quinta-feira, 27 de maio de 2010
Pequenas alegrias urbanas (154) -- A mosca
Toda noite, quando ia dormir, fazia um exercício que considerava básico para se comportar bem no seu próprio velório. Deitava-se, fechava os olhos e buscava a imobilidade inalterável dos defuntos. Nas primeiras vezes, tentou não pensar, porque lhe pareceu adequado para um morto, mas depois descobriu ser mais proveitoso justamente o contrário: pensar que era um defunto e agir - na verdade, omitir-se - como se já fosse um. Passou a conseguir espantosas e promissoras imobilidades de cinco minutos, sem mexer sequer os cílios e até sem sentir que respirava. A prova mais difícil foi supor que aquela investigativa mosca que sempre testa a legitimidade dos defuntos o testava também. Passou com louvor por esse suplício uma, duas, três noites. Na quarta, quando a imaginou pousada no nariz, ele deu um formidável espirro, que o humilhou profundamente, mas ao mesmo tempo o levou a tomar alegremente a resolução de só voltar àquele cansativo exercício dali a um mês, quando - até pela simples lógica da matemática - estaria mais próximo e portanto mais preparado para lidar com os assuntos da morte.
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