciso e sincronizado momento em que a partitura atacasse as notas do êxtase."

(Do livro História abreviada da literatura portátil, tradução de Júlio Pimentel Pinto, publicado pela Cosacnaify.)

Kama Sutra - CDLXXV

Gosta quando ela, com seus gemidos espalhafatosos, que arrepiam os três frades no quadrinho pendurado na cabeceira da cama, lhe pede que não pare. Gosta mais quando para, toma um longo fôlego e vai retardando o recomeço para que ela, agora com miadinhos aflitos de gata, implore que continue, que continue logo, se não quiser vê-la morta e arreganhada.

Um trecho de Antonio Prata

O sol matinal entrava pela janela basculante, condensando o vapor nos azulejos e dissipando pouco a pouco o cheiro de xampu. Com as calças arriadas até as canelas, prestes a começar meu xixi, eu mirava no penico da Turma da Mônica. Ao lado, enrolada numa toalha diante da pia, minha mãe escovava os dentes.
   Eu gostava muito de observar minha mãe escovando os dentes pela manhã: sua mão ia e vinha, rápida e precisa, de cima para baixo, depois fazia movimentos circulares, sem espirrar uma única gota de espuma. Tão diferente de mim, que só sabia escovar na horizontal e salpicava de branco a louça da pia, as torneiras, lambuzava o rosto inteiro. Minha mãe era tão hábil que conseguia até escovar os dentes e andar pela casa ao mesmo tempo - uma de suas façanhas que eu mais admirava. Com a mão livre, era capaz de exercer outras atividades, como tirar as roupas sujas do cesto, pentear o cabelo ou guardar uma toalha no armário. Depois, voltava para a pia e cuspia com elegância; a espuma saía da sua boca unida e silenciosa, como uma bolinha de pingue-pongue."

(Da crônica "Bom menino", do livro Nu, de botas, publicado pela Companhia das Letras.)

Bissexta incursão pela tevê

Num censo do senso de humor na televisão brasileira, não imagino que outro programa poderia ser citado a não ser Pé na cova. Um humor não só de palavras, mas de situações. Personagens que com uma piscada, ou nenhuma, exprimem tudo. Todos brilham, o que é uma façanha num elenco liderado por Marília Pêra e Miguel Falabella - este mais contido, mais sóbrio, trabalhando mais com os meios -tons. Também um conteúdo musical que valoriza a trama de tal forma que às vezes faz lembrar as trilhas de Nino Rota para Fellini. Momentos de arte nos fins de noite das terças-feiras.

Três letras e uma exclamação

O Brasil é aquele país em que a palavra gol! é poesia, e as outras todas são algaravia.

Quatro velas

A mulher olha bem para ele. Sob a luz mortiça, a ternura por um momento a faz rever o rosto que ele tinha anos antes, no dia do casamento. Mas logo as rugas e o sofrimento recuperam seu lugar. Do casamento só ficou o terno azul-marinho, o melhor de toda sua vida.

Modos de ser

Há quem sacuda os bagos ao rezar, antes de dormir, e há quem arrote ouvindo Chopin.

Quem há

Quem há de se importar com as palavras que pronunciam teus lábios quando eles se movem como pétalas úmidas de rosa, contraindo-se, expandindo-se levemente, como fazem os lábios quando querem dizer que não foram feitos só para falar?

Putrefação

Logo os poemas de amor começam a feder na gaveta. Rosas falsas, frutos podres, vermes mexendo-se preguiçosos entre as sílabas.

Soneto dos olhos que fechados ainda veem

Eu fecho os olhos em vão.
Com tantos rogos rogados,
Não encontrei ainda mão
Para mantê-los fechados.

Quem dera tê-los lacrados,
Imersos na escuridão,
Já que, da vida cansados,
Dela não querem visão.

Quem dera mortos estarem
Para nunca mais olharem
Para o que não devem ver.

Que mortos sempre estivessem
Para quem por quem padecem,
Para quem os faz morrer.

"Rosa velha", de Heinrich Heine

"Era só um botão de rosa,
Mas queimou meu coração;
Floresceu e foi-se embora,
Virou musa da estação.

Rosa tão maravilhosa,
Eu a quis em meu buquê;
Mas a flor era espinhosa,
E logrou se defender.

Hoje, murcha e destruída
Pela chuva e pelo vento,
Vem a mim - Henri, chéri! -
Cheia de contentamento.

Heinrich, Heinrich, queridinho -
Diz na doce intimidade;
Só me queixo é de um espinho
Bem no queixo da beldade.

Um pelinho piniquento
Na verruga me atrapalha -
Filha, vá para um convento
Ou te apruma com navalha."

(Do livro Heine hein? - poeta dos contrários, tradução de André Valias, publicado pela Perspectiva.)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Paciência

Pendurado na corda
embora na sala
brisa não entre
nem vento
venha soprar
o suicida aguarda
sua roupa secar.

Leitura de férias

Que desperdício será
quando estivermos mortos
aquele livrinho de poemas
que céu e terra movemos
para encontrar

que deixamos para ler nas férias
para melhor o apreciar
e não lemos

Bom tudo bem paciência

Pior seria o prejuízo
eu diria até
se a gramática
me permitisse dizer
que ele seria
muito mais grande
se o livro
para nas férias ler reservado
fosse aquele alentado
a vida e as opiniões
do cavalheiro tristram shandy.

Kama Sutra - CDLXXIV

Imagina que êxtase gozaria se, como se fossem um garoto e uma menina, ele a convencesse a brincar de passarinho e ela o deixasse espalhar sobre o ventre nu migalhas de bolacha. Ele bicaria com cuidado, para que a ela aquilo não parecesse senão cócegas, depois das quais - esta parte ele não teria combinado com ela - ele iria, com a boca farelenta, saciar a sede um pouco mais abaixo.

Um trecho de Enrique Vila-Matas

"Rigaut fez pouco-caso das palavras de seus amigos, pois desde que voltou da África o suicídio havia adquirido, para ele, valor de sacramento único. Deu seus primeiros passos em direção a esse gesto definitivo em Port Actif, quando, sem avisar ninguém, penetrou na selva, desaparecendo numa obscura noite de grandes árvores em que, rodeado pelo úmido silêncio das folhas, inventou para si mesmo o pretexto de que estava perdidamente apaixonado por Georgia O'Keefe para assim poder se sentir cada vez mais inclinado a deixar a vida, pois estava seguro de que sua amada o rejeitaria sem nem sequer olhar para trás, o que de fato aconteceu. Mas, como já disse, isso não foi obstáculo para que demorasse ainda dois anos para se suicidar.
   É que, durante esse período, sentir-se imensamente desgraçado e ter diante de si a perspectiva do suicídio lhe devolveu o senso de humor, o que é fácil de constatar naquele texto ou anúncio publicitário que, na volta de Port Actif, redigiu em Paris com a intenção de divulgar sua Agência Geral do Suicídio, um departamento peculiar na história da literatura portátil:
   'A Agência Geral do Suicídio oferece finalmente um meio bastante adequado de abandonar a vida, pois, de todas as extinções, a morte é a única que jamais se desculpa. Assim se organizam os enterros-expressos: banquete, cortejo de amigos e conhecidos, fotografia (ou máscara mortuária, à escolha), distribuição de lembrancinhas, suicídio, colocação no ataúde, cerimônia religiosa (facultativa), traslado do cadáver ao cemitério. A Agência Geral do Suicídio se encarrega de realizar as últimas vontades dos Senhores Clientes'."

(Do livro História abreviada da literatura portátil, tradução de Júlio Pimentel Pinto, publicado pela Cosacnaify.)

O amor

O amor é o mais democrático dos tiranos. Nós o elegemos, aclamamos, entronizamos, e com que orgulho o vemos exercer seu poderio sobre nós. Amamos seus calabouços, suas torturas, as confissões que nos arranca. A todo instante olhamos as marcas que ele nos deixa. Que jamais venham a se apagar. Se nos fere com brandura, nós o recriminamos. Um tirano jamais há de ser gentil. Depois de uma hesitação, a primeira, quantas mais podem vir? E que será de nós se ele um dia abrir o cárcere e nos disser que estamos livres? Que ele nunca se esqueça da nossa ração diária de pão seco e água e que jamais os olhos do seu chicote fiquem cegos para as trilhas da nossa carne.

Meu sofá

Meu sofá é agora meu barco. Navegamos pela sala na velocidade que convém à nossa idade. Parece que nem nos movemos. Não temos ilusões de descobrir ilhas ignotas nem nascentes de rios. O google já mapeou todas. Minha carta de navegação é um livro, quase sempre de poesia: Wislawa, Emily, Rainer, nos quais encontro a voz que um dia pensei ter. Procuro esquivar-me se o poema é de amor. O amor é já vento demais para mim e para o meu sofá. Se começo a sentir inquietação na água debaixo de nós, viro uma página, duas, e pronto: estamos meu sofá e eu de novo navegando placidamente, sob um fio dágua que não aspira a chegar ao mar.

Os dois chamados

Talvez seja bom
estares surdo
como estás

Aquele dia
em que pensaste
ouvir alguém
chamar teu nome
e olhaste
e só viste
um homem
que não reconheceste

aquela noite
em que não sabes
se sonhando
se acordado
ouviste
teu nome pronunciado
e sentiste
um arrepio
um calafrio
uma estranha presença
não seriam
dois chamados
que a Morte fez
e aceitou adiar
por condescendência
com a tua surdez?

Birras

De quem diz no meu humilde modo de ver, essa é uma excelente pergunta, eu preciso me debruçar sobre o assunto, é um tema controverso, há "n" questões a esclarecer, convém ressaltar.

Um antônimo na rua Formosa

Certa madrugada, no snooker da Formosa, vi Jesus Cristo. Ele me disse: "Sai dessa vida, rapaz. Que pouca-vergonha!" Eu gaguejei, não consegui dizer nada. Baixei os olhos, envergonhado. Quando os reergui, vi espantado um homem que parecia espantado também. Assim como eu, tinha um taco na mão. "O que foi? Parece que você viu o Diabo!" Eu ri: "Quase." "Quase? Não entendi." Respondi que tinha visto um antônimo. Ele, que era revisor do Estadão como eu, sabia que um antônimo não é coisa que se veja num snooker. Disse que eu estava bêbado. Ele estava certo.

Soneto de como se acende o fogo do amor e do sexo

Se bem que ao se resumir
Mais chances haja de errar,
Mulheres gostam de ouvir
E aos homens cabe falar.

A alguns agrada mentir,
No louvor exagerar,
No sentimento fingir,
Paixão maior simular.

Vale tudo nesse jogo,
Vale até mesmo a verdade.
Importa apenas que o fogo,

Seja do amor ou do sexo,
Arda com intensidade,
A um simples beijo ou amplexo.

No lixão

O menino já encontrou no lixão uma cara do Batman, um braço do Homem-Aranha e a perna de um herói não identificado. Parece que o mal está vencendo a luta. Talvez a ele, menino, esteja reservada a missão de salvar o mundo. Precisa crescer logo, pensa, comendo o feijão com arroz que divide com os sete irmãos.

Sonetilho de quantos podem caber numa cama

A ti eu não mentirei.
Ao saber que até o Loxas
Te andou metido nas coxas,
Confesso que me queimei.

E quando me confirmaram
Que os dedos de Ígor Catunda
Dedilharam tua bunda,
Meus nervos se alucinaram.

Confesso que isso me doeu.
Por que todos menos eu?
Mas, depois da frustração,

Aceito já o fracasso
E a pergunta que me faço
É outra agora: e por que não?

Poemas de Heinrich Heine

"Não creias que é burrice eu aturar
As tuas escabrosas diabruras;
Nem penses que meu vício é perdoar,
Como se eu fosse um deus lá das alturas.

Aguento os teus chiliques e capricho
Resignado e sem abrir a boca.
Um outro já teria dado o troco
E te jogado com desdém no lixo.

Querida, não há Cristo que suporte
A cruz que vou levando de bom grado!
Mas juro, não lamento a minha sorte:
Contigo hei de expiar todo o pecado.

Mulher, teu outro nome é Purgatório!
Mas sei que dessa fria companhia
Irá me resgatar, um santo dia,
O Deus do amor e da misericórdia."

                     ***

"Entristecido olho pra cima -
Acena-me um montão de estrelas;
Contudo eu não encontro a minha,
Em canto algum consigo vê-la.

Terá no argênteo labirinto
Perdido o rumo feito eu,
Que neste mundo me ressinto
De nunca ter achado o meu? -"

                    ***

"Meus desejos brilham ouro!
Mas são bolhas de sabão -
Feito a vida se me foram,
E eu caído aqui no chão!

Digo adeus! Eles se foram,
Meus desejos: tudo em vão!
Foi mortal o duro golpe
Que atingiu meu coração."

(Do livro Heine hein? - poeta dos contrários, tradução de André Valias, publicado pela Perspectiva.)

                         

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Soneto da integridade do ser

Nós fomos tão aplicados,
Nós nos esforçamos tanto,
Quisemos ser, e no entanto
De ser estamos cansados.

Fomos tão compenetrados,
Nem mesmo Deus sabe quanto,
Que hoje o nosso riso e o pranto
Repetem ritos passados.

Buscamos nossa unidade,
Nossa personalidade,
Ousamos ser nosso ser.

Podendo ser tantos, somos
O que ontem e anteontem fomos,
E assim sempre, até morrer.

Kama Sutra - CDLXXIII

Ele roça os dedos por ela como se tocasse furtivamente a pele da estátua de uma divindade num templo. Sabe a maldição que lhe caberá, mas não se contém. Talvez uma estátua possa ser considerada como um manequim de lojinha de saldos, pensa, para aliviar a consciência. Mesmo assim, avança tímido, como se não avançasse. Nem respira. Sente na mão uma suavidade que quase não sente, como se sob os dedos houvesse uma suposição de teia. Há uma inquietação nos fios, uma aquiescência. Ele deixa a mão pesar um pouco mais. Os fios não a repelem. As divindades também pecam.

Um poema de Heinrich Heine

"Também no vício, ó Natureza?
Será que um dia nos suplantas?
Eu vejo os animais e plantas
Mentindo que só uma beleza.

A mão no fogo eu não vou pôr
Pela camélia, pura e sábia;
Aposto que ela cai na lábia
De um salafrário beija-flor!

Aquele rosto tão modesto
Da violeta não me engana;
O odor seduz, mas tem é gana
De ser celebridade, atesto.

Duvido que seja sincera
A mise-en-scène do rouxinol;
Trila e soluça em mi bemol,
Só por rotina, e não se esmera.

Foi pras cucuias a razão,
Da lealdade deram cabo.
O cão ainda abana o rabo,
Mas morde quem lhe estende a mão."

(Do livro Heine hein? - poeta dos contrários, tradução de André Vallias, publicado pela Perspectiva.)

Em dias

Em dias como este, em que a alma nos surpreende e nos mostra que pode sofrer mais do que imaginávamos, não sei o que vocês fazem. Eu vou buscar poesia. Corro para o Centro Cultural Vergueiro (que bem mereceria chamar-se Mário Chamie) e procuro nas estantes aquilo que almas muito superiores à minha deixaram como testemunho. Compartilho com Rilke, com Celan, com Pessoa, a dor - que é o sentimento que mais une os homens. Reconforta ouvir o que eles disseram quando, como eu, acharam que a vida é uma cilada para a qual nunca estaremos preparados. Esta noite me condoí de um passarinho que piava, piava, sem resposta. Devia estar ferido. Chegou a manhã e não ouvi mais seu piado. Os otimistas dirão que, com o sol, foi resgatado pela mãe. Por ele, pelo passarinho, eu gostaria de acreditar. Mas sempre há de haver um passarinho assim, que pede socorro numa noite de chuva. Os outros são como se não existissem. Os poetas são iguais. Piam, piam. Dizem os outros que eles só querem chamar a atenção. E, assim dizendo, dormem com seus pijamas pela gola dos quais escorre, de madrugada, a satisfeita baba da autossuficiência.

Soneto dos dois vitais aprendizados

Viver não faz meu estilo,
Não tenho preparo, jeito,
Em tudo vejo defeito,
Se não é nisto é naquilo.

Disseram que era tranquilo,
Que eu logo estaria afeito,
Que para viver fui feito,
E mais isso e mais aquilo.

Eu só sei que envelheci
E a viver não aprendi,
Nem sei se vou aprender.

O que me inquieta é pensar
Se saberei me portar
Quando me couber morrer.

Reminiscência familiar

Lembrei-me ontem, repentinamente, de minha irmã mais velha, Wanda. Era inquieta, rebelde, insubmissa. Para a minha mãe, era a ovelha negra. Para impedi-la de ir a um baile, ela lhe queimou com o ferro de passar roupa os cabelos, que desciam quase até a cintura. Não vi isso, não era nascido ainda. Mas me entristeço por ela, hoje. Ah, minha irmã, minha mãe. Quantos padecimentos sofre a carne antes de se transformar em pó. Imagino minha mãe abrindo a porta e dizendo: "Pode ir agora, está esperando o quê?"

Sobre o que há para cantar

Há no mundo
uma tristeza tão grande
de pais de mães de filhos
tristeza de árvores
tristeza de rios
de animais

Há no mundo
uma tristeza
que se expande
geral total global
universal

Serei eu
um cantor solitário
da alegria
ou um cantor solidário
e cantarei
a tristeza
a desgraça
e a agonia?

Sobre a crônica

É preciso certo cuidado ao escrever crônicas. O passado é importante, e qualquer testemunho sobre ele deve, em tese, ser encarado com simpatia. Mas deixar os olhos só no passado já não é ser cronista, é ser memorialista, historiador. A vida continua, e observá-la, e vivê-la, ainda que seja apenas através da janela, é melhor do que procurá-la nas gavetas e nos arquivos. Aos jovens atrai cada vez menos aquele tipo de texto que começa com naquele tempo.

A única obrigação

À medida que envelhecemos, o mundo pesa menos sobre nós. Nossos deveres diminuem, nem sabemos bem quais são. Dizem-nos que nos cumpre comportar-nos de acordo com a nossa idade - e há sempre nisso a velada afirmação de que a vida já não nos diz muito respeito, até por um sentimento de reciprocidade, ou de vingança, já que há muito tempo ela não se interessa mais por nós. Falam de nossa experiência - chamam-na até de sabedoria, quando estão num dia de generosidade -, mas, se a oferecemos, ninguém quer servir-se dela. Sabemos que só nos resta uma obrigação e que, se fôssemos mesmo sábios, anteciparíamos seu cumprimento: a obrigação de morrer.

No lixão

Os olhos da menina brilharam. Era um pacote do Mc Donald's. A mão encontrou dentro só um sachezinho de mostarda. Ela o rasgou gulosa com a boca, embora lhe faltasse um dos dentes.

Soneto de Pablo Neruda

"Os que se amaram como nós? Busquemos
as antigas cinzas do coração queimado
e ali que tombem um por um nossos beijos
até que ressuscite a flor desabitada.

Amemos o amor que consumiu seu fruto
e desceu à terra com rosto e poderio:
tu e eu somos a luz que continua,
sua inquebrantável espiga delicada.

Ao amor sepultado por tanto tempo frio,
por neve e primavera, por esquecimento e outono,
acerquemos a luz de uma nova maçã,

do frescor aberto por uma nova ferida,
como o amor antigo que caminha em silêncio
por uma eternidade de bocas enterradas."

(De Cem sonetos de amor, tradução de Carlos Nejar, publicado pela L&PM.)

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Tia ligando para o sobrinho de três anos

"Tudo bem aí? Estou com saudades. O que você está fazendo?"
"Falando com você."

Birras

De quem diz obra seminal, patota, galera, mulherio, vou estudar com carinho o seu caso, de quem não diz amor quando quer dizer.

Soneto da paz que se procura merecer

Agora os dias inteiros
São nossos. Nada nos chama,
Ninguém mais nos quer, nem ama,
São nossos, só, os roteiros.

O amor já não nos reclama
Aqueles atos useiros,
Nem os tormentos vezeiros,
Extinta está sua flama.

Agora que estamos sós,
Cuidemos enfim de nós,
Busquemos a nossa paz.

Possamos logo ser só
Aquele pouco de pó
Sob a inscrição: aqui jaz.

"Leitura de poesia", de Margaret Atwood

"Ao observar o poeta - o poeta conhecido -
saquear suas entranhas, expondo
todo seu estoque de pensamentos destrutivos
e vergonhosas lascívias,
seus ódios rançosos, suas ambições fracas mas estridentes,
você não sabe se sente desdém ou gratidão:
ele está fazendo nossa confissão por nós.

Está encaixotado num pulôver macio,
desafiadoramente não preto, mas amarelo-claro
feito sorvete de creme, a cor
que você compra para as crianças quando não quer parecer sexista,
e seu rosto com a testa preocupada
flutua contra o fundo do palco escuro,
os traços um tanto indistintos
como o Sol através da névoa,

e você compreende como o rosto dele foi, um dia,
quando era um menininho ansioso
equilibrado nas pontas dos pés, fitando o espelho
e perguntando, Por que não consigo ser bom?
e mais tarde, São esses os meus verdadeiros pais?
e um pouco mais tarde, Por que o amor dói tanto?
e mais tarde ainda, Quem causa as guerras?

Quer tomá-lo nos braços
e lhe dizer um punhado de mentiras.
Gente normal não faz essas perguntas,
você poderia dizer. Vamos em vez disso fazer sexo.

Sabe que mulheres mais burras do que você
propuseram esse remédio para todos os males
da mente e do espírito. Jurou nunca fazer isso,
então está abrindo uma grande exceção aqui.

Mas ele só responderia,
Já lhe falei das minhas crostas de ferida e compulsões,
meus tormentos sórdidos, minha falta de dignidade -
Eu só iria sujá-la.
Por que perde tempo comigo?

Ao que você responderia:
ninguém o obrigou a fazer isto,
esta vadiagem com sílabas e dor,
este rolar nu sobre os cardos
e enfiar a língua nos pregos.
Você poderia ter sido pedreiro.
Poderia ter sido dentista.
Com um casco duro. Impenetrável.

Mas é inútil. Muitos pedreiros
estouraram os miolos com espingardas
por puro desespero. Com dentistas a taxa é mais alta.
Talvez seja em vez de, esta poesia.
Talvez a fileira de palavras
que sai dele agora como uma veia arrancada
seja tudo o que o mantém preso
a uns poucos metros desta terra.

Então você continua observando, enquanto ele se esfola
num êxtase de autorreprimenda;
ele está de roupas de baixo, agora,
a camisa de pelos, as correntes -
N.B., estas são metáforas -
e você vê que afinal
há uma fria habilidade nisso, como enfiar contas num colar
ou estripar uma cavalinha.
Há técnicas, ou truques.

Mas assim que você começa a se sentir lograda
a voz dele para, abrupta. há uma breve inclinação de cabeça,
e um sorriso, e uma pausa;
e você sente sua própria inspiração
como um punho de ar golpeando-a
e se soma ao aplauso."

(Do livro A porta, tradução de Adriana Lisboa, publicado pela Rocco.)

Segunda

Fazer o que com esta segunda-feira que me olha com cara de menino fugido do recolhimento de menores? Dinheiro atrai dinheiro, tristeza chama tristeza. A minha bem me bastaria e, se eu pudesse dividi-la, haveria o bastante para um programa social, talvez com a criação de uma secretaria. E me vem esta segunda com o rosto dos famélicos e dos desesperançados. Uma segunda-feira com jeito de Finados, enguardachuvada e vestida de preto como uma viúva. Que farei com ela? Nem consolá-la posso, eu, que se tivesse esse dom já o teria usado em benefício próprio, certamente. Alguém deve tê-la mandado a mim, dado meu endereço. Ultimamente eu tenho recebido incumbências assim: acolher segundas-feiras, e terças, talvez para que, olhando para mim, não se sintam tão injustiçadas. Estive ontem com o domingo aqui em casa e não nos demos tão mal. Não trocamos uma palavra, é verdade. Ao contrário dos domingos da minha infância, os de hoje são caladões. Talvez, como no meu caso, seja efeito da velhice.

Kama Sutra - CDLXXII

O que mais lhe apraz numa cama é dedilhar. Nas mãos é que sente o prazer mais intenso. É como se tivessem livre-arbítrio. Às vezes, sonha que está com uma mulher e acorda com o frisson dos próprios dedos, que o tocam como se ele tivesse seios e nas entrepernas aqueles lábios que se abrem como uma flor.

No asilo

Alguém me perguntará se é verdade que lidei com poesia. Responderei que não, e ouvirei dele: "Eu sabia. Eles é que acham. O senhor não tem jeito de poeta. Os poetas são esquisitos. Vou dizer uma coisa, mas não é para espalhar. Eu sou poeta."

No lixão

Os adultos espantaram o cachorro que disputava com eles os restos do saco de um restaurante. Os meninos o acolheram com festas. Um deles tirou do bolso um pedaço de pão que tinha acabado de pegar, soprou-o, para tirar uma sujeira, e atirou-o para o alto. O cachorro o apanhou como se fosse um bife.

Rosa dos ventos

Nos lábios de todos os marinheiros estavam teu nome e vestígios da ávida passagem deles pela tua oferecida tatuagem.

Resultado

Tão tolos foram
meus ideais
tão banais

Por que eu
quis tão pouco
por que eu
não ousei mais?

Poderia ao menos agora
sem me sentir farsante
gozar o agridoce gosto da derrota.

Soneto de como o amor deve ser sepultado

Quando o amor for enterrado,
Melhor que esteja chovendo,
Que frio esteja fazendo
E seja um frio gelado.

E que, no horário marcado,
Tão pouco público havendo,
Alguém acabe querendo
Ver o enterro postergado.

Que seja um enterro pobre
Para um sentimento nobre
Que tanto se conspurcou.

Que o amor, antes imponente,
Se enterre como indigente -
Foi isso que ele buscou.

Sobre o corpo e a alma

Em assuntos da alma, o corpo deve ficar alheio. A nenhum corpo a alma se entregará, ainda que os olhos nele vejam a cintilação da extrema beleza. Que ninguém, no êxtase do desejo satisfeito, diga ao ouvido de mulher ou homem minha alma. Essas duas palavras, as mais puras que alguém é capaz de pronunciar, podem ser dirigidas àquela mulher ou àquele homem que nunca se teve e nunca se terá nos braços. Minha alma  se diz a amores impossíveis, inalcançáveis como as divindades. Ninguém leva uma alma ao motel, ninguém a faz passar pelos olhos cínicos do porteiro, ninguém a deita na cama, ninguém derrama sêmen dentro dela. Nossa alma, se existir, é só o que se salvará do fogo, da terra, dos vermes e de nossa miséria corporal.

Três parágrafos de Katherine Mansfield

"É uma coisa muito estranha, a forma pela qual se adquire a arte de escrever. Refiro-me aos detalhes. Por exemplo: em Miss Brill, eu escolho não apenas o comprimento de cada frase, mas até o som de cada uma delas. Escolho o subir e descer de cada parágrafo para que se ajuste a ela, e que se ajuste a ela naquele dia, naquele exato momento. Depois de escrever, leio em voz alta - inúmeras vezes - assim como alguém ensaiaria uma composição musical - na tentativa de fazer com que se aproxime cada vez mais da maneira como Miss Brill se expressava. Até que se ajuste a ela.
   Não pense que estou sendo vaidosa no que se refere ao pequeno esboço. Eu queria apenas explicar o método. Muitas vezes eu queria saber se outros escritores fazem o mesmo. Se uma coisa fica realmente pronta, me parece que não deve haver uma única palavra fora do lugar, ou uma palavra que pudesse ser omitida. É a minha intenção ao escrever. Levará algum tempo para que eu consiga chegar perto disso.
   Mas você sabe, Richard, na noite passada estive pensando que as pessoas mal começaram a escrever. Por um momento, exclua a poesia, e deixe Shakespeare de lado - refiro-me à prosa. Pegue o que haja de melhor nela. Não estão ainda dividindo-a em trechos, em vez de lidar com a ideia num todo? Tive um momento de completo terror, durante a noite. De repente, pensei em uma mente viva - toda uma mente sem ficar absolutamente nada de fora. Com tudo o que se sabe, quanto ainda não se sabe? Eu costumava imaginar que conhecíamos tudo, com exceção de uma espécie de misterioso núcleo. Mas agora penso exatamente o contrário. O desconhecido é muito, muito maior do que o sabido. O conhecimento é apenas uma sombra. Isso é uma coisa terrível e terrivelmente dura de se encarar. Mas tem de ser enfrentado."

(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

domingo, 24 de novembro de 2013

Encontrado entre os escritos de um cachorro velho

Quantas noites te busquei, seguindo nos postes a urina dos cães jovens. Nunca cheguei a tempo, nem preciso te dizer. Eles vinham sempre voltando. Foi por eles que fiquei sabendo como fazias, como ganias, como gostavas.

No asilo

Um dos velhotes sempre me fará a mesma pergunta: se eu peguei o tempo dos bordéis. Nunca esperará a resposta, e começará a suspirar: ah, os bordéis. E sua boca murcha se mexerá, como se sorvesse um gole de champanhe ou beijasse um seio mercenário. E murmurará um nome que eu nunca saberei se é Annette, Jeannette ou Paulette.

"Escrevendo um currículo", de Wislawa Szymborska

"O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.

O currículo tem que ser curto
mesmo que a vida seja longa.

Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.

De todos os amores basta o casamento,
e dos filhos só os nascidos.

Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.
Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê.
Distinções sem a razão.

Escreva como se nunca falasse consigo
e se mantivesse à distância.

Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,
de trastes empoeirados, amigos e sonhos.

Antes o preço que o valor
e o título que o conteúdo.
Antes o número do sapato que aonde vai
esse por quem você se passa.

Acrescente uma foto com a orelha de fora.
O que conta é o seu formato, não o que se ouve.
O que se ouve?
O matraquear das máquinas picotando papel."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

O único

O amor impossível é o único. Fora disso, o que há é a carne e suas bem-sucedidas ou malogradas tentativas de entretenimento.

Domingo

Que este domingo valha as lágrimas que por ele verteremos. São elas, agora, a nossa medida. Os risos ficaram lá atrás, e se ainda ecoam é fracamente, como símbolos de nossa ingenuidade.

www.rubem.wordpress.com

O site publica hoje novo texto meu, em que puxo reminiscências da Sé, embora meu velho coração tenha andado cada vez mais pela Major Quedinho e pela Caetano Álvares. Como um elefante moribundo, vou tomando o caminho de volta.

No asilo

Um dos velhotes me pedirá sigilo e dirá que é Carlos Drummond de Andrade. Perguntarei: "Mas ele não morreu?" Ele baixará a voz: "Esse mesmo."

Cotação do dia

Um desejo de adoecer gravemente, de estar à morte, como estive quando tinha dez anos. Todos corriam para me socorrer, me acarinhar, me consolar. Era bom estar deitado, com febrões de quarenta graus. Nunca fui tão protagonista. Não me negavam nada. Tornei-me um chantagista. Cada remédio que precisava tomar, cada injeção, me rendiam alguma coisa. Tenho vontade de adoecer assim, seriamente, e ameaçar morrer se não me derem... o quê? De que me valeriam os gibis agora, as figurinhas, a bola? E quem teria boa vontade comigo agora? Uma pessoa? Duas? Minha chantagem hoje precisaria ser outra: ameaçar viver muito tempo ainda, se não me dessem... o quê?

Nós, os grandes

Cada um de nós
é um império destroçado

Assim nos vemos
se qualquer sonho nosso
é contrariado

Somos todos grandes
napoleões
césares
alexandres

Uma empresa gorada
uma coisa que devia
dar certo
e sai errada
é um eclipse
uma catástrofe
um apocalipse

Não é soberba nossa
megalomania

Nossas quinquilharias
nossos irrisórios combates
valem mais para nós
são mais sérios
que as conquistas
e os desastres
de todos os impérios.

De cães e homens

Assim como fazem com os cães, algumas mulheres conduzem os homens pelas coleiras, dão-lhes ração e agrados na hora certa e mensalmente os levam ao veterinário. Tudo bem planejado e disciplinado. Alguns, que não suportam as rotinas, de vez em quando urinam no tapete, para gozar o prazer de ter o focinho enfiado por elas no mijo.

Kama Sutra - CDLXXI

Nunca diz às mulheres que a habilidade nos seus dedos, sempre enaltecida por elas, vem de contar notas no banco. Acha que não seria romântico.

No lixão

O garoto abriu a caixa de sapatos. Mexeu no gato que ali dormia, o gato não acordou. Ele o repôs então no lugar, mas fez três furos na caixa, para ajudá-lo a respirar.

Soneto em que se compara o amor a uma gaivota

Talvez o mundo pudesse
Dar sobre o amor depoimento
Se fosse o amor sentimento
Que ao mundo julgar coubesse.

O amor melhor me parece,
Se o submeto ao pensamento,
Do que este mundo nojento
No qual definha e apodrece.

Talvez o único lugar
Onde o amor possa existir
Fosse no céu, sobre o mar:

Gaivota pairando no ar,
Que nada ousasse atingir,
Nem ferir, nem conspurcar.

Autocrítica

Incomoda-me sentir que muitas de minhas atitudes, quase todas, são movidas por ciúme, inveja, despeito. Aprendi uma lição. Não farei mais nenhuma promessa de me regenerar. Não a cumpriria. Mordo-me, devoro-me de ciúme, inveja e despeito de todos os tipos: pessoal, sentimental, literário. Estou velho demais para me tornar padre - e o único que me agradaria ser seria o Vieira.

Um soneto de Pablo Neruda

"Oh que todo o amor propague em mim sua boca,
que não sofra um momento mais sem primavera,
eu não vendi senão minhas mãos à dor,
agora, bem-amada, deixa-me com teus beijos.

Cobre a luz do mês aberto com teu aroma,
fecha as portas com tua cabeleira
e em relação a mim não esqueças que se desperto e choro
é porque em sonhos apenas sou um menino perdido

que busca entre as folhas da noite tuas mãos,
o contato do trigo que tu me comunicas,
um rapto cintilante de sombra e energia.

Oh, bem-amada, e nada mais que sombra
por onde me acompanhes em teus sonhos
e me digas a hora da luz."

(De Cem sonetos de amor, tradução de Carlos Nejar, publicado pela L&PM.)

sábado, 23 de novembro de 2013

Amém

Que seja a poesia que nos mova sempre, ainda que seja para o túmulo.

Antídoto

Nas noites em que ainda, pensando em ti, não consigo entregar-me ao sono, imagino verrugas nas tuas coxas, cicatrizes no teu ventre e estrias na tua bunda. Outrora eu as beijaria.

Soneto do pássaro que cantava o amor

Ontem eu senti no peito
O pássaro que acolhi
No tempo em que estive a ti
E ao teu afeto sujeito.

E aquele canto perfeito
Que dele eu outrora ouvi
Que o repetisse pedi,
Porém sem nenhum efeito.

Ele tentou, se esforçou,
Mas quando afinal cantou
Nem eu o ouvi, nem ninguém.

Ele sabia, como eu,
Que assim como o amor morreu
Ele está morto também.

"Epitáfio de Villon (Balada dos enforcados)"

"Irmãos humanos que ainda viveis,
Não sejais corações endurecidos;
Tendo pena de nós, pobres, talvez
De Deus sereis mais cedo merecidos.
Vede os pescoços, cinco ou seis, torcidos;
A carne, que sorveu tanto alimento,
Está hoje devorada e em fermento,
E ossos, a cinza e pó vamos volver.
Ninguém ria de tal padecimento:
Clamai a Deus a nos absolver.

Se de irmãos vos chamamos, não deveis
Tratar-nos com desdém por termos sido
Justiçados. Contudo, vós sabeis:
Nem por todos o senso é conhecido,
Desculpai-nos, por sermos falecidos,
Junto ao filho da Virgem, seu assento.
Conserve-nos da graça o acolhimento:
Livre-nos de no Inferno dissolver.
Eis-nos mortos, ninguém nos dê tormento:
Clamai a Deus a nos absolver.

A chuva nos lavou, limpou de vez,
E o sol secou e pôs enegrecidos;
Corvos cravam os olhos de avidez,
Barba e fios puxando enfurecidos.
Não nos firmamos mais, enrijecidos,
Balançando de um lado a outro, ao vento,
Sempre ao seu bel-prazer em movimento,
Mais furos que em dedal, a revolver.
Evitai da irmandade o envolvimento:
Clamai a Deus a nos absolver.

Príncipe Jesus, guiai-nos o tento,
Cuidai que o Inferno não esteja atento:
Lá, não há o que ver ou resolver.
Homens, do riso aqui há banimento:
Clamai a Deus a nos absolver."

(De Poesia de François Villon, tradução de Sebastião Uchoa Leite, publicado pela Edusp.)

Feira

O pasteleiro disse-lhe que tinha acabado o pastel de palmito, e ele, viciado nos sofrimentos da poesia, sentiu-se como Fernando Pessoa quando lhe serviram dobradinha fria.

Mais um sábado...

...a pingar metodicamente suas gotas, como num suplício chinês. Ainda que a razão tente argumentar, perseveraremos na ideia de que o nosso sofrimento é o maior do mundo, embora neste instante alguém, na Tailândia, no Afeganistão, ou aqui na Vila das Mercês, negue comida a um menino, enquanto levam a irmã dele, dois anos mais velha, a um quarto em que ganhará o pão com o suor e o sangue de suas pernas.

Execução

Depois dos estampidos
só se ouviram as vozes
dos cinco algozes

Afastaram-se rindo
sob a lua prateada

Vinte anos depois
só dois lembrariam
de maneira vaga
qual havia sido a piada

O que a contou e o que
não entendeu nada.

Kama Sutra - CDLXX

Sente aquilo que chama de nostalgia do batom. Tem saudade dos lábios que beijou, dos seus inquietantes e propiciatórios sabores artificiais. Neles sentia o doce alvoroço da transgressão, do pecado. Que prazer antecipado era vê-los falar, comer, beber, reter por um instante uma migalha, enquanto se aproximava o momento em que fixaria a boca ali, naquele laranja ou carmim que era como uma areia movediça chamando mais para o fundo, mais para o fundo, prometendo aos sentidos estremecimentos de carne morna e de cetim.

Kama Sutra - CDLXIX

No escuro, quem melhor conhece o caminho que leva aos esconderijos do amor são as mãos. Elas não sentem pejo de apalpar, porque para isso foram feitas, e, se têm alguma dúvida, o que dificilmente acontece, sobem às narinas, para consultá-las.

Aforismos

Aforismos são aquelas frases metidas a besta que pretendem resumir uma verdade.

Soneto das feridas que o tempo cura

Por mais que sejam doídas,
Por mais que o peito lacerem,
E ainda que nos dilacerem,
O tempo cura as feridas.

As dores mais incontidas,
As que mais fundo nos ferem
E as que atos loucos sugerem,
São pelo tempo contidas.

Mesmo as piores, as do amor,
Durem o tempo que for,
Não costumam ser fatais.

Tão triste é vê-las curadas,
Do nosso corpo apagadas...
Por que não duraram mais?

Metamorfoses

Tudo que temos são as palavras, e ora elas mudam ora somos nós que as mudamos. Isso, que à primeira vista parece um problema, só o será se formos filósofos, ensaístas, críticos. Se formos contistas, novelistas ou romancistas, será um problema bem menor. E, se é a poesia que nos move, é quase uma bênção que as palavras se mostrem tão escorregadias e que também nós possamos confundi-las e transformá-las, porque se num poema uma pedra for uma pedra haverá algo errado, ou com ela ou com o poema. Que haja sempre a possibilidade de atirá-la para cima e, com as mãos em concha, recolhê-la como um beija-flor.

A história

Por que nos ouviriam agora, quando a nossa voz soa como a de uma voz que não soa? Quem há de querer ouvir-nos ainda? A quem atrairemos? Erguemos um cartaz no qual convidamos todos a ouvir nossa história. E sublinhamos em encorpado vermelho que se trata de uma história de amor. Ah, não, outra vez? Ninguém quer, todos passam direto. O amor nos lábios de um velho é uma dessas piadas que ninguém mais aguenta ouvir. Até quando, santo Deus, os velhos vão continuar babando nessa mesma tecla?

Para que os vivos não venham a sofrer conosco

Caminhar ao sol
uma hora por dia
seguir a dieta
vigiar as calorias
baixar o colesterol

Trancar a geladeira
com severidade
como uma mulher dadeira
com cinto de castidade

Conter-se à mesa
não muito obrigado
comi um prato reforçado
dispenso a sobremesa

O que não comermos agora
parentes e amigos
agradecerão na hora
em que carregarem o caixão.

O absurdo

A filosofia não nos livra do absurdo, mas nos oferece a linguagem apropriada para defini-lo.

Dos "Aforismos sobre o amor", de Vatsyayana, sobre os eunucos

"Há dois tipos de eunucos: os que se vestem como homens e os que se vestem como mulheres. Os eunucos que se vestem como mulheres imitam-lhes as roupas, a fala, os gestos, a delicadeza, a timidez, a simplicidade, a suavidade e o acanhamento. Os atos praticados na jaghana, ou parte média do corpo da mulher, são praticados na boca desses eunucos, e a isso se chama Auparishtaka. Os eunucos tiram desse tipo de união um prazer imaginário e o seu sustento, e levam a mesma vida das cortesãs. É isso que há a ser dito sobre eunucos que se vestem como mulheres.
   Os eunucos que se vestem como homens mantêm seus desejos em segredo, e, quando pretendem fazer algo, eles adotam a vida de massagistas. Sob o pretexto de massagear, um eunuco desse tipo abraça e puxa para si as coxas do homem que está manipulando e, depois disso, toca os quadris dele e o seu jaghana, ou parte média do corpo. Então, se o lingam do homem estiver ereto, ele o pressiona com os dedos e brinca com ele até deixá-lo no estado desejado. Se, depois disso, e de entender a intenção do eunuco, o homem não o manda prosseguir, o primeiro começa a relação. Se, no entanto, o homem mandá-lo prosseguir, então o eunuco discutirá com ele e só concordará com ele depois de muita dificuldade."

(Compilação e tradução, do sânscrito para o inglês, de Sir Richard F. Burton; tradução para o português de Luciene Aquino; publicação da L&PM.)

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Soberba

No fundo, todo poeta é presunçoso como aquela antiga marca de fósforos. Diante de qualquer coisa sobre a qual ponhamos os olhos, por mais insignificante que seja, ordenamos: fiat lux.

Perfil

Eu sou assim
meio atrapalhado
meio desengonçado
um completo
destrambelhado

Se em tua rua
um lunático caiu
de um telhado
por querer
alcançar a lua
olha bem para ele

Olhaste?
Que belos olhos tens
minha adorada.

Trecho de "Aforismos sobre o amor", de Vatsyayana

"Tudo o que é feito por um homem para dar prazer a uma mulher é chamado de trabalho do homem, que consiste no seguinte:
   Enquanto a mulher está deitada na cama dele, ela deve fingir-se absorta pela conversa, e ele deve soltar o nó da roupa de baixo dela. Se ela começar a discutir com ele, ele deve enchê-la de beijos. Então, quando o lingam dele estiver ereto, ele deve tocá-la com as mãos em vários locais e manipular gentilmente várias partes do corpo. Se a mulher estiver tímida, e se for a primeira vez que ficam juntos, o homem deve colocar as mãos entre as coxas dela, que ela provavelmente manterá juntas. Se ela for muito jovem, ele deve primeiro colocar as mãos nos seios dela, que ela provavelmente cobrirá com as mãos, e também nas axilas e no pescoço. Se ela for madura, ele deve fazer tudo o que for agradável para ela, e tudo o que parecer adequado para a ocasião. Depois, ele deve pegar o seu cabelo e segurar o queixo dela entre os dedos com a intenção de beijá-la. Se ela for jovem, ficará tímida e fechará os olhos. É assim, pela conduta da mulher, que ele descobrirá quais são as carícias prazerosas para ela durante a união."

(Compilação e tradução do sânscrito para o inglês de Sir Richard F. Burton; tradução para o português de Luciene Aquino; publicação da L&PM.)

O pequeno catador de lixo

Com oito anos, sua principal atividade era catar lixo com o irmão, de dez. Este lhe ensinou que os outros meninos, todos, deviam ser evitados. Aproximavam-se e puxavam conversa só para distrair os outros catadores e pegar o melhor lixo. O irmão morreu faz um mês. Ele tem nove anos agora e vai para o lixão sozinho. Afeiçoou-se a um urubu. Respeitam-se.

Que um pássaro

Que um pássaro cante e voe já é extraordinário. Que ele cante e consiga ao mesmo tempo voar é miraculoso. Onde terá ele aprendido a delicadeza dessas notas leves que lhe permitem continuar flutuando?

Geografia

És minha geografia, minhas latitudes e longitudes. Viajo quando viajas. Às vezes nem sei onde estás, mas sinto na pele afagos de sóis mais civilizados e sopros de brisas setentrionais. E, aonde vais, como bem deves sentir, te segue a minha melancolia.

Soneto do dia em que se deve atender à porta

Já nada mais me conforta,
A vida não me apetece.
Minha esperança me esquece,
Minha ambição está morta.

Não atendo mais à porta,
Nem ninguém mais aparece.
Com quem assim enlouquece
Quem as relações não corta?

Não saio mais, já não há
Mundo além do meu sofá.
Aqui estou, e estarei.

Quando a porta o dedo certo,
O último, tocar, decerto
Nesse dia a abrirei.

Uma página de Ernesto Sábato

"Foi num café de Retiro que você veio me pedir umas moedas e eu perguntei se queria sentar-se. Você era um dos tantos que mendigam sua inocência como anjos excluídos de algum céu perverso e estranho. Claro que você não me conhecia, e me reconfortou compartilhar o encontro. Pois você, com sua pouca idade, tinha o olhar envelhecido por essas atrocidades que, em breve tempo, realizam no corpo e na alma a devastação dos anos.
   Sempre que voltei a esse café, procurei por você no desejo de cumprimentá-lo. Você já não estava, mas descubro-o em outras crianças, quando, à noite, ao voltar para casa, eu os vejo remexer entre o lixo, enfiando na imundície suas pequenas mãos, destinadas aos balanços e aos carrosséis. E então, não sei por quê, penso em Rimbaud. Talvez porque também ele pertencia à raça dos que cantam no suplício. Rimbaud, que nas ruas de Paris alimentava-se com o pão velho que tirava do lixo, e que à noite dormia encolhido sob as marquises. Recordei suas palavras: 'A verdadeira vida está ausente.'"

(De Antes do fim, tradução de Sérgio Molina, publicado pela Companhia das Letras.)

Cotação do dia

Um homem que olha a chuva através do vidro da janela e imediatamente pensa em metáforas. Daria todas em troca da visão que tinha quando era menino e simplesmente via a chuva através do vidro da janela.

O acaso

O acaso é um moleque aprontador. Estava batendo o texto "Vinho nas coxas" e ao escrever "abstinência" saiu "abastinência". Lembrei-me do célebre dicionovário do Millôr. Abastinência seria algo assim como uma abstinência abastada, uma deliciosa contradição em termos. Se foi você quem mandou, Millôr, não se acanhe. Mande mais.

Vinho nas coxas

Ontem ele pregava o misticismo e a abstinência. Hoje verte vinho entre as coxas das mulheres, no lupanar. Dizem que sempre foi assim, que não há como confiar nele. Eu o vejo como ele é: um ser humano. Talvez pregue melhor o misticismo depois da terceira garrafa e da terceira mulher.

Haicai (para o Xico Sá)

Por um triz
Cirano não derrubou o sol
ao assoar o nariz.

Sonetilho dos lugares aos quais não se deve levar a alma

Não leves a alma a um puteiro,
A um lupanar, a um motel,
Não a tentes com dinheiro,
Com honraria ou laurel.

O que dirás ao chegar
Debaixo da luz piscante,
Se o porteiro perguntar
Quem é tua nova amante?

Num antro de sacanagem
Será que terás coragem
De olhar para ele e dizer

Que não é nada especial,
Só uma garota legal
Que há muito queres comer?

De tempo, cartolas e coelhos

Todas as digressões filosóficas sobre o tempo parecem e parecerão sempre profundas. Colocar numa mesma frase passado, presente e futuro é sucesso garantido, como o dos mágicos que desentocam coelhos das cartolas. Vemos mil vezes aquilo, em circos internacionais e de capões redondos, nunca entendemos como funciona, mas estaremos prontos para ver pela milésima primeira vez. O tempo é escorregadio, não se deixa apanhar, digam o que disserem de einsteins e pascais, e quem conseguisse tê-lo nas mãos acabaria com o único problema que, no fundo, interessa à filosofia e ela jamais resolverá. Mas toda tentativa é acolhida com simpatia por nós. Nunca entendemos nada, embora, por educação e por nossas sempre tolas esperança e cortesia, acabemos aplaudindo sempre, para não magoar nem o mágico nem o coelho.

Kama Sutra - CDLXVIII

Às vezes, como agora, uma gota chega à ponta e parece que o prazer antigo se reproduzirá. O corpo todo, os nervos, os músculos, os poros se excitam. O cérebro se concentra ali onde a gota decide se chamará as outras. Mas ela hesita, vacila, volta, retrai-se, desiste. Por um instante a juventude esteve a ponto de ser recobrada. Chegou a brilhar nos olhos do homem, que agora se estende vencido na cama, busca no criado-mudo o maço de cigarros e o levanta, como um soldado entregando-se ao inimigo.

Pistas

Se na cena do suicídio houver um olor de rosas e não houver rosas, o principal suspeito há de ser o amor. E, se de uma velha vitrola um LP bem antigo de Lucho Gatica não tiver sido retirado, e a agulha estiver ainda sobre ele, que dúvida mais poderá haver?

Campainha

Tão fácil fechar-se em casa
mandar dizer não estou

Lá fora o amor
obstinado credor
faz limeriques
sofre acessos
tem chiliques
diz que vai cortar
todas as veias
e algumas mais

e se não for atendido já
neste preciso instante
levará o caso adiante
a todas as cortes
a todos os juízes
e a todos os tribunais.

O tema

Bom, ele pensava, agora que o amor estava morto, ele teria todo o tempo que lhe faltara para escrever. Ainda no cemitério, tocado agora por um vento frio que parecia querer dizer alguma coisa, ele pegou o bloco e a caneta e começou a escrever sobre aquele que os coveiros haviam acabado de entregar à terra.

Serpente

Ela me disse que não queria ver-me por um bom tempo. E essa palavra em seus lábios, entre seus dentes, esse bom, parecia uma serpente à espreita, sobre o teclado de um piano.

De "Aforismos do amor", de Vatsyayana

""Quando a mulher percebe que o amante está fatigado pela união sem ter satisfeito o seu desejo, ela deve, com a permissão dele, deitá-lo de costas e ajudá-lo, desempenhando o papel masculino. Ela também pode fazer isso para satisfazer a curiosidade do amante ou a própria.
   Há duas maneiras de proceder. A primeira é quando, durante o ato, a mulher se vira e fica por cima do amante, mantendo a atividade sem interromper o prazer, e a outra é quando ela desempenha o papel do homem desde o começo. Nesse momento, com flores nos cabelos soltos e com o sorriso interrompido por uma respiração ofegante, ela pressiona o peito do amante com os próprios seios e, baixando a cabeça, deve fazer os mesmos movimentos que ele fazia antes, devolvendo seus tapas e zombando dele: 'Eu estava embaixo de você, fatigada com a árdua união; vou fazer o mesmo com você'. Ela deve então manifestar novamente acanhamento, fadiga e o desejo de interromper a união. É dessa maneira que ela deve fazer o trabalho do homem."

(Compilação e tradução do sânscrito para o inglês de Sir Richard F. Burton, tradução de Luciane Aquino, publicado pela L&PM.)

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Kama Sutra - CDLXVII

Na cama ficou um perfume morno e salgado, como se a mulher, que em cada encontro esquece alguma coisa, um livro, um lenço, um batom, tivesse esquecido a mais preciosa de todas.

Soneto da insânia amorosa

Enlouqueci por amor
E foi tão doce a loucura
Que se me dessem a cura
Me mataria de horror.

Tomado pela ternura,
Perdi a noção de dor,
Venci o medo, o pudor,
Fui emoção, plena e pura.

Me mata agora a saudade
Do tempo em que a insanidade
Foi minha única razão.

Pena! Aproveitei tão pouco!
Nem tu, mais, me julgas louco,
Não crês no teu Napoleão.

Birras

De quem diz objeto de desejo ou sonho de consumo, de quem volta de um encontro dizendo ter comido carne de primeira, de quem diz isso piscando o olho e termina com um sentencioso "sabe como é".

Santo de casa

No início, um escritor pode ter apoio discreto da família. Quem sabe, tantas surpresas acontecem, ele sempre gostou de escrever. Melhor isso do que fumar e beber. Drogas nem me fale. Se o escritor, porém, atinge algum reconhecimento externo, passa a ter de se impor contra a família. Ninguém agora acredita que ele, tido sempre como inferior, possa contrariar a opinião daqueles todos que têm direito a veto e a voto em assuntos como esse, o de ver de repente um gênio ocupando o banheiro em horas alheias, o da escolha do cardápio de Natal e o do regulamento do amigo secreto.

Três poemas de Guimarães Rosa

"DEFINIÇÃO

O cigarro de fumaça impalpável e brasa colorida,
que se fuma a si mesmo num cinzeiro,
será um poeta?..."

                                           ***

"DELÍRIO

No parque morno, um perfumista oculto
ordenha heliotrópios...
Deixa aberta a janela...

Minhas mãos sabem de cor o teu corpo,
e a alcova é morna...
Apaguemos a luz...

Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?...

Passa o lenço de seda de tuas mãos
sobre minha fronte,
e não me digas nada:
a febre está, baixinho, ao meu ouvido,
falando de ti..."

                                                  ***

"REVOLTA

Todos foram saindo de mansinho,
tão calados,
que eu nem sei
se fiquei mesmo só.

Não trouxe mensagem
e não me deram senha...

Disseram-me que não iria perder nada,
porque não há mais céu.
E agora, que tenho medo,
e estou cansado,
mandam-me embora...

Mas não quero ir para mais longe,
desterrado,
porque a minha pátria é a memória.
Não, não quero ser desterrado,
que a minha pátria é a memória..."

(Do livro Magma, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

Cotação do dia

Um morto que, por defeito de fabricação e falha na função off, continua a agitar os braços e a falar.

Soneto dos frutos que só sementes eram

Não somos mais o que fomos.
É triste, mas o passado
Não pode ser resgatado,
E somos hoje o que somos.

O amor foi nossa semente,
Mas nós já pronto o julgamos
E, tolos, o desfrutamos
Como se fosse o presente.

Os frutos todos colhemos,
Os frutos todos comemos,
E enquanto o sumo bebíamos

Não nos ocorreu pensar
Que outros frutos desfrutar
Nós nunca mais poderíamos.

Onde se diz quão poderoso é o Amor

O Amor me chamou para passear

Era um dia comum
só um dia
como qualquer um

uma manhã
nem quente nem fria

Por mim
estava bem assim
mas eu julgava
que mais o Amor merecia

Como se adivinhasse
o Amor pediu
que os olhos eu fechasse
e estalou o médio
e o polegar

De repente
flores abriram-se
pelo caminho
e sob um sol esplêndido
os pássaros
começaram a cantar

Então
para seu poder melhor mostrar
ele estalou de novo
o médio e o polegar

e o sol morreu
em convulsões
e as flores
e os pássaros
e as canções

Um minuto depois
ainda dentro do truque
todo o cenário ele refez
(mas só nessa vez)

Na segunda
tempos depois
ele nem o sol
nem as flores
nem as canções ressuscitou

Até hoje não sei bem
por que ele fez isso

Foi um castigo ele disse
e eu aceitei.

Ernesto Sábato

O livro de memórias de Ernesto Sábato, Antes do fim, escrito quando ele, notável ficcionista, ensaísta, pintor e físico (trabalhou com Irene Joliot Curie), já estava muito debilitado e quase cego, logo às primeiras páginas traz à tona uma palavra que não anda em voga: humanismo. Sábato relutou em escrevê-lo e só se animou a levar o projeto adiante por considerar que seu relato poderia dar aos jovens uma arma contra o ceticismo. A maneira humilde com que ele se mostra é comovente. Narra todos os episódios de suas ricas experiências não com a empáfia da época atual, quando se quer ver em tudo desafios e em cada desafio heróis que os vencem. Sábato, num tempo em que todos aspiram a louros e gloríolas, é um extraordinário exemplo da superioridade do espírito.

O baile

Mandaram-me ir contar estrelas lá fora

Perguntaram-me se eu sabia
contar até dez mil
eu disse que tentaria

Devia estar tudo pronto
porque mal eu havia
começado a contar
veio de lá de dentro o som
de uma pianola
de um acordeom
de risos gorgolejantes
e exclamações obscenas

Contei meticulosamente
as estrelas que pude
e já com o sol quente
voltei ao salão

A pianola e o acordeom
a cerveja e a aguardente
a luxúria e o sexo
tinham derrubado os casais
e eles dormiam entremetidos
nas poltronas e no chão

Havia ali entre as mulheres
uma só a quem eu contaria
o resultado de minha soma

Mas também ela dormia
com a boca aberta
e a peluda fenda
escancarada como
uma aranha bêbada.

Condimento

O amor é aquele salzinho, aquela pimenta, aquela especiaria de nome abstruso que o sexo usa para justificar o preço.

É porque é

A religião dá sempre a última palavra, sem passar pelas intermediárias.

Cardápio

É tão esnobe que só toma caldo de cultura.

Deixar o amor como está

Agora que o amor morreu
convém deixá-lo estar assim
morto

Não dizer nada
pedir silêncio ao vento
deixar a janela fechada

Não niná-lo

Até uma canção de ninar
poderia acordá-lo

Deixá-lo bonito assim
com seu rosto de anjo
tão encantador
tão enganador.

O dicionário de Shakespeare

Deus criou as emoções humanas essenciais - amor, ódio, inveja, ciúme, cobiça, luxúria - e incumbiu Shakespeare de defini-las. Deus fez um vocabulário; Shakespeare, um dicionário. Os contistas, novelistas, romancistas e dramaturgos devem tudo aos dois. Dostoiévski, depois, acrescentou algumas categorias: a dos idiotas, a dos esquizofrênicos, a dos psicopatas. Com essas emoções e com esses tipos se fazem a vida e a arte.

"Gargalhada", de Guimarães Rosa

"Quando disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de mim, de ti, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo..."

(De Magma, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O abaixo mencionado

Já devo tê-lo mencionado na coluninha "Birras", mas ele é tão sórdido, pecaminoso, horrendo, sujo, escrofuloso, pustulento, fétido, tão raspalhoso, que abro para ele uma desonrosíssima exceção:

"Período sabático" é a puta que o pariu e o escreveu.

No lucro

Talvez sempre valha a pena
viver um pouco mais

Ontem eu me queria morto

Mortos têm seus hábitos
e não lerem poemas
é uma de suas atitudes

Que eles não saibam
pois logo serei um deles

Hoje li um poema
de Margaret Atwood.

Soneto do amor ao qual culpa não se pode imputar

Se tu me tens desapreço,
Por ser eu tão insistente,
Entendo perfeitamente
E pago, amiga, o teu preço.

Bem sei que não te mereço,
Que te querer é demente,
Mas sou assim, persistente,
E insisto, e não esmoreço.

Não fiques demais zangada,
Não tenho culpa de nada,
Quem tem culpa por amar?

Me trata com complacência,
Com toda a condescendência,
Me deixa ao menos sonhar.

Causa mortis

A pior morte que existe é aquela causada pela retenção de ternura. Ela se acumula no coração e o entope. Como não se manifesta por sinais exteriores, não é fácil diagnosticá-la. Mas, em suicidas, a autópsia sempre revela sílabas de poemas de Rilke e fragmentos de noturnos de Chopin.

Kama Sutra - CDLXVI

Quando adolescente, uma contorcionista de circo o impressionou e o encheu de uma ternura e uma inquietação que nunca mais viria a sentir. Ela era alta e, no final do número, reduzia o corpo de tal maneira que diante dos espectadores parecia pouco maior que uma cachorra de tamanho médio. Ele passou a pensar em uma que fosse baixa e, ao se apequenar, se assemelhasse a uma gata. Poderia levá-la no bolso para onde fosse e desdobrá-la quando ela quisesse. Nunca, porém, à noite, quando a aninharia no colo e começaria a beijá-la sem saber se beijava os braços, as pernas ou outras partes que ela camuflasse com seu mágico jogo de se desmontar e remontar-se.

Conversas no quintal

Apaixonou-se por uma estrela. Toda noite vai ao quintal para falar com ela. Por enquanto, vai indo bem. Aprendeu com os erros e, embora palavras de amor acorram a todo instante aos seus lábios, ele não as diz. Fala de outras coisas. A estrela o ouve. Mesmo assim, ele receia que as estrelas tenham tanta percepção quanto as mulheres e o mesmo gosto de aniquilar quem as ama. Parece estranho amar sem revelar o amor, mas ele se mantém firme. Cinco noites se passaram, e ele ainda não perguntou o nome dela.

Mais um trecho de Ernesto Sábato

"Nos penosos dias que precederam o início das aulas, sofri uma de minhas maiores dores. Eu levara ao bosque uma paletinha de lata, que meu irmão comprara na loja de ferragens de nosso lugarejo. Tinha umas pastilhas de aquarela que para mim eram um tesouro, com as quais eu copiava as ilustrações dos calendários. Lembro-me de uma troica na neve de uma Rússia longínqua e misteriosa.
   Perguntei como chegar ao famoso bosque de La Plata e para lá rumei com as aquarelas, um frasco de água, um par de pincéis e um caderno de folhas brancas. Sentei na grama entre os enormes eucaliptos e comecei a pintar um daqueles troncos descascados, com seus cambiantes tons de verdes, ocres e marrons, imbricados de um modo que me comovia. Tudo era plácido naquela manhã e, pelo poder da beleza, eu esquecera minha melancolia. Súbito ocorreu um cataclismo: eu tinha menos de doze anos e estava sozinho, em uma cidade desconhecida, quando de repente apareceu um grupo de marmanjos, de uns quinze anos, que, rindo de mim, arrancaram-me a paleta, pisotearam as humildes pastilhas de aquarela, quebraram meus pincéis e atiraram longe o vidrinho com água; rindo, até que foram embora. Durante um tempo que me pareceu infinito, eu permaneci sentado na grama, enquanto minhas lágrimas caíam. Depois consegui me levantar e comecei a voltar lentamente para a pensão, mas me perdi e tive de perguntar várias vezes onde ficava minha rua.
   Quando por fim cheguei, entrei em meu quartinho e permaneci o dia inteiro na cama. Tiritava como quem tem febre, e talvez tivesse."

(Do livro de memórias Antes do fim, tradução de Sérgio Molina, publicado pela Companhias das Letras.)

Geometria

O amor é o caminho mais curto entre dois tontos.

Kama Sutra - CDLXV

Falar-lhe de um povo antigo, do século IV ou V a.C., de alguma Mesopotâmia, que, versado na arte da onfalomancia, tivesse também o dom de antever o futuro pela observação e pelo toque dos encaracolados pelos que enfeitam e guardam a entrada do mais precioso tesouro feminino. Interessá-la de tal forma que ela se disponha, como as mulheres daquele tempo, a deixar-se observar nua em horas diversas, sob o sol. Depois de alguns dias, dez pelo menos, quando ela já não fizer perguntas sobre os resultados, continuar a contemplar os fios e a tocá-los. Com a beleza diante dos olhos e das mãos, quem há de se ocupar com o futuro?

A planta

Tu me deste a tristeza
e me ensinaste como cuidá-la
como plantá-la
como regá-la

Regá-la tem sido
o mais difícil

Ela só aceita
minhas lágrimas
e apenas as que eu colho
de madrugada
naqueles momentos
em que implorar a Deus
e a ti minha amada
é como receber
dois ferimentos
da mesma punhalada.

Soneto do homem feliz

Senhora, bem poderias
Ao meu coração que pede
Dizer o que é que te impede
De lhe poupar agonias.

Se podes dar alegrias,
Senhora, eu imploro, cede
Um pouquinho e me concede
As que a ninguém mais darias.

Mas se a outro já destinaste
O que a mim sempre negaste,
O nome do homem me diz.

Me diz, eu quero saber
Se ao menos um pode haver
Que não faças infeliz.

Agora não mais

Por temor
por covardia
por pudor
por normas irracionais
por preceitos sociais
ele não fez o que devia

Calou o amor
que pedia
a carne que gemia
amordaçou
encarcerou o desejo
na masmorra da braguilha

E o desejo contrafeito
agora anda pela cela
força as grades
os botões
empenha-se todo
e tenta estourar os grilhões
nas mais indevidas ocasiões

num baile
de debutantes
numa solenidade
ao ouvir uma voz rascante
mesmo que o assunto
seja uma doença
com suas cento e
trinta e uma sequelas
ou uma missa de defunto.

Ufa

Quando fecharam a tampa sobre ele, sentiu toda a vantagem que agora tinha de não precisar mais respirar.

O que já fomos (peça em algumas linhas)

Protagonistas: Brad Pitt e Jennifer Aniston.
Ano: 2013.
Local: um apartamento, talvez em NY. Garrafas esparramadas pelo quarto. Sol do meio-dia.

Jennifer (espreguiçando-se) - Como viemos parar aqui?

Brad (bocejando) - E eu é que sei? Eu me lembro que estávamos na festa, eu te dizendo como era bom a gente se reencontrar. E...

Jennifer - É.

Brad - É. (Os dois estão nus. Ele a olha com reticências no olhar.)

Jennifer (cobrindo-se) - O que foi?

Brad - Nada.

Jennifer - A gente não escondia nada um do outro, lembra? Fala.

Brad - É. Naquele tempo eu era casado com uma mulher linda.

Jennifer (lançando um olhar depreciativo) - Eu lembro. Naquele tempo eu era casada com o Brad Pitt.

Birras

De quem diz alterações pontuais, de quem gosta de superar desafios, de quem promete não medir esforços, de quem se orgulha de ter aprendido na escola da vida e não dá o endereço.

O que nas mãos se lê

Suas mãos são
já um pergaminho

Nelas se lê
não seu destino
- o óbvio
caminho para o nada

Nelas se vê
que se um dia tocaram
jamais tocarão
a seda
o cetim
o veludo
- tudo que nada é
se só pelos olhos
for olhado
e não tocado
pelas mãos.

De "Aforismos sobre o amor", de Vatsyayana

"O amor da mulher que vê as marcas de unhas nas partes íntimas de seu corpo, mesmo que antigas e quase imperceptíveis, torna-se fresco. Se não houver marca de unhas como recordação do amor, então o amor enfraquece, tal como ocorre quando não há união por um longo tempo."

(Compilação de Richard F. Burton, tradução de Luciene Aquino, publicado pela L&PM.)

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Lenga-lenga

A filosofia tem sempre muitas palavras, mas nunca a definitiva.

Missão gorada

A comissão não sabe como dará a notícia ao rei, moribundo no hospital. A Morte não aceita suborno.

Uma página de Ernesto Sábato

"Estremeceu-me uma notícia que li esta manhã no jornal; recortei-a e guardei-a em uma das gavetas de meu arquivo, entre esses tantos retalhos que nestes anos têm-me ajudado a viver.
   Uma mulher, em um inverno rigoroso, vestindo apenas uma camiseta e uma calça, fugiu de um hospital psiquiátrico no desejo de procurar seu companheiro. Aproveitando uma distração do maquinista, roubou uma locomotiva e, fazendo-a funcionar sem dificuldade, começou sua odisseia. Ele havia trabalhado na ferrovia e a ensinara a conduzir trens e 'muitas outras coisas'.
   'Se vocês soubessem o que é o amor, me deixavam continuar', dizia ao policial que a deteve, e, enquanto a levavam para a delegacia, aos prantos desesperados, gritava: 'Você nunca fez nada por amor?'
   Quão mais humanos são esses gestos que os de tantos indivíduos que correm pela cidade toldados por seus projetos!
   Quis resgatar essa história dentre meus papéis porque, de certo modo, quando a razão nos leva à beira da psicose coletiva, atos como esse são o mais parecido com uma salvação."

(Do livro de memórias Antes do fim, tradução de Sérgio Molina, publicado pela Companhia das Letras.)

Soneto daquele que morre por descaso

Senhora querida minha,
Me tratas com tal descaso,
Que eu penso se por acaso
Sou peste ou erva daninha.

Será tão rude e maninha,
Tão digna de pouco-caso,
A mão que quando tem azo
A tua mão acarinha?

Senhora da minha vida,
Ao menos na despedida,
Ao menos por um momento,

Pensa com ternura em quem
Sempre a tua imagem tem
Tão viva no pensamento.

Pablo Neruda

Há escritores com os quais não damos liga, como se diz. Cada um de nós tem exemplos disso. Pablo Neruda é um desses, para mim. Tento gostar dele, pego de vez em quando um livro seu e é sempre aquilo: um estardalhaço, uma noite de fogos de artifício na praia, um desperdício de palavras, um abuso de imagens, uma poesia discursiva como um manifesto. Entendo muito pouco disso, vocês sabem, mas quatro ou cinco estrofes de Emily Dickinson valem, para mim, todo o Neruda. Vinícius de Moraes, nos poemas de amor, ganha de cinco e dá olé no final.

Engano

Não, asfódelos não é uma incitação fescenina em espanhol.

Soneto dos dois atributos do amor

Se um dia me fosse dado
Um bom exemplo escolher
Do que é viver e morrer,
Adivinho o resultado.

Penso que teria optado,
Sem esforço despender,
Pelo amor, por ele ser
Nos dois casos o indicado.

Por ele é que nós vivemos,
Por ele é que nós morremos,
Ele é a hora boa e a má.

Num dia aos beijos estamos
E no outro já definhamos
Porque já beijos não há.

"Balada da mercê", de François Villon

"A Cartuxos e a Celestinos,
A Mendicantes e a Devotas,
A paspalhos e a valdevinos,
A galantes e a cocotas
De jaquetas e estreitas cotas,
Aos transidos do amor cortês,
Impávidos, com fulvas botas,
Imploro a todos por mercê.

A moças que mostram tetinhas
Para atrair ricos janotas,
A rufiões com suas rinhas,
A saltimbancos com marmotas,
A histriões em cambalhotas,
Loucos e loucas, seis a seis,
Com cetros, bexigas marotas,
Imploro a todos por mercê.

Mas não a esses pérfidos cães
Que me fizeram duras crostas
Mastigar noites e manhãs.
Aos quais hoje nem mais se nota
E por quem já se peida e arrota.
Mas, sem voz, eu perdi a vez.
Afinal, as coisas bem postas,
Imploro a todos por mercê."

Rebentai-lhes, firmes, as costas,
Com porretes de bom jaez,
Chumbo nas pontas quais pelotas:
Imploro a todos por mercê.

(De Poesia, tradução de Sebastião Uchoa Leite, publicado pela Edusp.)

Abelhas (para Ivna Alba)

Nem sempre as abelhas fazem mel. Há momentos em que, reverentes diante de certas majestades, param e pensam se não poderiam fazer algo mais doce.

Letras

E se na hora H
Ele souber Q
Nunca houve nem A
Nenhum ponto G?

"Meu Papagaio", de Guimarães Rosa

"Toma a palavra, na gaiola alta,
Papagaio Real, meu Papagaio Louro,
sisudo e notável discursador!...
Muito bem!... Apoiado!...
Assim empoleirado,
de fraque verde com botões cor de ouro...

Não sabes, narigudo Papagaio,
o quanto admiro cada coisa em ti:
tua eloquência, teus passinhos tortos,
teu plastron rubro
e teu soberbo humor...

Mais uma vez, meu Papagaio,
quase humano,
meu confidente,
meu consolador!
Repete, discursando,
gravemente:

- 'Io t'amo!...'
- 'Je t'aime!...'
- 'I love you!...'
- 'Te amo!...'
- 'Te quiero!...'
- 'Ia vás liubliú!...'

Vai repetindo, amigo,
caridoso,
a cada instante, sem parar,
tudo o que a minha esquiva amada
teima em não me dizer..."

(Do livro Magma, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

As batalhas de amor

As batalhas de amor são barulhentas

Quem chega e não sabe o que são
pelo alarido imediatamente
pensa em palavras
como catástrofe
hecatombe
guerra entre planetas
conflagração

Há sempre o momento
em que ao mundo
não parece restar
senão encolher-se e aguardar
o portento da destruição

Mas depois de tudo
tudo se resume
a estilhaços
de um frasco de perfume
de origem falsa
e a um casal de vidro
que rodopiou demais na valsa
e se espatifou no chão

Três dias depois
uma semana
nem o olor ficou
do líquido que havia
postiço aroma
nem um caco esmaltado
do casal valsarino
embaixo da poltrona

Fala-se vagamente
da origem do conflito
um dito mal dito
um coração que se roubou
alguém que se magoou
embora ninguém lembre
tanto tempo passado
quem roubou nem
quem foi roubado.

Triste homônimo

O Richard Burton que merecia Elizabeth Taylor não foi o que a teve.

Eremita

O homem nasceu para viver só. Tudo que o atormenta - culpa, cobiça, inveja, ciúme - vem com seu primeiro contato com o semelhante.

Mobiliário

Agatha Christie inventava crimes como pretexto para pôr em cena candelabros de cristal, adagas de prata, móveis, alfaias, guarnições, faqueiros.

Carbono 14

Não fomos feitos por Deus, mas por um aprendiz desastrado.

Sonetilho boboca

Contra a lógica, a razão
E os meus anseios de paz,
Cometi dias atrás
Mais uma abominação.

Num momento de aflição
(Sabes o que a aflição faz),
Lembrando das horas más
Lancei-te uma maldição.

Queria assim consolar-me,
Quem sabe até vangloriar-me,
Recuperar a autoestima.

O plano não funcionou.
Minha alma me censurou
E xingou-me, ainda por cima.

Kama Sutra - CDLIV

Sempre que descansa a palma da mão naquela tenra relva que aos poucos se umedece, sente um fervor quase religioso. Não é bom com as palavras. Se tivesse intimidade com elas, gostaria de dizer uma porção daquelas frases longas que leu uma vez e que começavam todas com Ó vós. Falaram-lhe que era poesia, e ele tem a intuição, com a palma reverente como se tocasse um objeto sagrado, de que momentos como esses é que a fazem nascer no coração de um homem.

Anacronismo

Quando a mulher, na esquina, o convidou a subir para fazer um nenê, ele se reviu fazendo a pergunta que fizera com cinco anos, e compreendeu por que lhe tinham dado a resposta errada.

Cotação do dia

Não me deixaram entrar na festa, para se omitirem do trabalho de me porem para fora.

Trecho de "Aforismos do amor", de Vatsyayana

"Quando os amantes estão deitados na cama e abraçam-se tão fortemente que seus braços e coxas se entrelaçam, esfregando-se, isso é chamado de 'abraço como a mistura da semente do gergelim com o arroz'.

(Compilação de Richard F. Burton, tradução de Luciene Aquino, publicado pela L&PM.)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Kama Sutra - CDLXIII

Ontem, enquanto a possuía, disse-lhe que parecia estar com o mundo nos braços. Não era mentira, mas de certa forma se arrepende. O que dirá hoje, no segundo encontro?

Soneto da moeda com que o amor se paga

Senhora minha, querida,
Sei hoje, de coração,
Que se te dei atenção
Não foi a atenção devida.

Que atenção, e em que medida,
Seria retribuição
A quem me deu a razão
Pela qual eu vivo a vida?

Senhora amada, rainha,
Permite que aqui te diga
Que és toda a riqueza minha

E perdoa por ser vago
E pobre assim, minha amiga,
O modo com que te pago.

Um poema de Emily Dickinson

"Banir a mim de mim mesma,
Tivera eu esse dom!
Inexpugnável fosse a minha fortaleza,
Ante toda audácia.

Uma vez, porém, que eu mesma me assalto,
Como terei paz
A não ser sujeitando
A consciência?

E desde que somos monarcas um para o outro,
Como poderei alcançá-lo
A não ser abdicando
De mim mesma?"

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicado pela L&PM.)

Segunda-feira

É mais um dia que nos olha e nos diz: viva-me. Ele bem vê, ele bem sabe que todas as ambições nos deixaram, que os sonhos há muito se foram, que já descremos de todas as crenças e já não cremos no amor como nossa última salvação. No entanto, ele nos incita a vivê-lo, como se fosse uma mulher que durante cinquenta anos se tivesse dado ao marido e agora, mostrando-lhe a devastação do corpo, o faz lembrar-se de um antigo juramento. Havemos de viver mais este dia, ignorar-lhe as machucaduras e os sinais de sua irreversível decadência. Havemos de tornar nossos olhos ainda mais cegos e buscar uma resignação como aquela dos santos. Viveremos mais este dia, porque nossos passos já não são capazes de ir sequer até a esquina e porque as fugas exigem uma força de que não dispomos mais. Nós te viveremos, velha segunda-feira, tão estropiada quanto nós. E, porque és surda também, te maldizemos por nos ter acordado e nos ter feito ir até a janela.

Do coração na arte

Acredito na necessidade de contenção na arte: a parte técnica da composição na pintura, da construção da trama no romance. Mas essa técnica há de ficar por conta da mão que pinta ou escreve. O dever que tem o coração do artista é tentar todo o tempo desatinar essa mão, fazê-la esquecer todos os preceitos que a disciplinaram. Por isso é que nos impressionam tão vivamente as obras dos chamados loucos. Neles é tudo coração. Que inveja temos diante delas. Que culpa.

Surpresas do amor

O amor nos arma surpresas. Como aquela velha mal-encarada para a qual uma tarde sorrimos porque traz no colo três gatinhos que acabaram de nascer. No dia seguinte, sorrimos para ela de novo, embora esteja sem os gatos, que, ainda não sabemos, mas não chegaremos a ver nunca mais. Ela os afogou de manhã na banheira, aproveitando a água aquecida pelo sol, e afogou também a gata, para que eles não fossem sem a mãe e também para que jamais precise encher a banheira para tão desagradável tarefa.

Molecagem

Tem alergia a flores. Teme que, quando chegar o dia, possa repentinamente espirrar e pôr para correr no velório os parentes, até aquele primo cuja prótese custou tanto e foi tão mal feita por aquela afamada empresa de Boston. Julgarão ser um trote e dirão que é bem coisa dele.

O soneto

Concentrou-se, reuniu toda sua emoção, suas lágrimas e, uma hora depois, surgiu no papel um soneto. Ele o analisou linha por linha. Perfeito, obra de pura ourivesaria. Nem parecia dele. Como, depois de garimpar tantos anos em vão, lhe viera aquela pedra preciosa? Verdade que o primeiro quarteto já lhe soava agora como algo já ouvido, que o segundo se assemelhava a um mero eco do primeiro, que o terceto inicial preparava mal a entrada do terceto derradeiro. E o verso final, que lhe parecera uma autêntica chave de ouro, era agora, inequivocamente, uma chave de outro. Assim como a mulher que o inspirara.

Kama Sutra - CDLXII

Ainda que odeie as mesóclises, beijar-lhe-ia os lábios, lamber-lhe-ia o céu da boca, para lustrar as estrelas, morder-lhe-ia a atrevida ponta dos mamilos e fá-la-ia dizer-lhe todos os louvores que merecesse por esses e por outros gozos que lhe proporcionasse.

O senhor das musas

Se pretendes ser um astro,
Se essa é mesmo a tua meta,
Convém saberes que um poeta
Quando vira astro é um poetastro.

O lenço

Com os outros ficará o dever
de levar flores e conforto

Quando chegar a nossa vez
não precisaremos exibir
lágrimas nem dor

Estaremos até proibidos
por uma contingência da peça
pela vontade do autor
que nos deu o papel de morto

Por exigência do figurino talvez
nos coloquem no bolso um lenço
mas ninguém se atreverá a resgatá-lo
nem nós ousaremos ofertá-lo

Que cada um leve o seu
e chore compenetradamente
enquanto pensa astutamente
antes ele do que eu.

Dois parágrafos de Doris Lessing

"Em 1947 George tornou a escrever a Myra, dizendo que agora, uma vez terminada a guerra, ela devia voltar para se casarem. Myra escreveu-lhe de volta, da Austrália, para onde fora com os dois filhos em 1943, porque lá viviam parentes seus, dizendo que achava que se tinham afastado um do outro; não sentia mais certeza de ainda querer casar-se com George. Mas ele não se entregou ao desânimo. Mandou-lhe a passagem por telegrama e pediu-lhe que viesse vê-lo. Ela veio e permaneceu duas semanas, não podendo deixar as crianças por mais tempo. Disse-lhe que gostava da Austrália; gostava do clima; desabituara-se do clima inglês; achava que provavelmente a Inglaterra era um país exaurido; e já se habituara a viver sem Londres. E, presumivelmente, a viver sem George Talbot.
   Para George, foram duas semanas muito sofridas. E acreditava que para Myra também tivessem sido penosas. Conheciam-se desde 1938, tinham vivido juntos cinco anos e, durante quatro anos,  trocado cartas de amantes separados pelo destino. Myra era certamente o amor de sua vida. E, até então, ele acreditara ser o amor da vida dela. Myra, mulher atraente, que o sol e as praias da Austrália tinham tornado bela, acenou-lhe um adeus no aeroporto, com os olhos cheios de lágrimas."

(Do conto "O hábito de amar", do livro O quarto 19, tradução de Tati Moraes, publicado pela Record.)

domingo, 17 de novembro de 2013

Se...

... o amor morreu, que sejamos dignos ao nos despedir dele. Nada de pompas, estas se dispensam. Uma coisa simples, um adeus, um beijo no rosto, um tchauzinho dado de longe, para evitar recaída. Jamais deixá-lo rondar por aí, como um fantasma, como um mendigo, justamente ele que deu tudo por nós. Nós o matamos juntos, cabe-nos dar-lhe uma sepultura digna. Escolher o lugar que ele mais amou, dizer-lhe meia dúzia de palavras carinhosas, e deixá-lo como se deixa um gato que nos amou, na sua pequena casa, com sua tigelinha, seu nome, talvez com a descrição dos carinhos de que mais gostava e não soubemos dar-lhe. Que dois donos melhores o acolham, para não sermos assombrados mais à noite, por seus miados e suas garras arranhando o gatil que covardemente fechamos.

Kama Sutra - CDLXI

Duelam as línguas. Atacam, recuam, avançam de novo, retraem-se e de novo avançam e recuam, e outra vez, outra vez. É o prelúdio, só. O corpo dele e o corpo dela esperam o instante em que um ímpeto comum os juntará. Ali, no ponto em que a junção se completará, há urgência e exasperação. Mas é preciso esperar um pouco ainda, porque as línguas vão tornando sério o brinquedo que as entretém. Tocam-se, investigam-se, provam-se, desafiam-se. Seria já o momento de parar. O prólogo não pode ser epílogo. Mas já não há mais o que as segure nem discipline. Elas tudo subverteram, e é por elas que a junção não se consuma, embora os corpos em convulsão agora cumpram, com perfeição, o ritual do gozo completo.

Soneto das mentiras que pelo amor devem ser ditas

Quando estiveres já morto,
Faltando só enterrar-te,
Talvez do amor recordar-te
Te possa trazer conforto.

De volta então o trarás
Como ele foi no começo,
Quando era só afeto e apreço
E não havia horas más.

Mas quando o instante chegar
De as horas tristes lembrar,
Não te recordes de nada.

Se mentir preciso for,
Que mintas, para que o amor
Mantenha a imagem sagrada.

Dois parágrafos de Elizabeth Bishop

"Na poesia, as palavras são o mais importante. Toda a concentração das ideias está nela. O que permanece é o poema, e não aquilo que o motivou. Uma mulher não se deveria deixar emocionar pelo poema que alguém fizesse para ela: a celebração do poema está sempre muito mais envolvida na maneira pela qual ele faz o poema do que na mulher que o inspirou, como pessoa."

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"Escrever poesia é um way of life. Não se trata de prestar testemunho, mas de vivenciar. Não é a maneira pela qual se interpreta o mundo, mas o próprio processo de senti-lo. Quando você se põe em marcha, você evidentemente descobre coisas, mas isso é apenas parte do processo. Por isso a poesia pode, eventualmente, transmitir alguma experiência aos leitores, mas está longe de ser sua finalidade. Por isso também, a poesia não pode ter influência sobre o destino de um povo. Apesar de toda boa poesia refletir sempre uma certa atitude diante da história contemporânea, faltam-lhe elementos para que ela desempenhe um papel de propaganda."

((De uma entrevista a Regina Colônia em 1970, publicada pelo Jornal do Brasil, reproduzida no livro Conversas com Elizabeth Bishop, publicado pela Autêntica.)

Cantilena

Tudo é esmorecer, tudo é definhar. Toda a literatura nasceu para isso. Para cantar os amores enforcados, os sonhos destruídos, os afetos gorados. Se tivéssemos nascido para a alegria, nos bastariam alguns monossílabos. A tristeza quer se ver explicada. A tristeza pede desculpas por existir, precisa de um discurso para isso. A lógica e a filosofia têm se prestado a esse papel, desde o início dos tempos: dar um sentido à tristeza. A ode é uma aberração: a alegria, quando cantada, é a mais terrível de todas as crueldades. Fechamos as janelas, os ouvidos e, mesmo assim, entram e violentam nossa alma os ughs de júbilo dos homens que esmagam uvas nas tetas das mulheres e deixam escorrer o sumo pelo seu corpo e o bebem como o leão bebe o sangue da presa. O mundo não foi feito para os delicados. Para esses, o desprezo, a cusparada no rosto, a vergonha. Querem cantar elegias? Talvez os pássaros os aceitem, ou algum animal ainda mais idiota. Vão ver se estamos ali adiante e nos deixem fornicar à vontade, gozar por todas os furos e buracos e fendas e grutas amém.