domingo, 9 de maio de 2010
Pequenas alegrias urbanas (93) -- O outro
Do quinto andar, na sacada do apartamento, o homem olhava melancolicamente para baixo. Eram três horas, mas o exagero de sol na rua e a algazarra das crianças no playground, que subia em ondas cada vez mais fortes, eram um insulto à sua tristeza. Gostaria de morrer, gostaria muito, mas não o seduzia saltar para o espaço, como havia imaginado duas horas antes, ao se debruçar no parapeito. Não lhe ocorria nenhum outro meio. Não tinha revólver, nem saberia usá-lo. Arrepiava-o pensar em cortar os pulsos. O sangue lhe daria engulhos até depois de morto. O razoável talvez fosse uma dose estúpida de soníferos. Ele tinha um vidro recentemente comprado, que estava pela metade, e mais dois antigos, guardados desde o tempo de uma primeira desilusão séria. Mas estes estavam com a validade vencida e ele não queria ser conhecido como um amante inábil que acabara sobrevivendo à custa de lavagens estomacais. Fazia vinte minutos que vinha observando um casal na porta do prédio em frente. Parecia tudo normal, um enredo comum de dois apaixonados, mas repentinamente a mulher pôs-se a gesticular com fúria e entrou sozinha no prédio. Desnorteado, o rapaz ficou olhando para cima, talvez com a esperança de ver surgir em um dos apartamentos a amada. Do quinto andar, o homem notou que o rapaz chorava. No início sentiu pena, mas logo em seguida sorriu e já não se sentia tão desgraçado ao ir para a sala e ligar a tevê. Se alguém tivesse de se matar por amor, que não fosse ele, naquele domingo.
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