quinta-feira, 20 de maio de 2010
Pequenas alegrias urbanas (130) -- Amor
No almoço do seu octogésimo aniversário, rodeado de filhos, netos e bisnetos, já meio surdo e quase cego, o homem comia seu prato predileto, arroz com lentilha, quando sua mulher começou a recordar como sofrera porque ele durante muito tempo havia sido assediado, por sua notável beleza, e tinha retribuído em pelo menos meia dúzia de casos. A voz da mulher, que soava ainda mais queixosa pelo cansaço da idade, ia buscando no passado mulheres que, perseguindo o marido dela, a haviam atormentado em diversas fases da vida. "A Laura, a Mirtes, a Joice, a Célia, a Nora", ela rememorava e, a cada nome pronunciado com um rancor ainda vivo, o velho ia dizendo, entre os risinhos espantados e maliciosos da família: "Boa, boa, boa, boa, boa." No momento em que um dos netos, já um tanto escandalizado com aquilo, ia perguntar como ele, aos oitenta anos, podia se conservar assim cínico, o velho engoliu mais um bocado de sua comida favorita e comentou, fazendo voar sobre a mesa grãos de arroz: "Boa, boa, muito boa esta lentilha. Foi você quem fez, Leonor?"
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