terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Kama Sutra - DXXXVI

Certas noites, a evocação mais demorada de um nome ou de uma imagem faz com que fervilhe em seu corpo uma inquietação salina e uma insinuação de mormaço no ar. Quando ele não está disposto a ceder, mantém a mão no bolso, encarcerada, e pensa em prados, em nuvens, em montanhas distantes. Mas, se também na língua há uma rememoração de sal, ele sucumbe e é posto novamente diante do inferno de que lhe falaram na infância. E a mão do Diabo o leva outra vez ao paraíso.

+ ou -

As coisas todas
importantes ou banais
são todas mais ou menos
somente coisas de somenos.

Dos prêmios

Alguns sonetos podem ter rendido aos autores o desfrute do corpo que eles queriam ao falar de olhos estelares e cabelos solares. Esses são os prêmios que verdadeiramente contam, embora não se possa encaixá-los numa moldura e exibi-los, como as menções honrosas.

Do tolo e do esperto

Se da vida tira o esperto
O que convém e apetece,
Ao tolo cabe decerto
Apenas o que merece.

De Michel Foucault sobre a loucura

"O movimento da paixão que se desenrola até romper-se e voltar-se contra si mesma, o aparecimento da imagem e as agitações do corpo que eram concomitâncias visíveis a ela, tudo isso, no exato momento em que tentávamos descrevê-lo, já estava secretamente animado por essa linguagem. Se o determinismo da paixão se superou e se desenvolveu na fantasia da imagem, se a imagem, em troca, acarretou todo um mundo das crenças e dos desejos, é porque a linguagem delirante já estava presente - discurso que liberava a paixão de todos os seus limites, aderindo com todo o peso constrangedor de sua afirmação à imagem que se libertava."

(De História da loucura, tradução de José Teixeira Coelho Neto, publicado pela Perspectiva.)

Acolherei 2014...

... como acolhi todos os seus predecessores. Tenho já certa experiência nisso. Os anos chegam sempre saudáveis, como se o sol e as manhãs fossem algo que tivessem trazido. Bobocas, acreditam na esperança que pomos neles, e se dão inteiros. Nunca é suficiente. Já em julho, acontecerá com este 2014 o de sempre: já não o aturaremos e começaremos a suspirar por 2015 - ah, 2015... Quantos anos se foram, com tantas esperanças malogradas. Eu gostaria de suspirar por 2014 como suspirei por 1958 ou 1959. Há nas coisas humanas tanto cansaço, tanto desalento. Que vocês possam suspirar por 2014 com o otimismo que já tive.

O homem

O homem inventou o amor e nunca soube dar conta dele.

O amor será...

... sempre o norte que não soubemos localizar, a imagem que jamais soubemos captar nem reproduzir. O amor nunca obedeceu aos padrões da vida, sempre caminhou por conta própria e riu de nossos esforços para mudá-lo. O amor é aquela preciosidade que nos será sempre negada, aquele tesouro que se esconde embaixo de uma das mil novecentas e trinta e oito árvores de um parque talvez em Nairóbi ou em Pequim. Se um dia subjugássemos o amor, o engaiolaríamos, como se fosse o mais raro de todos os felinos. E o obrigaríamos a dar reverentemente a pata aos visitantes. O amor é a prova cabalíssima de que nós, homens, não podemos tudo. O amor não submetido é a medida de nossa pequenez.

Nos arquivos,

nas gavetas, na alma, os sonetos com que cantamos o amor se debatem ainda. Acreditaram no que diziam, acreditam ainda, e se portam como pássaros loucos. Abrimos os arquivos, as gavetas e a alma com mãos enluvadas. A bicada de um pássaro enlouquecido pelo amor transmite a mais fatal de todas as pestes. Eles nos olham com estupefação. Se nós os abandonamos, com quem mais contarão?

O amor será sempre...

... em nossa memória aquele momento único em que era necessário algo mais do que a experiência banal do cotidiano, em que se precisava dar um passo. Parece fácil agora, rememorando a história, dar o passo. Mas ele não se deu, e era o único que realmente importava. Todos os passos que demos desde aquele longínquo instante nos levam para mais longe dele. Se nos acenasse agora, não o veríamos. Estamos de costas para aquele momento, caminhando cada vez com mais pressa para o tempo em que abençoadamente nos olvidaremos de tudo.

Da felicidade

Como são felizes aqueles que desde o início põem as coisas como devem ser postas. Aqueles que já no primeiro dia têm a coragem de dizer que o amor é só uma dessas tantas balelas sentimentais. Aqueles que abrem o jogo de cara e dizem conhecer um motel muito bom e discreto na Marginal. Aqueles que sabem jogar e não esperam de um corpo senão o honesto suor gasto em meia hora de sacanagem desatada. Aqueles que têm a secura exata para perguntar, na saída: a gente se vê de novo? Aqueles que não deixam para trás sonetos nem lágrimas.

Em 2014 nós...

... faremos a dieta do amor. Definharemos dia a dia, lembrando como ele era, como ele foi, como vivemos para ele e como fomos mais um dos que ele iludiu com sua aparência. Releremos o que para ele escrevemos com a alma, e sentiremos, afinal, como nossa alma nos enganou. Nossa alma não é daquelas que nasceram para celebrar o amor, embora tenhamos acreditado tanto tempo em seus poderes. Nem sempre Fernando Pessoa está disposto a baixar em um velhote da Vila Santo Estéfano.

Incongruência

Nunca entendi o tom de contrariedade que se costuma dar à expressão é foda.

Escambo

O homem é aquele ser sempre disposto, venturosa ou desventuradamente, a trocar sua alma pelas promessas de uma bunda.

Kama Sutra - DXXXV

Quando ele e ela se abraçam, nus, o quarto é tomado por uma irritação que logo chega à exasperação. É como inimigos que se tratam nos vinte minutos em que a cama chega a mudar de lugar, com as estocadas dele e as respostas dela, e o criado-mudo cai de pernas para o ar. Não se falam depois, por um bom tempo. Se dissessem algo, seriam certamente palavras que proclamassem a vitória de um, ou de outro. A atmosfera animal começa a se romper só quando ela reergue o criado-mudo, apanha um cigarro, o acende, dá meia dúzia de tragadas fundas e o coloca nos lábios dele, em cujo rosto os traços de humanidade vão se recompondo, assim como os dela.

Trecho de "Explorações", de Rula Wicknerd

Na época dos jogos, os guerreiros jovens eram submetidos a uma prova que visava a aferir-lhes a aptidão sexual. Punham-se à disposição deles as mulheres que escolhessem, uma para cada um, e dentro de um círculo formado por todos os habitantes da aldeia eles porfiavam por se superar em número de cópulas. Os dois guerreiros que se mostrassem menos fortes eram atirados com alarido ao rio, de mãos atadas, para repasto dos jacarés. As duas jovens que haviam escolhido nunca mais participavam dos jogos e eram destinadas a uniões com viúvos e índios já entrados em anos, de cuja descendência não se podia esperar nenhum acréscimo à bravura da tribo, comumente empenhada em disputas com os vizinhos.

Vida própria

Há bundas que independem completamente dos seus rostos. Envelhecem muito mais lentamente que eles e, acumpliciadas com o tecido, especialmente o das calças jeans, assumem formas que sempre podem ser chamadas de deliciosas.

Compromisso

Todo amor começa a morrer no instante em que é declarado e assume o compromisso da perfeição.

Kama Sutra - DXXXIV

Sozinho, às vezes se deita sobre a própria mão e espera que os dedos tenham aprendido algo com os tantos que já o tocaram.

Diaféria

Em cada palavra de Lourenço Diaféria se ouvia o sotaque do Brás.

Soneto do amor fictício

Há quem nos minta somente
Pelo prazer de iludir,
Pelo prazer de mentir,
Desinteressadamente.

Mentir é, para essa gente,
Uma forma de fugir
A esse tédio de existir
Que nos mata lentamente.

Mentem com tal despudor,
Sobre seu fictício amor,
Que nos fazem nele crer

De modo tão passional
Que por não senti-lo igual
Aspiramos a morrer.

Um trecho de Jeter Neves

"Ela me olhou, quem sabe com sinceridade, e disse: 'Você deve estar sofrendo muito.' 'Não, não estou', menti, num tom que deve ter soado rude, e nele me traí. Ela me lia, eu sentia que ela me lia. Por um instante, pareceu refletir sobre o que ia dizer. 'Está sim', disse ela, 'é que você tem sofrido aos poucos, e quando a gente sofre aos poucos acaba acostumando, achando que é natural.' A frase podia não ser verdadeira, nem boa, mas tinha espírito, tinha brilho, sei lá, tinha aquilo que ela sabia imprimir em tudo, mesmo nas coisas banais. Então eu não disse mais nada porque podia ser que ela tivesse razão. Então ela deu um passo à frente e ficou muito perto de mim, tão perto que senti pela primeira vez seu hálito de tutti frutti, ainda que ela não estivesse mascando chiclete. Foi um movimento tão rápido, e ao mesmo tempo tão delicado, que não tive tempo de evitar: ela me abraçou. Eu não contava com isso, era um gesto que revelava uma falta de pudor e de continência que eu não tinha. Em seu lugar, não teria feito aquilo. Nossa mãe nunca teria feito aquilo. Em nossa casa, ninguém teria feito aquilo. Ela não apenas me abraçou, ela fez isso de uma maneira inequívoca, a sensação era de que me envolvia com todo o corpo, de um modo que os místicos devem chamar de comunhão, ou qualquer coisa assim. E eu comecei a chorar. Chorei como quem tem sido avaro. Chorei como quem tem ferido passarinhos. Chorei como quem tem enterrado cadáveres no porão. Do abraço de pêsames ficou a impressão definitiva do seu corpo..."

(Do romance Vila Vermelho, publicado pela Editora Record.)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

E quem, agora?

O império ruiu enquanto quem podia salvá-lo ia socorrer órfãos pelo mundo. E quem socorrerá agora o império e seus órfãos?

Até a última gota

Como qualquer obsessão, o sexo será muito mais facilmente vencido pelo esgotamento que pela reeducação.

2014

Daqui a dois dias estaremos novamente fazendo promessas. Novo ano, novos votos. Perderemos oito quilos, ganharemos músculos, seremos pacientes com os amigos, leremos enfim Os sertões. Teremos planos para tudo. Também para o amor. Como todos os anos, já há uns vinte ou mais, esperaremos que 2014 seja melhor que 2013 e bem superior a 2012 e 2011. Depois que o amor se tornou renovável, como os carros e os seguros, já não aceitamos qualquer um. A vida é curta, e o que nos provoca prazer há de ser, logo à primeira falha, descartado, ainda que conheça tudo sobre Zelda e Scott e declame lindamente sonetos de Camões. O amor deve ser facilmente manejável, na forma de dildo ou boneca, funcionar em 110 e 220 volts e ser acomodado sem impropérios em qualquer mala. Para não se criar em relação a algum deles uma exagerada afeição, recomenda-se que, assim como se faz com Lúcios e Fernandos, com Dalvas e Mariluces, nenhum conste de nossa agenda nem frequente nosso armário por mais de seis meses.

Do que se deve exigir do sexo

Ao amor podem conceder-se isenções. Do sexo, porém, há de se exigir sempre a mais completa e desavergonhada loucura. Que, cinco minutos depois de nos submetermos a ele, o espelho ainda estranhe nosso olhar desvairado e nossos dentes aguçados pela luxúria.

Um por cento

Há sempre uma ponta de misticismo no sexo. É aquela parte aberta à fantasia e à mistificação; mais a esta que àquela.

"Sentimentos de primavera - Enviado a Zi'an" (da poeta chinesa Yu Xuanji)

"Íngreme a estrada; à montanha, crispam-se escarpas;
Áspera a via; sem ti, mais árduo é o caminho,
Vejo o degelo, chega-me o som de tuas rimas,
longe. À dos picos, tua imagem de jade.

Vinho ordinário, pobres canções não te apresem
Nem, com fúteis parceiros, pernoites ao jogo.
Forjado em pinus, não pedra, dure este voto:
aves, voaremos em par; o encontro se apresse

Mesmo se, ao pleno inverno, este dia atravesse
torno à mais cheia lua, de novo me envolvas.
Parto, e tudo o que tenho a te dar são despojos:
este poema, lágrimas, luz de viés."

(Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao.)

Kama Sutra - DXXXIII

À noite, como se sua sede fosse a de Satanás, a língua busca sempre água salgada.

O teste

Parece um menino quando se põe a dizer nomes de mulher e, a cada um deles, espera a reação da braguilha.

Kama Sutra - DXXXII

Guardar toda a audácia para o momento supremo em que as mãos, depois de subirem as duas encostas, gritarem mudamente o êxtase de se equilibrar sobre o desfiladeiro.

Kama Sutra - DXXXI

Combater pelo amor até o último alento, e ter para os espasmos finais a maciez de um par de nádegas como travesseiro.

Procon

Se o amor não te enlouquece, podes crer que se trata de uma imitação.

Minha Pasárgada

Minha Pasárgada é Kuala Lumpur.

Kuala Lumpur

Cada dia acredito mais que, se um dia uma palavra mágica me livrar da dor e me reconciliar com os sonhos estouvados da juventude, essa palavra será Kuala Lumpur. Não saber o que ela significa me dá mil maneiras de traduzi-la, de senti-la. Kuala Lumpur é um desses misticismos que só a alma entende.

Kama Sutra - DXXX

Não nos envergonhemos de celebrar a bunda. Se não tivermos talento para a ode, que ao menos em uma quadrinha possamos registrar sua graça e a forma sempre marota e juvenil com que nos incita a pousar nela a mão afogueada.

Os poetas deveriam...

... ter nas mãos flores, e não dedos, para que, quando fossem recolher os pãezinhos da caridade, elas os denunciassem e, antes que eles pudessem espalhar suas palavras nocivas, o alarme convocasse a população para o ritual das pedras e da fogueira punitiva.

"No Templo do Cimo", de Li Bai

"a noite passar no Templo do Cimo
elevar a mão carícia de estrelas
mas baixar a voz não fazer ruído
temer perturbar os seres celestes."

(Tradução de Ricardo Portugal e Tan Xiao.)

No meio de tantos feriados,

talvez a segunda-feira se julgue um deles e se dê ares de domingo. Quem sabe consiga iludir-nos, dóceis que somos, e tolos. Pode ser que a lembrança do amor nos surja numa das ruas pelas quais caminharemos com a intenção de esquecê-lo e naturalmente a aceitaremos em nosso coração, ainda que seja só por uma centena de passos. Suspiraremos comedidamente. Aprendemos já a lidar com essas coisas. É o que nos dizemos diariamente, como técnica de persuasão.

Creio que foi...

... o poeta Jamil Almansur Haddad quem fez o verso "bundas que parecem rosas". Rosas que parecem bundas seria também um verso belo, creio.

Esfregaram...

... o focinho do amor na bacia cheia de água com sabão, para que nunca mais use palavras ternas nos momentos em que se exigir dele a crua linguagem do sexo.

O amor está

O amor está em todas as ruas e toca todas as campainhas. Se o atendem, usa seus truques, suas reverências, sua gentileza. Dificilmente dispõe de mais de um minuto para mostrar seu número, tão antigo. Batem-lhe a porta no rosto sem distinguir nele as leves marcas da lua e das estrelas. Quando ocorre a ilógica abertura da porta, não é a continuação do soneto que desejam ouvir, nem a chave de ouro. Atiram-no sobre a cama e dão-lhe migalhas de sexo.

As bundas

As bundas têm sido a alavanca de que Galileu falava. Nada movimenta mais o mundo que elas. Que regalo vê-las indicando o rumo, acomodando a cada passo a carne buliçosa, ora a leste, ora a oeste. Onde estiverem as bundas, estará o horizonte. No mais, tudo são tolas e errôneas indicações.

Nosso amor

Nosso amor morrerá à míngua. Lhe negaremos o pão e a água, até que exale o último suspiro. E que desta vez tenhamos paciência para esperar. Que o último seja mesmo o derradeiro. E que jamais, numa dessas noites nas quais deixamos aberta a janela, venha enterrar os dentes em nossa garganta agradecida.

Ser cronista

Ser cronista é acreditar que uma sanfona tenha alguma semelhança com um violino.

Kama Sutra - DXXIX

O sexo despede-se dolorosamente do corpo. Até o último instante, ainda tenta truques. Será que não?, quem sabe assim, e se? Admite a derrota com relutância e, para vingar-se, ressurge em sonhos nos quais mulheres magnificamente nuas entornam vinho no corpo e com libidinosos estalos de língua incitam à fruição e ao gozo.

Da labuta e dos seus frutos

Amanhã, toda a labuta e seus frutos serão dissipados pelos herdeiros. Ainda bem que estes, nos anos de ócio, aprenderam a cantar. Os pais e avós não saberiam entoar tão belamente a elegia do trabalho transformado em várias espécies de pó.

Soneto do amor indiferente

Quando é mais solicitado,
Com mais ímpeto e fervor,
Menos se oferece o amor
E mais se faz de rogado.

Tem esse hábito arraigado
E como um legislador
Dá ao hábito o valor
De projeto promulgado.

A quem mais coisas lhe pede,
Nada, nunca, ele concede,
Nem por mal e nem por bem.

Quem mais dele necessita
É quem o amor mais evita,
E, se algo dá, é desdém.

Kama Sutra - DXXVIII

A esquerda, talvez por ser a do coração e engajada no romantismo, é mais tímida no explorar e se aprofundar. Quando lhe cabe a vez, parece nunca estar pronta e treme como uma principiante.

Cotação do dia

A convicção de que não se sustenta mais a mentira de que o tempo perdido com o amor é sempre um tempo bem gasto.

Guerras

No início, há sempre uma bunda. Depois é que surgem os soldados. No final, se o número de mortos configurar uma epopeia, encomenda-se sua narração a um poeta. E, como talvez os pósteros venham a ser pudicos, recomenda-se que ele substitua a bunda por um belo par de olhos e um sorriso celestial.

Kama Sutra - DXXVII

Ainda às vezes o sexo, estropiado lobo, se põe a uivar como na juventude e enche as noites de suor e de insônia.

Um trecho de Jeter Neves

Acho que existe uma espécie de geopolítica amorosa, como existe a geopolítica das nações, por isso somos melhores em jogos de dominação do que em jogos de amor. O que chamam vulgarmente de amor nada mais é do que um jogo de dominação: atrair o outro para a sua área de influência. Neste momento, são sete bilhões de almas, em escala planetária, empenhadas no mesmo jogo..."

(Do romance Vila Vermelho, publicado pela Editora Record.)

domingo, 29 de dezembro de 2013

Expediente

Há capitães que ao menor indício de procela entregam o comando do navio ao primeiro que o aceitar. Mas, se as nuvens sombrias sumirem no horizonte e as ondas se fizerem outra vez dóceis, eles terão prazer em retomar, para os passageiros, a descrição de todas as portentosas e inigualáveis belezas da viagem marítima.

Kama Sutra - DXXVI

Logo no primeiro encontro ele costuma ser bem claro: fala da estima que tem por seios, coxas e nádegas. Antes falava de olhos, que comparava com estrelas, e de cabelos, nos quais via a réplica ideal do ouro e do sol. Aprendeu com muito sofrimento que o amor é uma baboseira e que são malvistos os que o celebram.

Primeiro

Salva-te primeiro, e aos teus, antes de te meteres a salvar o mundo.

Texto de Katherine Mansfield escrito em 14 de outubro de 1922 (*)

"Meu espírito está quase morto. Minha fonte de vida está tão esgotada que por pouco não está seca. Quase toda a melhoria da minha saúde é só aparência - representação. Até onde vai ela? Eu consigo andar? Apenas me arrastar. Posso fazer alguma coisa com a mão ou com o corpo? Nada, em absoluto. Sou uma inválida, desalentadoramente inútil. O que é a minha vida? É a existência de um parasita. Passaram-se, já, cinco anos - e estou mais limitada que nunca."

(*) KM, nesse dia, completava trinta e quatro anos. Viria a morrer em 9 de janeiro de 1923. Trecho extraído de Diário & cartas, traduzido por Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

Soneto do amor e do sexo

O amor é muito covarde.
Quer sempre esquentar o jogo,
Porém assim que arde o fogo
Finge não notar que ele arde.

E depois que o incêndio pega
E tudo põe-se a queimar
O amor insiste em negar
E, contra a evidência, nega.

O sexo é mais consequente.
Tomado pela paixão,
Queima desvairadamente.

Mas ao contrário do amor
Ele não recua, não
Rejeita a chama e o fulgor.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é um desses argumentos claros e irrespondíveis.

Sobre a poesia

A preocupação dos poetas de fugir dos metros e dos ritmos tradicionais talvez os tenha levado mais longe do que o necessário. Os poemas clássicos ainda são usados predominantemente na formação dos jovens leitores, e estes, quando postos diante de poemas recentes, sentem estranheza. O salto ainda é brusco demais. Os poetas modernos ainda não ocupam posição de destaque nas antologias escolares e, embora a ruptura com a poética antiga já tenha completado cem anos, parece estar dando seus primeiros passos. A morte de Carlos Drummond de Andrade, o mais bem-sucedido poeta da transição, concorreu para erguer um hiato no caminho.

Kama Sutra - DXXV

Admira nádegas, sua beleza, as várias formas que são capazes de tomar. Aprecia sobretudo a sinceridade que elas têm, a coragem de se assumirem logo à primeira vista como objetos sexuais. É o que diz a imponência de sua carne petulante. Tão diferentes são elas da sua vizinha da frente, que só se revela no escuro, depois de insistentemente requisitada.

Das astúcias do sexo

Uma das astúcias do sexo, a mais comum, é fazer-se passar pelo amor. Ele beija mãos com reverência, fala de alma e de rosas, gorjeia e rouxinoleia. Parece tão fraco sempre, frágil, tão frágil e místico. Qualquer um confiaria sua ovelha mais dócil a ele, para uma excursão de três dias pelos montes. Deixaria também ir com ele a filha de doze anos, que na semana passada fez a primeira comunhão. Quem deixaria, deixa. E certa manhã lá se vão a ovelha, a menina e o sexo. Este, logo na primeira noite, se deita entre as duas, para que não sintam medo dos ruídos da mata, e pergunta à ovelha e à menina se querem brincar de ménage à trois. A ovelha não responde, e seu silêncio é tomado como assentimento. A menina, ingênua e curiosa como todas, diz que sim, que gostaria, e quer saber como se brinca. Como é mesmo o nome? O sexo repete, com sua voz amorosa. É inglês?, ela indaga. Você é esperta, diz o sexo, já com uma das mãos nela e a outra na ovelha.

Menina diante do espelho

Espelho meu
quem te deu
esse rosto

Onde está
espelho mau
quem era eu?

Kama Sutra - DXXIV

Aqueles momentos em que o amor, espicaçado pelo sexo, grita para dentro do ouvido amado os diminutivos e os aumentativos da paixão, enquanto o leite morno abre o caminho.

Cotação do dia

Se eu pudesse, com a perversidade que o mundo me ensinou, estrangular-me dizendo: morre, maldito, morre, verme, morre, desgraçado.

Kama Sutra - DXXIII

Há um gozo vocabular, uma interpenetração de substantivos e adjetivos que atormenta os sentidos, que os espicaça, que os aguça quase até a loucura. O sexo na página 36 de um romance infla ainda a braguilha, mesmo depois de tantas vezes relida, e a mão direita não se cansou de pousar sobre o tecido inquieto, enquanto a esquerda se fixa no livro, para que o vento não ouse virar suas folhas.

Um trecho de Zhang Xianliang

"Já não me lembro quando comecei a querer matá-lo, só sei que foi depois que tomamos rumos diferentes. Quando comecei a observá-lo, não pretendia fazer isso, mas com o tempo ele se tornou intolerável.
   No final seus sentimentos começaram a coincidir com os meus - à medida que eu planejava sua morte, ele se habituava à ideia de morrer, o que me livrou de consideráveis problemas. Assim que ele morreu, passamos a ser um só, e essa união transcendeu o amor carnal com qualquer mulher.
   Nós dois conseguimos o que queríamos quando o tiro ecoou. Ele extinguiu-se e eu morri na cama, esperando sentir o leve toque de uma mulher - o toque de dedos cheios de anéis fechando suavemente meus olhos."

(Do romance Acostumado a morrer, tradução de Vera Maria Whately, publicado pela Editora Best-Seller.)

sábado, 28 de dezembro de 2013

Kama Sutra - DXXII

Nas noites em que ela não pode vir, ele se deita sobre o espaço que ela costuma ocupar na cama, e aos gemidos da madeira fustigada vai respondendo com os seus, que a ausência torna mais veementes.

Ao amor

Ao amor convém a condição de esmoler. Um amor de guardanapo no peito, diante de uma mesa farta, é deprimente. O amor há de estar sempre com a mão estendida para os favores da caridade, oferecendo em troca sempre as mesmas estrelas já ensebadas pelo manuseio e aquele pedacinho de lua que falta quando a fitamos.

Comparações nobelinas

Saramago está para Lobo Antunes assim como Alice Munro está para Margaret Atwood. Saramago e Alice gozam a paz - ele a dos mortos, ela a dos vivos realizados. Lobo e Margaret cantam a canção do nunca mais.

Por mais que...

... nos censuremos, sabemos como somos falsos. Clamamos pelo amor e, quando ele nos concede a graça de aparecer, nós logo o trocamos pelo sexo, e nossos olhos já não veem mais a beleza. Estão sempre meio fechados, entregues ao gozo que nos iguala aos cachorros e aos cavalos. E quando ouvimos a palavra virgem nosso sorriso diz tudo: ah, conta outra; só se for na orelha.

Quando dizemos

Quando dizemos não crer na pureza do amor, estamos dizendo não acreditar na nossa.

Os que o amor rejeitou

Os que o amor rejeitou passam a viver de brisa e de caldo de estrelas. A dieta melhora suas rimas, porém logo o estômago, infenso à poesia, se põe a regurgitar rosas. As amadas pisam nelas com seus sapatos de Cinderela e dizem: ai, que nojo.

Ainda que a maioria

Ainda que a maioria ache isso uma solução, o problema do amor começa quando ele passa a ter bunda, coxas e seios.

Alice Munro

O Nobel atribuído a Alice Munro deve servir para resgatar um pouco do prestígio dos contos, que pareciam condenados a seguir a trajetória da poesia. Curiosamente, fala-se, de tempos em tempos, na iminente morte do romance, e ele, a cada onda de vaticínios sombrios, acaba por se revigorar sempre. O conto e a poesia é que andam enfermos, principalmente a poesia. O sucesso do livro de Paulo Leminski neste final de ano é um alento. Ele talvez indique uma fórmula para o poeta chegar ao leitor: um pouco menos de João Cabral de Melo Neto e um tantinho mais de Quintana e Drummond, se bem que os críticos jamais venham a admitir.

O amor não resiste

O amor não resiste às insinuações do sexo, ao roçar de dedos, ao conhecimento da pele. O amor cai sempre no mesmo engodo, o da carne, e, assim que se submete a ela, seus melhores instintos se evadem de quem ama e voltam a ficar disponíveis ao apelo das flores e das estrofes. Quando a carne não acha mais novidade nas coxas, nos seios e nas noites em que os travesseiros ouvem as interjeições esganiçadas do orgasmo, prometemos a nós mesmos que será diferente a próxima vez. Mas, ao primeiro som de uma nova e perturbadora voz, começaremos a imaginar como ela soará na noite em que pudermos arrancar gemidos dela.

Os amores

Os amores, assim como os peixes, morrem pela boca. Começam pelos olhos, pela magia que lhes é emprestada certa manhã ou tarde. Envenenam docemente nossos sentidos, quase nos fazem crer que há somente alma neles. Deveríamos ficar sempre nesse estágio, não prosseguir. Mas começamos a dizer ao ser amado por que o amamos. E ele retribui. Explica-nos por que nos ama. Ao fim de um mês ou dois, temos já o amor catalogado em todas as suas minúcias. E alegra-nos dizer, e ouvir dizer, como ele é. Um dia, quando estamos justamente nesse exercício, as palavras saem de nossa boca como lombrigas pachorrentas. Nosso amor, único, é igual a todos. Não resiste a sessenta dias de análise.

É inefável...

... o amor quando nos atinge. Nada faz presumir que ele virá, e no entanto, no instante seguinte, levamos a mão ao peito. Quem nos atingiu tem ainda uma forma indefinida. Somos nós que vamos moldando seu rosto devagar, seus gestos. Nos encantamos, é tão belo o rosto, e os gestos. Parecia que viveríamos sem essa experiência vital, e agora percebemos que viver é isso, essa perturbação única, esse afrouxamento dos sentidos. Nunca sentimos nada igual. E vamos avançando na construção desse fenômeno. Um dia, percebemos que o amor não passa de uma projeção que fizemos de nós mesmos. O amor inefável começa a falar, e fala com as nossas palavras, com o sentido que demos a elas. O amor é um momento em que nos descuidamos e nos amamos. A descoberta é amarga. O amor é quase sempre a manifestação de nosso narcisismo.

Um poema de Emily Dickinson

"Morri pela beleza, mas estava apenas
No sepulcro acomodada
Quando alguém que pela verdade morrera
Foi posto na tumba ao lado.

Perguntou-me, baixinho, o que me matara.
"A Beleza", respondi.
"A mim, a Verdade - são ambas a mesma coisa,
Somos irmãos."

E assim, como parentes que certa noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E cobriu os nossos nomes."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicado pela L&PM.)

A palavra amor

No tempo em que mantinha seus poderes, a palavra amor, se adequadamente pronunciada, provocava fenômenos como a aparição de arcos-íris de dezessete cores. Nessa época, era preciso cautela para dizê-la em voz alta. Um poeta, logo depois de pronunciá-la, teve os lábios cobertos por um enxame de abelhas.

As desditas sentimentais

As desditas sentimentais são doces de contar. A cada narração, as derrotas ganham pontos e, ao evocá-las, nosso peito se enche de orgulho, e nossos olhos de lágrimas, esses inestimáveis troféus do amor.

Na carteira

Na carteira do poeta, o dinheiro se mistura aos papéis com sonetos rabiscados. Quando ele compra alguma coisa, as notas saem com olor de rosas e, se o vendedor não as pega logo, elas se supõem passarinhos e ensaiam o voo.

As musas

As musas de hoje bocejam enquanto os poetas, lívidos, declamam poemas que Casimiro de Abreu poderia ter escrito. Quando o dedo delas começa a descer pelo próprio corpo, os poetas imaginam que o langor seja fruto da paixão posta nos versos. E, quando os olhos delas se fecham, os poetas se vangloriam intimamente. Se já leram a ode, recomeçam a leitura. No meio, se eles ouvem suspiros, não distinguem o nome que é suspirado, e que nunca é o deles. Os ouvidos estão ocupados com o som do violino entre a quarta estrofe e a quinta.

Voltarem estropiados...

... é o que os poetas conseguem no fim de suas jornadas. Um soneto, hoje, vale tanto quanto um berloque de cinco reais. Na contabilidade do coração, dependendo da hora, dois sonetos saem por oito reais, mais uma quadrinha de brinde.

Kama Sutra - DXXI

O umbigo sempre lhe pareceu o melhor começo para a língua, enquanto o dedo garimpa ouro nos fios úmidos.

"Games"

Pelo teor dos "games" do meu neto, creio que logo os preservacionistas clamarão no deserto. Não há mais heróis dispostos a lutar para salvar o planeta. O combate é sempre entre dois vilões, pelo privilégio de não deixar nada vivo na face da Terra.

Outro modo de dizer

À obsessão, quando dirigida a uma mulher, costuma se dar o nome de devoção. O amor tem sua linguagem.

Defesa

Se lá em cima, ou lá embaixo, nos perguntarem o que nos levou ao gesto desvairado, diremos que foi a pretensão de engolir o mar.

O lorde e sua gravata

Leu há muito tempo, não lembra onde, que um lorde se enforcou com uma gravata. Embora o plágio seja para ele uma abominação artística, o toque de classe da gravata é já quase uma tentação. Se fosse mulher, gostaria de remontar a cena da morte de Isadora Duncan, um primor de estética, acrescentando-lhe detalhes dos quais ela, por não tê-la sequer imaginado, não cuidou. Escolheria outra echarpe, talvez mais etérea, que deixasse em seu pescoço só as invisíveis marcas do vento.

Birras

De quem diz que tal coisa é uma platitude, que a noite ainda é uma criança, que Deus tudo vê e provê, que o homem é um ser social, que aqui se faz e aqui se paga, que fulano é um ícone e beltrano um arquétipo.

Poderosas Evas


Se hoje as mulheres
em tudo mandassem
tudo comandassem
e derrubassem reinados
e esfarelassem impérios
nos quatro cantos
e nos dois hemisférios

Assim como ontem
anteontem e trasantontem
os homens mandaram
em todos os impérios
em todos os reinados
por eles arruinados
em todos os incontáveis anos
do inumerável passado

Se hoje
elas assumissem
a ira a lira os atos
e o prazer
e o gozo inominável
das catástrofes
e das calamidades

Não as aplaudiríamos
mas entenderíamos
e as perdoaríamos
se no meio das chamas
que devorassem as tripas
e o coração das cidades
nós as víssemos
alimentando o fogo purificador
com todo seu rancor justiceiro
e sua inimputável impiedade.

Soneto do réu contumaz

Dos que subvertem a paz,
O amor é sempre pioneiro,
O amor é sempre o primeiro,
O amor é réu contumaz.

Com que entusiasmo ele faz
Seu trabalho costumeiro,
E como é exato e certeiro
O desassossego que traz.

Mas sempre, no tribunal,
Se isenta de todo mal,
E há nisso certa razão.

Instados a pronunciar-se
Se querem dele livrar-se,
Todos sempre dizem não.

Um trecho de Lautréamont

"Praza ao céu que o leitor, audacioso e tornado misteriosamente feroz com isto que ele está lendo, encontre sem desorientar-se seu caminho abrupto e selvagem através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois, a não ser que mantenha uma lógica rigorosa em sua leitura e uma tensão do espírito pelo menos igual à sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberão sua alma, assim como a água ao açúcar. Não convém que qualquer um leia as páginas a seguir; só alguns conseguirão saborear este fruto  amargo sem maiores riscos."

(De Cantos de Maldoror, tradução de Claudio Willer, publicado pela Editora Max Limonad.)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Fernanda Lima

A única falha de Fernanda Lima é também o motivo de sua grandeza: ela é uma só, a única.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é a prova de que a crença na beleza nem sempre é inócua ou improfícua.

Fernanda Lima

Diante de Fernanda Lima, palavras como beleza e majestade vacilam e se interrogam sobre seu significado.

Fernanda Lima

Plenitude seria um bom sinônimo para Fernanda Lima. Completude também. Se bem que os dois, mesmo juntos, deixem um pouco a desejar.

Kama Sutra - DXX

É para provar o próprio sal, e para premiar o dedo do homem pelos amáveis toques, que ela o beija. E também para molhá-lo um pouco mais e facilitar a gentileza, caso ela se repita.

"Almoços", de Julio Cortázar

"No restaurante dos cronópios acontecem essas coisas, a saber que um fama pede com grande concentração um bife com batata frita e fica danadodavida quando o cronópio garçom lhe pergunta quantas batatas fritas quer.
   - Como, quantas? vocifera o fama. - O senhor me traz batata frita e pronto, que droga!
   - É que aqui servimos em porções de sete, trinta e dois ou noventa e oito - explica o cronópio.
   O fama reflete um pouco, e o resultado da sua reflexão consiste em dizer ao cronópio:
   - Olhe, meu amigo, vá à merda.
   Para imensa surpresa do fama, o cronópio obedece instantaneamente, isto é, desaparece como se o vento o tivesse bebido. É claro que o fama jamais chegará a saber onde fica a tal merda, e o cronópio provavelmente tampouco, mas em todo caso o almoço está longe de ser um sucesso."

(Do livro Papéis inesperados, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, publicado pela Civilização Brasileira.)

Será um dia maravilhoso

Será um dia maravilhoso. Talvez tentemos enganar o amor e, enquanto ele estiver dormindo, saiamos pé ante pé. Procuraremos o lugar mais ensolarado, perto de um filete de água.  Nos disfarçaremos e, por um sortilégio qualquer, conseguiremos melhorar a aparência de nosso rosto. O amor, viciado em nós, saberá acompanhar nossos passos e, chegando ao banco em que estivermos, sentará ao nosso lado e nos dirá que nosso rosto antigo, o verdadeiro, lhe agrada mais. E, como se fosse possível, dirá também que desta vez escolhemos o melhor de todos os sóis. E beberemos da água, espantando antes os pequeninos peixes vermelhos.

De vez em quando

De vez em quando convém dar ao amor alguns petiscos sexuais, para que não cresça como um menino boboca.

Kama Sutra - DXIX

Um amor que se acumpliciasse com o sexo e enfunasse a braguilha.

Kama Sutra - DXVIII

Apostar corrida com o amor, como se fôssemos dois cãezinhos brincalhões cujo objetivo fosse não vencer, mas chegar juntos e ofegantes.

Kama Sutra - DXVII

O dedo médio jamais revelará aos outros a vertigem da umidade salina.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é a primeira sílaba do canto do bem-te-vi.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é a dádiva de um veleiro no horizonte da tela.

No início

O amor chega sempre com a pretensão de apagar todos os outros. Às vezes consegue, às vezes acaba fazendo o papel de especiaria, e condimenta os amores antigos, reavivando-lhes o sabor.

Necrológio

O poeta morreu ontem em São Paulo. Há quatro anos lutava contra um câncer no coração e um prurido nas partes pudendas.

Recidiva

O amor é uma daquelas doenças em que a recaída é fatal.

O processo

À medida que vai ampliando o vocabulário, o escritor novato sente a tentação de usar as palavras recentemente incorporadas. E em seu texto acolhe velharias, esquisitices, bizarrias. Só depois ele perceberá que escrever não é acrescentar palavras, é a arte de descartar a maioria para ficar com as certas, as únicas aplicáveis.

Soneto de como o amor virá a ser

Tudo isto um dia será
Já tão remoto e passado,
Já tão longínquo e nublado,
Que sonho parecerá.

E tão estranho soará,
Se um dia for relatado,
Como um enredo inventado:
Houve um tema, já não há.

O amor será uma história
Que talvez nem a memória
Possa um dia recompor.

Dos nossos vivos ardores
Não ficarão os clamores,
Somente um vago rumor.

Conforme toca a música

Nem sempre a modéstia é uma virtude; mais comumente não passa de uma adaptação às circunstâncias.

Cúmplice

O chute no banquinho há de ser preciso. Ele deve ser atirado longe, para que nossos pés não sintam a tentação de se apoiar novamente nele.

Kama Sutra - DXVI

Que o orgasmo pingue gota a gota, como a chuva, e se estenda pela madrugada, pingando, pingando, até transbordar da bacia, lá fora, e começar a descer pelas coxas, no quarto, no rumo dos joelhos.

O livro-caixa do coração

A contabilidade do amor era constituída por cartas, poemas copiados à mão, beijos soprados ou dados, tristezas, rompimentos, adeuses. Agora ela é regida pelas normas do custo benefício: quantos jantares pagos, quantos ingressos de cinema, quantos presentes são necessários para que as coxas se abram e se descubra se valeu a pena?

Três trechos de Jeter Neves

"Contemplação é melancolia, melancolia é escuridão. Escuridão é romantismo em estado puro."

                                                            *****

"Penso que estar só não é apenas uma vocação da alma, estar só exige disciplina e prática. Navegar é um ato de solidão. No fundo, tudo é solidão. Solidão era o meu sentimento mais íntimo, a prefiguração de minha verdadeira natureza, mas não tenho mais certeza disso. Escurecer é uma arte."

                                                            *****

"Eis a maldição romântica: a gente se apaixona pelo Amor, por uma ideia do amor..."

(Do romance Vila Vermelho, publicado pela Editora Record.)




quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Fernanda Lima

Há mulheres que são como o sumo da vida, a garantia de que vivê-la só pode ser belo. Fernanda Lima é um pouco mais, é o suprassumo.

Depois de cobiçar inutilmente...

... frutos mais jovens, bom é voltar a apanhá-los na antiga árvore. Como caem docilmente em nossas mãos.

Loucura

Minha loucura é mansa como um cachorro de cego.

Os amores impossíveis

Os amores impossíveis caíram de moda. O que sobrou deles, ou melhor, a memória do que eles eram, mal dá para o consumo da literatura e do cinema. A época é a dos amores possíveis, dos vários amores possíveis. O sexo comanda o espetáculo - e o sexo não tem o estoicismo do amor. O sexo quer ser satisfeito e sua paciência é curta. Se não lhe abrem a porta à qual foi bater, ele bate à porta vizinha. O amor voltado para um homem só, ou uma única mulher, por toda a vida, não existe mais. O amor não está mais catalogado entre os grandes sentimentos, mas entre as comodidades da vida moderna. O amor é um hábito, como comer ou dormir, uma dessas coisas que se fazem quase automaticamente. O amor tresloucado é hoje incompreensível e ridículo, algo imediatamente relacionado com o atraso e a ignorância.

Um soneto de Pablo Neruda

"Saberás que não te amo e que te amo,
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo todavia.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos a chave da fortuna
e um incerto destino desditoso.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo."

(De Cem sonetos de amor, tradução de Carlos Nejar, publicado pela L&PM.)

Kama Sutra - DXV

Dos natais, o que lhe deixou um gosto mais entranhado é um que às vezes, nesta época, lhe traz de volta o sabor dos figos, das tâmaras, do champanhe bebido nos lábios da anfitriã.

Soneto do comensal do amor

Do amor já fui comensal
No tempo feliz de outrora,
E ele, tão sovina agora,
Foi meu açúcar, meu sal.

Nunca ele me tratou mal,
Nunca me deixou de fora,
Toda hora era boa hora,
E o tratamento, cordial.

Eu era jovem então,
Meus fados eram propícios,
E o amor me usou em seus vícios,

Em sua devassidão.
Paguei jantares e almoços
Com a rica moeda dos moços.


Fernanda Lima

Dizer Fernanda Lima de manhã  é o melhor modo de açucarar os lábios para o resto do dia.

Teu nome

Não digo mais o teu nome. Só o sussurro, com as janelas fechadas. Ontem, quando eu o disse diante de tua foto no celular, um passarinho entrou e me bicou os lábios. Escapou gorjeando estouvadamente, como que embriagado de vinho.

Do ato de escrever

Escrever me parece às vezes uma forma de desnecessidade, uma desculpa que encontrei para ganhar a vida sem maior esforço. Quando me lembro do trabalho absurdo que certos livros me deram, dos dias de trinta e tantas horas dedicados febrilmente a terminá-los, sinto certo conforto. Mas logo me volta a suspeita de que, comparado a outras atividades, o ato de escrever é quase como uma distração. Invejo os lavradores, que tiram frutos da terra, e, entre os artistas, os pintores e os escultores, que mexem com substâncias, com coisas tangíveis, que as transformam. Os escritores mexem em quê? Em nuvens, em abstrações.

Estação da Luz

Juntar a pele
com a pele
da puta mais reles
e pedir-lhe perdão
por não poder dar-lhe
um carro de luxo
um conversível
uma mansão aprazível
com fonte de repuxo
e sobretudo as estrelas
que todas dei
uma a uma
a quem não valia estrela
nem porra nenhuma.

Gramatiquices

Aqueles que se empenham em conhecer a fundo as normas gramaticais costumam ser impiedosos com os que não as conhecem. Podem até não censurar abertamente "os que desvirtuam o vernáculo", mas mentalmente os fazem baixar de cotação. Os revisores, espécie a que pertenci, tendiam a esse tipo de mesquinharia. Hoje quase não há mais revisores, e quem conhece o idioma nunca chega a reunir o número protocolar de sete, para realizar suas assembleias.

Birras

De quem diz que um prêmio foi abocanhado ou abiscoitado, que alguém foi com ele aquinhoado ou agraciado, que a entrega do prêmio aconteceu em tal ou qual lugar em solenidade pilotada por não sei quem.

Cotação do dia

Na última fase da vida, é em tom de tristeza que dizemos que morrer é algo que só acontece aos outros.

De Foucault sobre a histeria

"Muito frequentemente, a histeria foi entendida como o efeito de um calor interno que espalha através do corpo uma efervescência, uma ebulição ininterruptamente manifestada por convulsões e espasmos. Esse calor não será parente do ardor amoroso ao qual a histeria é tão frequentemente associada, nas moças à procura de marido e nas jovens viúvas que perderam o seu? A histeria é ardorosa por natureza; seus signos remetem muito mais facilmente a uma imagem do que a uma doença; esta imagem foi esboçada por Jacques Ferrand no começo do século XVII, com toda sua exatidão material. Em sua Maladie d'amour mélancolie érotique, ele se compraz no reconhecimento de que as mulheres se veem mais frequentemente desvairadas pelo amor do que os homens; mas com que arte sabem dissimulá-lo!"

(De História da loucura, tradução de José Teixeira Coelho Neto, publicado pela Perspectiva.)

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

José, Pilar

Vi hoje um documentário sobre José Saramago e Pilar del Río. Pobre Saramago. Que porcelana, que louça. Transportável de uma estante para outra. Transportado de uma estante para outra. Como um trapezista sempre com alguém embaixo, colocando a rede. Amor é isso? Esse transportar louça, esse proteger porcelana, esse armar rede? Jesus! Melhor cair, espatifar-se, agonizar no picadeiro.

Um poema de Emily Dickinson

"A alma escolhe sua companhia
E fecha a porta, depois.
Em sua augusta suficiência,
Cessam as intromissões.

Indiferente, vê as carruagens
Parando junto ao portão;
Indiferente, um rei de joelhos
Sobre suas alfombras.

Sei que, dentre uma vasta multidão,
Ela escolheu um ser apenas;
Depois, cerrou as aldravas de sua atenção,
Feito pedra."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicado pela L&PM.)

A luxúria

Acredito que a luxúria só encontre algo comparável a ela no êxtase místico.

Kama Sutra - DXVI

Atingido o encaixe, ir deixando o corpo se escoar para dentro do corpo dela, até que a ponta exploradora, depois de exaurido o prazer buscado, se acomode murcha, como um bebê encolhido pedindo proteção.

Kama Sutra - DXV

Arrastar-me sobre a areia do teu corpo ensolarado, arder de febre e pecado e encontrar a fonte do teu umbigo, o oásis em que a minha língua afortunada beberá mais um pouco da tua água salgada.

Do tratamento errôneo que se deu à carne

Acabamos tratando a carne com tanta reverência que ela se fechou para nós, e já nem os beijos propiciatórios fazem aflorar aquela saliência que desde a origem do mundo move os homens a todos os descobrimentos, a todas as loucuras, a todos os desdobramentos sincopados do êxtase. Acabamos mistificando, mitificando tanto a carne, que até aquela rosa afeita a todos os toques se declarou morta, e seu odor marinho é hoje um olor de santidade.

Kama Sutra - DXIV

Se precisarmos escolher um pecado, um só, que seja o da desbragada luxúria. Íncubos, súcubos, coxas, fendas, líquidos, ramagens, fios de ouro que persistam em nossa boca como fiapos de cana. Convulsões, estremecimentos, desfalecimentos, mortes gloriosas entre palavras murmuradas ou gritadas, gozos longos e doloridos, saliva grossa como esperma, e uma palavra, vinda da boca em chamas de um anjo de Lúcifer, incitando: mais, mais, mais.

E várias gerações

E várias gerações de moscas serão vingadas por aquelas que primeiro com temor, e depois com naturalidade, passearão por nosso rosto. Talvez haja alguma doçura em nós, no fim.

Cena

Pender de tal forma que a língua, na sua tentativa de escapar no último instante, pareça uma serpente debochando das primeiras testemunhas.

É preciso coragem

É preciso coragem - para viver a vida e para deixá-la. Ou haverá algum truque, algum atalho que, se conhecido por nós, facilitaria tudo?

Pena o suicídio...

... ser, no fundo, um acontecimento social e sujeito a certa etiqueta. A espontaneidade se perde enquanto pensamos se ficaremos melhor com a corda atada no pescoço ou o rosto salpicado de sangue, como um bufão a quem tenham atirado extrato de tomate. Os que se preocuparam a vida inteira com estéticas jamais gozarão a naturalidade dos suicidas puros.

Se quiserem

Se quiserem encontrar algo agradável sobre nós, há de ser na infância. Não há mais testemunhas desse tempo, mas em nossa lembrança, tão falível quanto tudo mais em nós, somos um bom menino. Talvez se encontre uma foto nossa com um gato que não demonstra receio nenhum. Talvez também o gato se tenha tornado logo depois um desses pequenos flagelos nascidos para infernizar a própria vida e a dos outros. Olhar a foto com boa vontade e espírito natalino.

O Natal

Dar aos amigos o inestimável presente de não precisarem mais perguntar por nós nem pela nossa saúde. Morrer longe, tão distante, que a distância seja uma desculpa que os exima de olhar pela última vez nosso rosto rancoroso.

Chega o momento

Chega o momento, na vida, em que é preciso ir acostumando o espírito com a ideia da morte. E, já que erramos tanto nos conceitos que impusemos à vida, convém não ver, no fim dela, nem satisfação nem alívio - a não ser para os que forem dispensados de ver nosso rosto e tocar nossa mão.

Um trecho de "Explorações", de Rula Wicknerd

A tribo comemorava um acontecimento extraordinário. Uma cobra gigantesca que por muito tempo aterrorizara as nativas jovens, furtando-lhes o leite destinado a amamentar os filhos, havia desaparecido meses antes. Segundo me contaram, ela podia ser vista mamando a lua quando esta atingia sua plenitude. Notaram minha incredulidade e, numa noite de lua cheia, instaram-me a olhar para o céu. Ali estava ela, a imensa cobra, exaurindo as tetas lunares, apontaram-me com alvoroço. Não sei, até hoje, se cheguei a vê-la. Mas o entusiasmo da tribo, que até hoje ecoa nos meus ouvidos, me faz dizer que sim, que a vi com estes olhos que testemunharam tantas cenas inexplicáveis em vinte anos de expedições.

Astúcia

Alegar memória fraca ainda é um dos truques usados para esconder a ignorância.

Kama Sutra - DXIII

Intercala direita e esquerda, enquanto a imaginação vai despindo a mulher do dia e fazendo-a dizer, com os lábios rubros, que o ama e que vai marcar seu corpo de batom, desde a boca até o ponto em que a direita e a esquerda fizeram despontar uma rijeza que espera o momento de ser chamada de coisinha gostosa para se acabar em contorções.

Agenda

Desistir de tudo.

O astro

Pediu vinte milhões para trabalhar no filme. Chegou a um acordo. Receberia dez, e seu personagem morreria no meio da trama, depois de um mês de filmagem.

Os papéis

No amor, logo se distinguem os papéis: o do torturador e o do torturado. O amor é um exercício continuado do sadismo e do masoquismo, com toques de êxtase religioso.

Do amor como acontecimento

Amor compartilhado é uma bobagem. O amor é um acontecimento extraordinário, único. Acreditar que ele possa atingir duas pessoas ao mesmo tempo no mesmo lugar é algo que destoa do bom-senso, algo impossível até para o amor.

Aspiração

Morrer deveria ser bonito sempre, como uma pequena obra de arte.

No asilo

Um dos velhos me falará de sua esperança de escapar ao chamado da Morte, por ser surdo. Eu lhe direi ser uma hipótese bastante agradável. Ele não compreenderá minha gentileza. "O que você disse? O que você disse?"

Cotação do dia

Que, quando vierem nos ver, não possamos ver ninguém.

De Michel Foucault

"A demência opõe-se à melancolia e à mania; estas são apenas 'o exercício depravado da memória e do entendimento'; em compensação, é uma rigorosa 'paralisia do espírito' ou ainda 'uma abolição da faculdade de raciocinar'; as fibras do cérebro não são suscetíveis de impressão e os espíritos animais não mais são capazes de movê-las. D'Amount, autor desse verbete, vê na 'fatuidade' um grau menos acentuado de demência: um simples enfraquecimento do entendimento e da memória."

(De História da loucura, tradução de José Teixeira Coelho Neto, publicado pela Perspectiva.)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Fernanda Lima

Fernanda Lima seria um cisne, se lhe conviesse.

A dúvida

A mulher destruíra um império. No entanto, o homem a olhou com surpresa quando ela começou a devorá-lo.

Soneto da inalcançável beleza

Beleza rara, intangível,
Beleza pura, impalpável,
Beleza tanta, inefável,
Beleza toda, indizível.

Beleza vã, impossível,
Beleza somente viável,
Beleza só alcançável
Nos domínios do não crível.

Antes, beleza, que eu morra,
Me olhe, por Deus, me socorra,
Se fixe no meu olhar.

Se não conseguir tocá-la,
Que possa ao menos fitá-la
Quem os meus olhos fitar.

Kama Sutra - DXII

Gostaria de lhe cravar os dentes na nuca, como viu o gato fazer com a gata, e de sacudi-la toda, para que, quando ela se entregasse, fosse dócil como uma presa extenuada pela luta.

"O terrorista, ele observa", de Wislawa Szymborska

"A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
Agora são só treze e dezesseis.
Alguns ainda terão tempo de entrar;
alguns de sair.

O terrorista já passou para o outro lado da rua.
A distância o livra de todo mal
e a vista, bom, é como no cinema:

Uma mulher de jaqueta amarela, ela entra.
Um homem de óculos escuros, ele sai.
Uns jovens de jeans, eles conversam.
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele mais baixo tem sorte, sai de lambreta,
e aquele mais alto entra.

Treze e dezessete e quarenta segundos.
Uma moça, ela passa de fita verde no cabelo.
Só que aquele ônibus a encobre de repente.

Treze e dezoito.
A moça sumiu.
Se ela foi tola de entrar ou não
vai se saber quando os carregarem para fora.

Treze e dezenove.
Parece que ninguém mis entra.
Aliás, um gordo careca sai.
Mas remexe os bolsos como se procurasse algo
e às treze e vinte menos dez segundos
ele volta para buscar a droga das luvas.

São treze e vinte.
O tempo, como ele se arrasta.
Deve ser agora.
Ainda não.
É agora.
A bomba, ela explode."

(Do livro "Poemas", tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

Bom,

não precisa ler o soneto. Quem há de querer saber de morte no dia do nascimento dos nascimentos? As outras notas também não são nenhuma maravilha. Faço o que posso. E é tão pouco o que posso. Só boa vontade não basta, sei melhor que ninguém. De qualquer forma, vale a dedicatória - no fundo, a melhor coisa que os textos têm.

Você,

que folheou tão descuidadamente este suplemento especial, talvez devesse lê-lo inteiro. Ele é todo dedicado a você. Fiquei triste ao saber que você leu tudo ao acaso, pulando notas. Todas elas são dedicadas a você. Também ontem observei sua afoiteza. Você passou pelo blog como um passarinho saltando poças. Leia ao menos o "Soneto das pompas da morte". Não é dos piores. Bom Natal

Edição especial de Natal

As lágrimas no frasco não podem ser vendidas separadamente. Fazem parte da edição especial de Natal.

Será um belo dia

O sol veio atrasado, mas veio. O bem-te-vi o saudou, acrescentando um som ao cumprimento de praxe: bem-te-vi-aí. Não choveu à noite, então de onde foram as árvores tirar esse verde tão vivo? E que sorrisos, esses. Nem parece que estiveram guardados desde 1º de janeiro. Os milagres natalinos são oferecidos às baciadas. Uma grosa por um centavo. Dos beijos soprados nascem flores. O homem do caminhão da Cândida não conseguiu vender um litro sequer, porque, quando diz Cândida, Cândida soa como Jesus. A alegria existe, já se vê, e o dia há de se tornar ainda mais belo para merecê-la. Não se importem comigo. Meu rosto está triste? Não acreditem nele. Sou um mentiroso contumaz. Bom Natal!

Ali onde

Ali onde o bêbado largou ontem à noite seu escarro espumante. Ali onde a rameira se agachou para deixar sua urina. Ali onde as moscas se banqueteiam no vômito dele e dela. Ali estão nossas esperanças. É possível reconhecê-las ainda. São aquelas pétalas de rosa que fedem como fezes.

Como custam

Como custam a estrebuchar as almas carregadas de culpa. Dias, meses. Reviram-se, contorcem-se, imploram por Deus, e dos seus lábios as palavras saem como minhocas que andaram fuçando covas de defuntos.

Espanta-nos

Espanta-nos a podridão da nossa alma. Nós a alimentamos com poesia, e ela arrota como um marinheiro saindo da taverna. Nossa alma é porca, tem entrepernas que retêm o esperma de duas gerações de sifilíticos.

Gritamos

Gritamos diariamente lamentações para o nosso muro. E o muro as devolve, em forma de cuspe e zombarias.

Nossa maior ingenuidade

Nossa maior ingenuidade não é escrever. É acreditar que alguém esteja disposto a acolher nossas palavras. Seria como se alguém quisesse ter nas mãos um algodão que esteve numa ferida ou um anel tirado do dedo de um defunto.

Nossa alma

Nossa alma é babaca, boboca, ingênua, interiorana. Um verso, uma pétala, uma dessas bobagens românticas bastam para fazê-la suspirar como uma noviça que se isolou para curar um amor. Nossa alma é cretina, idiota, desesperadamente aflita. Nossa alma nos obriga a escrever textos em que a demência uiva como uma leoa despojada dos filhotes. Nossa alma suicida se afoga em rios, despenca sobre calçadas, morre escancarada pela chave enferrujada de um soneto. Nossa alma é aquela única que o Diabo, temeroso, rejeitou.

Não fomos Philip Roth,

não o plagiaremos. Quando nos abstivermos de escrever, nossa declaração de abandono estará visível na ponta de uma corda ou nas veias abertas. Se algum improvável leitor vier nos fazer um apelo para que retornemos, terá certa dificuldade.

Dos impérios

Nunca nos deram atenção. Jamais fomos capazes de construir impérios, ou derrubá-los. Fomos sempre aqueles que, encontrados entre os escombros, degradaram toda uma história, os ratos que não conseguiram escapar.

Que deixemos

Que deixemos uma loucura perniciosa, daquelas que inspiram os pintores malditos e os poetas de alma podre.

Que sejamos

Que sejamos aquele necrológio circulado na página 16 de um jornal velhíssimo. Que sejamos esse Joaquim Saraiva ou esse Antônio Antunes citado como homem de muitos filhos, netos e amigos. Que tenhamos algo além desses filhos, netos e amigos, para podermos merecer, depois de tanto esforço, uma linha a mais, ou meia. E maior convicção do lápis vermelho, ao circular nosso nome.

Escrevo

Escrevo cada vez mais tresloucadamente. Lanço os escritos pela janela. Um talvez caia no colo de uma princesa, ou ao menos no chapéu do seu cocheiro. Os outros - um milhão novecentos e noventa e quatro mil - saberão, como sempre souberam, achar os melhores bueiros.

Benditos

Benditos sejam os que nos humilham, nos escarnecem, zombam de nossas palavras. Eles dão ao coração seu mais precioso alimento: as lágrimas. Sem elas, como ele faria para manter sua pieguice, seu modo patético de ser?

A outra

Demos a outra face ao amor, e ele a devorou também. Como sempre fizemos, agradecemos a ele, pela honra. E lamentamos não ter mais face nenhuma, assim como não temos mais coração. O amor, sempre afável, compreendeu e nos perdoou. Não queríamos perdão. Queríamos ter mais carne para lhe oferecer. Queríamos dar-lhe a segunda face da alma.

Nossa alma

Nossa alma já morreu tantas vezes que já nem resta mais nada dela, para enterrar.

No escuro

No escuro, no âmago das trevas, nossa alma implora por um brilho, ainda que opaco. Já não lhe importa se virá de uns olhos azuis, de um sorriso claro ou da lanterna de um malfeitor.

Sentirmos pena de nós

Sentirmos pena de nós é tão abjeto, sentirmos pena de nós é tão ridículo. Sentirmos pena de nós é tão doce. Nós nos abraçamos com os nossos braços, que afagam nossas carências e só as deixam chorar pelo tempo exato que leva um rouxinol de Oscar Wilde para morrer.

Uma das peculiaridades...

... do coração é saber deixar-se espatifar. Não há porcelana mais frágil do que ele. Seus cacos são tão leves que, se atirados para o alto, voarão como pássaros antes de cair como gotas de arco-íris. O coração nasceu para ser espatifado. Qualquer coração, mesmo esses de louça, poderá confirmar. Por isso é que, postos com os outros bibelôs, os corações são sempre os que parecem ter dado um passo à frente à noite.

No Natal nós

No Natal nós devemos abrir o coração, mas nunca escancará-lo. Ele deve conservar alguma dignidade, embora no passado tenha sido visto pedinchando afeto pelas ruas. Ao coração cabe ser rancoroso até, se tiver, impressa na mão, a marca de todos os sóis em que ela se estendeu em vão.

Tudo melhora

Tudo melhora quando aprendemos que ser um cisco sobre a seda é uma bênção. O peteleco que nos atira longe não é uma calamidade. Calamidade é nos apegarmos demasiado à seda.

Havemos de ter

Havemos de ter certa classe. Ninguém adivinhará em nós o que nos dói, o que nos rói, o que nos corrói, o que nos consome. Teremos sempre um sorriso para desmentir o sofrimento de nossa alma. E, quando nos perguntarem se precisamos de alguma coisa, diremos sempre a mesma palavra: não. Nossa dor ficará nos nossos cadernos, tão antigos quanto o dia em que soubemos que a vida não era feita para nós.

A vida, dos seis aos doze

Tenho feito alguns poemas bonitinhos, uns versinhos singelos. Acho que sempre quis ser aquilo que fui entre os seis e os doze anos: um garoto empenhado em agradar à família e aos professores. A passagem para a vida adulta nunca se concretizou e eu sou ainda o menino encerrando o discurso e pedindo uma salva de palmas para a dona Odete, enquanto meus colegas deixavam cair lápis e borrachas, para poderem olhar as coxas dela e dizer a cor de sua calcinha.

Nostalgia

Nunca estive na Polônia, nunca estarei. A nostalgia que sinto dela me veio no sangue: meus pais a trouxeram para cá. Talvez por isso ela não seja tão forte. Transplantar nostalgias não costuma dar certo.

Soneto da contabilidade final

Já não importa saber
Como nós nos comportamos,
Como nós desempenhamos
A tarefa de viver.

Para que irá nos valer
Saber onde foi que erramos
Ou onde foi que acertamos?
Não é mais tempo de ver.

Já não importa mais nada,
A conta já foi fechada,
De subtrair e somar.

Fizemos o que fizemos,
Inteiramente nos demos,
Não temos mais o que dar.

Fernanda Lima

Em Fernanda Lima convivem o esotérico e o exotérico.

Conforto

Se queres mesmo conforto,
Mas conforto de verdade,
Que não te mate a ansiedade.
Só o terás quando morto.

Respeito

Nos cemitérios, o vento tem uma inusual delicadeza. Aprendeu a arte do sussurro com os mortos, é um deles agora.

A mentira

Escrevemos. Nossa desculpa é a de que talvez possamos dizer algo útil a alguém. E o que seria? Nossa vaidade, nosso orgulho, o prazer de ver todos os olhos voltados para nós?

Usurpador

Sempre me achei um usurpador dos meus irmãos. Eles se sacrificaram para que eu pudesse ir ao colégio. Desperdicei os recursos da família. Interessaram-me não os estudos práticos, com os quais talvez pudesse saldar minha dívida. Fascinaram-me os romances e a poesia, o álcool e as mulheres. Paguei com frutos gorados as generosas sementes.

Cotação do dia

Como devem cantar bem os pássaros quando seus cantos são os derradeiros. Pena não podermos ouvi-los. Sua voz já está comprometida com o recato que lhes impõe o reino das trevas.

Um poema de Emily Dickinson

"Vejo-te melhor no escuro.
A luz me é desnecessária -
Meu amor por ti é um prisma
Que o violeta ultrapassa.

Vejo-te melhor pelos anos
Que entre nós fazem curvas -
Do mineiro, basta a lâmpada
Para que a mina se anule.

E bem melhor te verei na tumba:
Suas estreitas galerias
Acesas serão - e rubras - com a luz
Que tão alta para ti tenho mantido.

Que utilidade há no dia
Para quem, em sua treva,
Um sol possui tão imenso
Fadado a pairar no Meridiano continuamente?"

(Do livro "Poemas escolhidos", tradução de Ivo Bender, publicado pela L&PM.)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Kama Sutra - DXI

Na cama, recorda a época em que, em vez de com água rala, regava com leite morno a relva jovem e dourada.

Quadrinha de uma cançoneta

Se houvesse justiça aqui
Onde justiça não há,
Seria teu marajá,
E tu, minha marani.

Um poema de Emily Dickinson

"Há uma zona de plácidos anos
E que nenhum solstício embaraça;
Seu sol produz um meio-dia perpétuo
E suas estações perfeitas aguardam.

Lá, o verão em verões se desdobra,
Até que séculos de junho acabem
Junto a séculos de agosto
E a consciência seja sempre plena tarde."

(De "Poemas escolhidos", tradução de Ivo Bender, publicado pela L&PM.)

Boa tarde

Há de ser boa a tarde. É uma das tantas obrigações natalinas. Que ela não nos faça uma desfeita. Que os filhos cheguem para as festas e que ao olhar para eles saibamos reconhecer que a vida nem sempre é tão ruim. Em janeiro voltaremos ao normal. Janeiro que se dane.

Kama Sutra - DX

Enquanto seu corpo sobe e desce, ele vai tentando descobrir a fórmula. Diz ah, ai, mais, diz ai, ah, mais, diz mais ah, mais ai, mais. Diz outras coisas, geme, implora, sucumbe gloriosamente, mas ainda não se revelou a ele o mistério do moto-perpétuo.

Kama Sutra - DIX

Sua língua tem sempre a pretensão de buscar o mais recôndito dos sais.

Kama Sutra - DVIII

Deita-se sobre ela sempre com a alegria de um menino que entra pela primeira vez no mar.

O suicida

O suicida tinha, ao menos na foto, uma perna mais comprida (ou uma perna mais curta) que a outra. Dava a impressão de no último instante haver tentado colocar as duas no piso. Se tivesse conseguido, no seu rosto talvez não houvesse a típica contrariedade dos enforcados.

Um dia

Um dia aprenderemos a não incomodar ninguém com a nossa tristeza. O aprendizado da tristeza deve conduzir à síntese do "ai".

Desforra

Todos foram para o mar. Daqui, ouço seus risos, o som da bola, as incitações: vai, pega, isso, manda pra cá. Daqui a pouco, voltarão. Quando forem para o chuveiro, deixarão um pouco de sol e areia na sala. Um dia eu irei para o mar. Será numa tarde de chuva. Eles ficarão aqui. Não levarei a bola. Me bastarão as ondas. Quando se lembrarem de mim, será tarde. Terei escapado. No dia seguinte, estourará na praia um magnífico sol. Eles, ocupados comigo, não poderão gozá-lo.

Nosso único número

Nosso único número não funciona. Se não fôssemos tão tolos, há muito tempo já saberíamos. Enquanto os outros tentavam e testavam tudo que lhes desse na telha, preferimos ir aperfeiçoando o nosso. Nossa cara foi ficando mais patética, nossas lágrimas mais copiosas, nossas queixas mais esmeradas. Sempre faltou algo ao número, ele nunca foi suficientemente bom. Tapinhas nos ombros, foi só isso que recebemos. Mas nós pensávamos, ah, um dia descobrirão como é bela nossa tristeza. E, no entanto, já a tinham descartado definitivamente desde a nossa primeira apresentação. Nunca nos disseram nada, porém. Ouvíamos os risos, os cantos, as exclamações da rua, enquanto num sótão miserável, como o dos abandonados de Charles Dickens, procurávamos fazer nossa tristeza parecer civilizada. A esses risos e cantos, a essas exclamações foram se juntando centenas, em todo esse tempo. É um som triunfal. Procuramos fechar os ouvidos e refazemos os gestos que poderíamos já repetir até dormindo. Depois, reabrimos os ouvidos e pensamos que os risos, os cantos e as exclamações são para nós. Curvamo-nos, agradecemos. É a melhor parte do nosso número, essa final.

Jamais tivemos

Jamais tivemos nada a oferecer. Nunca soubemos a letra de um sucesso, nunca sabíamos de quem falavam. Só nós, misteriosamente, nunca tivemos acesso ao dia de nascimento do cantor da moda, nem ao seu número de sapato. Quando um desvio premeditado dos outros nos deixava sós no caminho, sempre achávamos que os risos vindos do gramado eram, mais do que uma simples manifestação de prazer, um escárnio dirigido a nós. Nunca tivemos um cigarro para oferecer, uma garrafinha de rum. Nunca tivemos um pacauzinho. Sempre estivemos miseravelmente sozinhos e o amigo secreto que inventamos tinha um nome estranho: poesia.

Sempre fomos

Sempre fomos aquele que, do lado de fora, olhava para o baile e apurava os ouvidos para furtar sons. Sempre achamos, por defesa, que a orquestra tocava para nós e que o maestro ajudava a melodia a sair clandestinamente até o lugar em que, sem respirar, para não chamar a atenção dos cachorros, nós contemplávamos a mulher fatalmente loira dançando nos braços de quem não a merecia. Sempre fomos aquele que no final, quando os carros levavam todos embora, procurava ouvir de alguém quando seria o baile seguinte.

No fundo

No fundo, sempre achamos que a tristeza era o nosso único tesouro. Nós a mostrávamos aos outros, dizíamos: olhe, ela é assim, desse jeito, quer ver como funciona? Ninguém jamais quis apertar aquele botão que indicávamos, perto do coração. Nunca ninguém mostrou interesse. Voltávamos para casa, apertávamos o botão. Haveria algum problema na engrenagem? Tudo estava sempre perfeito. Levamos algum tempo para saber que era algo feito só para nós, algo que estávamos fadados a não dividir. Somos usurários, hoje. Quando abrimos o baú à noite, antes de dormir, lá está ela. E, antes de deitar, olhamos se tudo está bem trancado. Que não vá alguém querer apossar-se dela. Sabemos quanto ela vale.

Quando só temos

Quando só temos a tristeza para oferecer, vamos nos tornando desinteressantes. Depois de algum tempo, ninguém mais quer brincar conosco e, quando saímos à rua, as mães começam a chamar nossos amigos para dentro.

No início, nós

No início, nós nos lastimamos, choramos. Elogiam nossos desempenho. Naquelas marcações entre parênteses, não se indicava exatamente a intensidade da nossa dor. Mas nós somos bons nisso, é o que temos de melhor. Ah, quantos elogios. Como somos sensíveis. A estreia foi um sucesso. Depois, aquilo passa a ser banal e já na quinta noite alguém nos acha exagerados. Um senhor da terceira fila usa a palavra "histriônico". Nossa tristeza passa a incomodar. Imagine se agora nos tomam como exemplo e todo mundo precisa chorar assim por uma bagatela qualquer. Amor? Ah, conte outra.

Só é belo o...

... que é triste. Não sei se isso vale para os outros. O meu script é esse. Sempre um violino soando funebremente. Pelos seus sons é que aprendi a reconhecer a minha alma. Tenho pena dela, uma pena imensa. Se pudesse a ajudaria. As almas deveriam ser como os gatos. Talvez pudéssemos trazê-las ao colo, niná-las, pedir-lhes que acabassem com essa manha toda. Talvez adormecêssemos com elas.

O que há de belo em nós

Tudo que temos em nós há de morrer, sabemos. O triste é que morram todas as coisas belas e fiquemos, no fim, com todo o bagaço da vida. É cruel demais. Dizem que Deus conhece os Seus desígnios. Ele deve saber por que nos põe numa estrada cheia de sol, nos acompanha até as três primeiras curvas e nos deixa quando começa a escurecer.

Um sonho

Pego o gatinho cinza, tão novo e boboca, e o levo à tigela. Ele come estabanadamente. Distraio-me com alguma coisa. Quando vou pegá-lo, ele está estrebuchando. Involuntariamente, troquei as tigelas, e ele morreu comendo o meu veneno.

Literatura

Aprendi, com a literatura, que jamais conseguirei transmitir com ela a dimensão e a intensidade do meu tormento.

Uma questão de cheiro

Os urubus não sentem o cheiro da alma. Se sentissem, acompanhariam cada um dos meus passos - até dos que dou nos meus atormentados sonhos.

Convivência

Ter nojo de mim é algo tão antigo que já não me embrulha o estômago.

Soneto das pompas da morte

Sabemos já que viver
Tem os seus contras e prós,
E suas tramas e nós
É obrigação conhecer.

Sabemos já que morrer
Não é um castigo atroz,
Porém um prêmio que nós
Havemos de receber.

Que nós morramos então
Sob a festiva canção
Que saúda os vencedores.

E que merecer possamos
Todas as coroas, ramos,
E as fitas todas, e as flores.

Modéstia

Às vezes, somos atacados por uma modéstia que nos leva a chorar pelos cordeiros imolados sem que façamos uma alusão sequer a nós mesmos.

Os ouros

Como brilhava este pó. Que orgulho tínhamos dele: medalhas, troféus, ouro. Um sopro, hoje, o faria desaparecer e misturar-se aos outros ouros que o vento sopra para o esquecimento.

Silêncio

Não ter o que dizer deveria ser uma bênção. No entanto, é o inferno. Todo dia, toda noite, todo momento as palavras nos incitam a dizê-las. Somos escravos delas.

Cobrança

Até para enlouquecer é preciso ter, ou alegar, uma razão.

Trunfo

O livre-arbítrio pode não melhorar nossa vida, mas pode ser decisivo se nossa intenção é abreviá-la.

Cotação do dia

As horas de viver e morrer já passaram.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Gostaria que você entrasse aqui, agora, neste momento, e a gente tomasse um chá e conversasse. Aqui não há nada, a não ser a minha tosse. Ela é como um cão selvagem, que um dia me seguiu até em casa e se apegou a mim de modo muito desagradável. Na semana passada esteve mais selvagem do que nunca. Está chovendo, mas não é ainda a chuva do inverno."

(Do livro "Diário & cartas", tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

domingo, 22 de dezembro de 2013

Se tivéssemos

Se tivéssemos feito aquilo quando devíamos, seria um caso encerrado. Não estaríamos mais censurando nossa covardia. Se tivéssemos feito aquilo, a justificativa talvez tivesse colado. Parecia-nos boa, então. Se tivéssemos feito aquilo, a dor e as marcas da corda já teriam sumido.

O filme, a Polônia

Esta semana vi um filme. Logo às primeiras cenas, ele me impressionou. É difícil, cada vez mais, algo me impressionar agora. Parece-me que já vi tudo, já vivi tudo. No fim do filme, eu poderia dizer que estava encantado, se não estivesse completamente fascinado. Os créditos baixando sobre a última cena me deram uma explicação provável. O filme era "Escritor-fantasma"; o diretor, Roman Polanski. Novamente a ferida se abriu. Devo tanto à Polônia, esta tristeza, esta ingenuidade, tudo. Jamais eu a pagarei.

Kama Sutra - DVII

A ternura não é o momento em que as sementes começam a ser lançadas. São os outros momentos, todos os outros que o antecedem, sobretudo aqueles em que as sementes, por exigência do gozo, tardam a escorrer, retendo-se na ponta até que as palavras de amor se digam entrecortadamente.

"Santa Joana D'Arc num cartão-postal", de Margaret Atwood

"Aqui está Joana em seu lençol de penitência,
despida de sua armadura, o cabelo tosquiado,
envolta com uma corda
feito um pernil de carneiro desossado e amarrado,

com um chapéu que parece de papel,
de jornal, aliás, sem nada impresso,
um chapéu cônico de bobo.
Toda ela é pálida, mão, pés descalços,
vestimenta fina, extenuada e branca,
lívida como o centro de uma chama:
a presciência faz isso.

Algum clérigo ateando-lhe fogo.
Nenhum dos dois parece feliz com isso.
Uma vez acesa, ela queimará como um livro,
como um livro que nunca foi concluído,
como uma biblioteca trancada.

Seus dois anjos canhotos
e os lema ardentes
que sussurraram em seu ouvido -
Coragem! Adiante! Rei!
também vão queimar.
Suas vozes murcharão e serão sopradas longe
num rabisco de cinzas,
pedaços carbonizados de uma piada indecente
na longa e dissoluta narrativa
que as pessoas continuam a se contar sobre Deus,

e os espectadores na praça darão vivas,
incinerando-a com os olhos
já que todos gostam de uma boa fogueira
e um belo grito, algum tempo depois.

É você que a lê agora,
que lê o Livro de Joana.
Que ideia faz dela?
Joana, a mensageira presunçosa,
ou louca, ou esfera vítrea
contendo um capítulo puro e conciso
de uma história a que faltam as duas pontas?

Você vai improvisar alguma tradução,
você e a lâmpada da luminária em sua mesa,
você e seu olhar fixo e incandescente."

(Do livro "A porta", tradução de Adriana Lisboa, publicado pela Rocco.)

Esperarão...

... o amor berrar como um cordeiro. Farão com que declame todo seu repertório de estrofes caducas, versos mofados, rimas paupérrimas. Farão com que repita os trechos mais prosaicos de sua poética, para que gargalhem em dobro. Farão com que renegue Pessoa, Camões, Anna Akhmátova, Mario Benedetti e leia passagens de Carlos Zéfiro. Farão com que beba, para sua carne ficar macia, e, quando o vinho lhe subir à cabeça desacostumada, ordenarão que imite um bode copulando. Quando finalmente mandarem que chame Wislawa Szymborska de bruxa, ele implorará que usem logo o cutelo. Mas eles esperarão ainda um pouco. Os rituais devem ser seguidos. Qualquer homem civilizado sabe muito bem disso.

www.rubem.wordpress.com

Hoje falo de como os planos são importantes. Não podemos simplesmente errar. Devemos errar com base científica. Somos escravos da ética, da moral, da gramática, da lógica, da matemática. Diferimos muito pouco dos animais amestrados. Se fôssemos cachorros, precisaríamos latir seguindo a escala musical. E se regássemos os postes erguendo a pata direita, ou a esquerda, nós o faríamos de acordo com um conceito claramente definido.

O amor acostumou-se...

... a se confundir com o escuro. Só sai à noite. Esgueira-se, esconde-se, oculta-se. Tem vergonha de ser o que é. Se por acaso alguém o vê, o amor precisa fugir das gargalhadas e das pedras. Ele é o maldito que um dia ousou censurar os que se comprazem com o sexo e derramam champanhe nas coxas das mulheres e regam seu ventre e testam o sabor com a ponta da língua no umbigo. Foi espancado, escorraçado, renegado, mas todos estão atentos. Que ele não volte nunca, que não aponte o dedo para nenhum dos que têm a ciência de dedilhar, de manusear, de entrar, de penetrar, de mexer, de remexer, de dar novo sentido aos vocábulos sujos que excitam mais do que os versos de Camões. Que ele jamais reprima a arte dos que buscam o prazer com a saudável animalidade dos que não estão dispostos a ouvir balelas. Que seja banido para sempre, ele e sua rosa murcha que não entra mais em nenhum vaso sem se dobrar.

O amor colheu...

... no caminho uma flor e a levou à amada. Ela agradeceu. Já a sala estava repleta, para a ceia, e alguns dos convidados sorriram. O amor julgou ver nos sorrisos certo escárnio. Uma das mulheres balançou a cabeça. O amor perguntou à amada se ela não ia colocar a flor num vaso. Ela lhe pediu que ele mesmo fizesse aquilo, porque ela precisava pegar ainda algumas coisas na cozinha. A ceia foi agradável. O amor bebeu um pouco e logo se sentiu à vontade. Depois da ceia, todos começaram a abrir os presentes. O amor, que tinha deixado o jarro com a flor em cima da cristaleira, pegou-o e o entregou. "Ah", disse a amada, deixando o jarro de lado e pondo-se a abrir um pacote do qual saiu outro pacote e outro e outro, até o último. "Ah", disse a amada, beijando a amiga que lhe dera o presente. "Era disso mesmo que eu estava precisando." As duas riram. A amada apertou o botão e o objeto começou a vibrar. Ela se aproximou do amor e o beijou: "Obrigada pela flor. Você é tão gentil, sempre." O amor olhou para o rival, que continuava vibrando.

No Natal,

às vezes alguém atende à porta e deixa o amor entrar. Mostra-lhe a árvore, a iluminação que pisca com precisão chinesa, os enfeites, a mesa, já quase toda posta. O amor olha para o sofá. Quem sabe. Mas o anfitrião o leva para a cozinha e deixa o amor aspirar todos os cheiros. Os olhos do amor se enchem de lágrimas. O anfitrião pede enfim que ele se sente no sofá e espere. O amor tenta lembrar-se da última vez em que o trataram assim. Dali a minutos o anfitrião volta. Traz um prato, onde desponta uma magnífica fatia de carne e farofa, e um copo cheio de vinho. O prato é de alumínio, o copo é de plástico. O amor quer sentar-se à mesa. O homem, porém, o conduz gentilmente de volta à porta e só ali lhe entrega o prato e o copo. Já na rua, o amor retribui os votos de feliz Natal e quer sentar-se na calçada para começar a comer. O homem lhe diz que vá comer longe dali, porque seus convidados logo vão chegar, e gentilmente lhe diz que não precisa devolver nem o prato nem o copo. Que, por favor, se for jogá-los fora, os jogue bem longe.

Fernanda Lima

Fernanda Lima dispensa os adjetivos. É uma beleza substantiva. Um substantivo ao mesmo tempo abstrato e concreto. Completo.

Kama Sutra - DVI

Quando ele ainda está só pensando, pensa em tocar-lhe os seios. Quando os toca, toca em mamas, peitos. Enquanto os ordenha, ordenha tetas. E, ao ordenhá-las, sente afluir nelas, e nele, o perturbador leite que só o amor sabe engendrar.

Soneto da falsa surdez dos deuses

Os deuses têm o mau vezo
De jamais nos escutar
E o nosso culto pagar
Com seu divino desprezo.

Deixamos o altar aceso
Para os louvar e exaltar,
E para o fogo vingar
Arcamos com qualquer preço.

Para não nos retribuir
Eles fingem não ouvir
E fecham-se em seu desdém.

Ah, quem nos dera poder
Assim também proceder,
Fingir-nos surdos também.

Birras

De quem diz é como eu sempre digo, foi a vontade de Deus, ninguém foge do seu destino, vai por mim, eu sei muito bem do que estou falando.

Ciúme

O ciúme é uma dessas mesquinharias do espírito que todos nós cometemos.

Já não aspira a mais nada.
Já não o movem tesouros.
Não se eriça mais a espada.
É a época dos desdouros.

Praia

Diante dos meus olhos cansados e tristes, a juventude desfila com insolência. Se o sol caísse na areia, esses corpos o chutariam para longe. Estão naquele mês, o único na vida, em que pensam poder escarnecer dos deuses. Já amanhã ou depois, não estarão tão confiantes. As varizes serão ocultadas por um creme especial vindo da Dinamarca, mas teimarão em se exibir sob o impiedoso e vingativo olhar do sol. Outros corpos ocuparão a cena, para seu brilho também efêmero. O vento sopra e desmancha todas as tentativas de perenidade.

As cadeiras

Cumprimos já o papel que nos destinaram. Acabou a temporada, todos se foram, os atores, as atrizes, o diretor, o cenógrafo, a figurinista, o iluminador. Ficamos nós, ouvindo os homens que vieram medir coisas aqui. Ficamos sós, ouvindo os boatos de que tudo será demolido para a construção de um prédio de apartamentos. Quem há de nos querer, velhas cadeiras de teatro? Talvez venham a sentar-se em nós os corretores da imobiliária. E pensar que nesses trinta anos sentimos o calor de vilões, de vilãs, de princesas, de cortesãs. Bundas que tão prazerosamente acolhemos tramaram aqui conspirações, armaram ciladas, derrubaram impérios. Quem nos devolverá o frisson que tínhamos quando sentíamos o calor daquela que viria a ser morta pelo mouro? Quem saberá que guardamos ainda alguns fios de seus cabelos de puro ouro? Ah, Ionesco, só tu nos conheceste bem, só tu nos deste papel de protagonistas.

"O boneco de neve", de Wallace Stevens

"É preciso que a mente se faça inverno
Para olhar o frio e os ramos
Dos pinheiros encrostados de neve

E ter tido frio durante muito tempo
Para ver os juníperos, hirtos de neve,
Os toscos abetos no distante brilho

Do sol de janeiro; e sob o som
Do vento não pensar em dor alguma,
O som das poucas folhas,

Que é o som da terra,
Cheia do mesmo vento
Que sopra no mesmo deserto lugar

Para o ouvinte, que ouve na neve
E, nada sendo, nada vê do que
Ali não está e vê o nada que está."

(De "Antologia", tradução de Maria Andresen de Sousa, publicado pela Relógio D'Água, Lisboa.)

sábado, 21 de dezembro de 2013

Que, se um dia...

... nos reencontrarmos, façamos de conta que não nos conhecemos. Eu serei Fernando, tu serás Isadora, e nos diremos muito prazer. Que tenhamos uma hora, não mais, para conversar. Não falaremos daqueles dois que imaginamos ser. Não teremos passado, nem futuro, somente uma hora para sorrirmos como dois tontos, tomarmos um sorvete e nos despedirmos sem ter a presença de espírito de dizer o número do celular. Teremos só essa hora. Que Fernando e Isadora nos redimam e cada um de nós se lembre desse dia como só mais um dia, entre tantos na vida. Talvez seja algo que devamos em nome da paz de espírito. Fomos mortos pelo excesso de seriedade. Se pudéssemos ter sido Fernando e Isadora naquela manhã. Ah, como são bocós esses dois. Só eles conseguem sorrir por uma hora inteira. Claro que teremos a precaução de não deixar pingar sorvete - eu na camisa, tu na blusa. Nada há de nos tentar a reincidir no sentimentalismo. Guardar uma camisa, uma blusa manchadas de sorvete seria tão estupidamente piegas. Fernando não faria isso, nem Isadora.

Que amanhã

Que amanhã tenhamos conservado esta loucura que nos move. Que amanhã, como se ela fosse um macaquinho de nosso circo, ou o palhaço, nós saibamos fazê-la entreter o público e, se receber aplausos, que ela saiba como agradecer. Não temos mais do que ela. Dependemos do macaquinho, estamos nas mãos do palhaço e de suas palhaçadas. Essa loucura, que teimamos em não chamar pelo nome de amor, é o único número que temos para o público. No dia em que ela for vaiada, só nos restará esperar que não haja mais ninguém e saltar do trapézio. Quando chegar esse dia, pela primeira vez nos esqueceremos de estender a rede de proteção.

Da racionalidade no amor

Ser racional no amor é a mais gritante forma de não merecê-lo. O amor há de ter sempre algo de clandestino, mesmo que para isso se exija todo o esforço da imaginação. No amor há de existir sempre a possibilidade de um escândalo e em cada paletó se procurará um bilhete comprometedor ou um soneto que não passaria nem pelo controle de qualidade da academia de letras de Araçoiabinha.

Megafone

No entanto, amor, te vejo descer toda vez que passa o homem das pamonhas, e o da Cândida. Um dia, quando te aproximares de um desses caminhõezinhos, te surpreenderás: haverá um novo dono. A façanhas semelhantes já me obrigaste. Terás, naturalmente, um preço especial. Prepara teus sorrisos. Serão tua moeda, serão meu ouro.

Quando...

... passarmos a dormir bem, a não nos inquietar, a sorrir como os outros, estaremos prontos para renegar o amor. O amor há de ser sempre aflição, instabilidade, insegurança. O amor não dorme em redes, não coça a barriga pachorrentamente. O amor está sempre naufragando sem barcos de salvamento, pulando de décimos andares sem rede. O amor estará sempre se lastimando, tentando expressar-se em poesia. O amor estará sempre morrendo. O amor não é um piquenique. O amor há de sempre aspirar à eternidade, embora sabendo que a perenidade é mortal para ele como as traças dentro de um livro. O amor é fluido, frágil, perecível. É dessa efemeridade que se faz sua essência. O amor nunca será encontrado em álbuns de família. Nunca será apontado como vovô Pedro ou vó Lucinda. O amor é sempre o abençoado transgressor que não aparece em foto nenhuma, a não ser naquelas escondidas bem no fundo das gavetas, guardadas num envelope no qual se lê "selos" ou "receitas".

Que desta vez,

quando o amor se for, possamos nos dizer que fizemos tudo, mesmo, para retê-lo. Que não haja nenhuma dúvida sobre isso. Que tenhamos esgotado o que de melhor houver em nós, que sejamos ridículos, se for preciso, e patéticos, se necessário, e um pouco mais loucos, se conseguirmos. Que ele saiba que poderá nos pedir tudo, exigir tudo, e que tudo que dermos a ele seja tudo que tivermos. Que ele exerça o seu poder e nos submeta. Que, se nosso orgulho for ferido, seja por um ferimento mortal.

Sair pela noite...

... dizendo o nome do amor - e tão alto que ele não possa alegar, como sempre, que não ouviu. Que o nosso apelo ao amor tenha a força de uma manifestação e o desentoque e o faça sair à rua. Que ele venha direto para os nossos braços e que, depois de tanta provação, saibamos retê-lo como nunca soubemos, ainda que seja só pelo momento exato de guardarmos dele uma lembrança mais vívida que todas as outras. Que ele, ao nos deixar novamente, porque essa é sua natureza, possa levar no ombro uma de nossas lágrimas. Talvez essa mexa finalmente com ele, de um jeito que as outras não conseguiram.

Há sempre

Há sempre a possibilidade de uma loucura e, se os deuses quiserem, talvez nos toque viver a mais abençoada e amaldiçoada de todas elas: o amor.

Bico fechado

O que demos ao amor não confessaremos nem sob tortura. Ninguém acreditaria.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é fruto de um daqueles dias em que a natureza parece ter acertado a Megassena.

No asilo

Me perguntarão se não seria interessante montarmos uma peça. Eu contraperguntarei: não é isso que nós temos feito todo esse tempo?

Tankas de Takuboku Ishikawa

"Um infeliz encurralado
todas as noites
eu no coletivo lotado."

***

"O coração de minha juventude
foi-se embora voando levemente
como uma pipa cuja linha se arrebentou."

***

"Ainda em meus olhos a flor vermelha
estampada em todo o avental
o amor dos seis anos."

***

"Amofinados pela infância
meus olhos invejavam o pássaro
que em voo cantava."

(Do livro "Tankas", tradução de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicado por Roswitha Kempf/Editores.)

Natal

Que eu ganhe aquilo que mais falta me faz: a crença em minhas palavras. Que, quando eu me digo humilde, seja uma verdade e que, quando eu digo que sou pó, não seja só uma figura literária.

O jogo do antônimo

Sempre que eu disser que te odeio, que tenhas a sabedoria de entender que te amo. Quando eu depreciar tuas flores, que saibas que para mim não há mais belas, no mundo. Os reveses da vida me levaram a fazer este jogo, o da dissimulação. Sempre que entreguei meus sentimentos, eles foram exibidos em uma bandeja e sacrificados à meia-noite. É por isso que encho a boca e digo que te odeio e que tuas flores são desgraciosas. Mas não olhes para mim quando eu estiver dizendo isso. Meus olhos às vezes me traem.

Um susto

Levo um susto, diariamente renovado: Deus, quem me ama tanto na Malásia? É lisonjeiro, é quase uma bênção. Mas eu me vejo obrigado a avisar: eu não mereço, é um engano. Quem vocês estão achando que eu sou? De qualquer modo, tenho dormido um pouco melhor ultimamente. Mas fica a sensação de que me apossei de algo que não me era destinado. E, por não saber exatamente como proceder, digo obrigado.

Estamos

Estamos com os dois pés no passado. Pedimos socorro. Quem nos reteve aqui? Quando nos socorrem, nós nos debatemos. Queremos ficar. E, se nos afastam, um metro que seja, imploramos por compaixão, e voltamos ao exato lugar do nosso martírio: de que nos adianta escapar com o corpo, se nossa alma se obstina em ficar ali? Somos um vampiro, e o amor nos trespassou o peito com um punhal de prata e nos deixou plantados na terra. Somos uma flor, um marco, um exemplo. Venham nos ver, venham. Desculpem a baba em nossos lábios: é o sangue das palavras que pretendiam amaldiçoar o amor. Nunca as deixamos sair, nunca as deixaremos.

Nesta época

Nesta época, migalhas de amor costumam ser aceitas. Vêm embrulhadas em belos pacotes, e desatar os laços nos dá um prazer erótico. Que ninguém nos veja infelizes. Estamos no mesmo embalo de todos. Se for preciso, mostraremos a notinha do motel e o que as unhas escreveram em nosso corpo.

O amor

O amor poderia ter mudado tudo. Houve um momento em que ele pareceu capaz do milagre. Talvez não o tenhamos ajudado como deveríamos. Fomos covardes, e o amor se acovardou também. Hoje ele conta uma história triste, uma história de glórias não conquistadas. Ele se isenta de culpa. O amor assumiu nosso caráter e mente como um menino apanhado com um desenho que fez da professora. "Eu desenhei, mas não fui eu que escrevi 'chupo'."

Fernanda Lima

O rei Salomão chamaria Fernanda Lima de corça ou gazela.

Laudo

Jamais voltou a pensar
Numa morte façanhosa.
Quem irá isso esperar
De uma aorta ateromatosa?

Fernanda Lima

A OMS adverte: Fernanda Lima é desaconselhável para todos aqueles, de tenra ou provecta idade, que desconheçam o perigo representado por um surto de poesia.

Cotação do dia

A demência senil, patrimônio familiar, não é a única explicação para o meu caso. Há também os resquícios de um obstinado romantismo.

Fernanda Lima

Porte altivo é uma expressão antiga que só com Fernanda Lima ganhou seu melhor exemplo.

Um trecho de "Explorações", de Rula Wicknerd

Esses indígenas acreditavam que todos os cantos de guerra de sua tribo, desde as suas origens, ficavam retidos, sílaba por sílaba, nos galhos das árvores ao redor da aldeia. E que, na hipótese de ela vir a ser atacada, os sons, todos, se transformariam em vespas que afugentariam ferozmente os invasores.

Incredulidade

O texto publicitário de um desodorante tem me feito pensar na tristeza e no espanto que ele causaria na época do romantismo: as mulheres fortes transpiram.

Kama Sutra - DV

Como um cego, faz descer a mão pelas costas, chega à cintura e escorrega devagar pela encosta. No topo, a mão se detém, entre o gozo e o temor de resvalar pelo desfiladeiro. Como um cego, aventura-se cautelosamente, dedo a dedo.

Birras

De quem diz que o importante é a saúde, o resto a gente corre atrás; de quem diz que nada na vida vem de graça; de quem tem um provérbio para cada ocasião.

Soneto do barco e dos ventos

São vãos os barcos e os ventos
Se no trajeto que fazem
Os rumos não satisfazem
Dos nossos claros intentos.

Sejam velozes ou lentos,
A nós somente comprazem
Quando o percurso perfazem
Por um caminho ou por centos.

Que saibam cedo chegar
Se ao amor forem levar,
Se for o amor nosso norte.

E que saibam se conter,
E que saibam se perder,
Quando a meta for a morte.

Tanto faz

Chega um momento em que o mais
Vale tanto quanto o menos.
É quando agora ou jamais
É uma questão de somenos.

Recuperando expressões

Quem gosta de homem é estribo de bonde (décadas de 1950 e 1960.)

"O pequeno vagabundo", de William Blake

"Amada Mãe, a Igreja inverna,
Mas é quente e viva a Taverna;
E afirmo que tal alegria
Nos céus não terá serventia.

Mas se nos dessem lá na Igreja
Calor para a alma e Cerveja,
O dia inteiro louvaríamos
E de lá nunca sairíamos.

Ébrio, o Pastor pregaria,
Trazendo a todos euforia.
Nem mesmo a Beata, em sua inocência
Nos sovaria em penitência.

E Deus, ao ver em sua cria
A sua própria alegria
Com o Diabo faria as pazes,
Dando-lhe um beijo, álcool e trajes."

(De "Canções da inocência e canções da experiência", tradução de Gilberto Sorbini e Weimar de Carvalho, publicado pela Disal Editora.)

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Porque é Natal

Porque é Natal, compartilharemos tudo com os outros. O vinho, bom ou ruim, o panetone, as saudações de costume. No meio de um abraço desses bem de época, nos convidarão para aquele amorzinho descompromissado. Nós iremos. Há muito não somos o que somos. O amor, como tantas outras, é só uma palavra. Somos vis, canalhas, crápulas. Encobrimos tudo isso com o rótulo de pessoas do mundo, de gente civilizada. Somos seres sociais, e todos os que estiverem nessas festinhas poderão nos convidar para o sexo. Tomara que não sejamos escolhidos pela pior das pessoas presentes. Mas que alguém nos escolha, para que não nos caiba a iniciativa. Sempre escolhemos tão mal.

Nosso pó

Se o pó tivesse forma, negociaríamos a alma com o Diabo para que o nosso tivesse algo que o distinguisse dos demais.

A roda gira

Na última vez em que estive internado num hospital, uma senhora no quarto ao lado morreu. Tinha a idade que tenho agora.

O que restou

Só me restou a literatura. Que eu possa dar a ela meu último alento, meu sangue, o que eu ainda tiver de alma. Parece ridículo? Parece e é.

Questão de palavras

Êxtase, nas descrições de atos sexuais, deveria ser uma palavra reservada só a situações em que o amor fosse protagonista. Para os demais, gozo é suficiente.

"Retrato de mulher", de Wislawa Szymborska

"Deve ser para todos os gostos.
Mudar só para que nada mude.
É fácil, impossível, difícil, vale tentar.
Seus olhos são, se preciso, ora azuis, ora cinzentos,
negros, alegres, rasos d'água sem nenhuma razão.
Dorme com ele como a primeira que aparece, a única no mundo.
Dá-lhe quatro filhos, nenhum filho, um.
Ingênua, mas a que melhor aconselha.
Fraca, mas aguenta.
Não tem cabeça, pois vai tê-la.
Lê Jaspers e revistas de mulher.
Não entende de parafusos mas constrói uma ponte.
Jovem, como sempre jovem, ainda jovem.
Segura nas mãos um pardalzinho de asa partida
seu próprio dinheiro para uma viagem longa e longínqua
um cutelo para carne, uma compressa, um cálice de vodca.
Corre para onde, não está cansada.
Claro que não, só um pouco, muito, não importa.
Ou ela o ama ou é teimosa.
Para o bem, para o mal e para o que der e vier."

(De "Poemas", tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

Não te direi...

... bom dia, Fernanda. Que te digam os pássaros, se estiverem numa manhã inspirada.

Respirar Fernanda Lima...

... é conhecer o espírito imortal da brisa.

Dizer Fernanda Lima...

... três vezes funciona como um triságio: as nuvens assumem formas graciosas, os pássaros põem mel no seu canto e o sol sorri como naqueles desenhos de criança.

Fernanda Lima

A Terra gira em torno de Fernanda Lima trezentos e sessenta e cinco vezes por ano. A Terra ama os anos bissextos.

Fernanda Lima

Fernanda Lima seria a geometria, se a geometria se movesse. Fernanda Lima é a exacerbação gloriosa dos catetos e das hipotenusas.

Fernanda Lima

Fernanda Lima não é a musa. Seria muito pouco. Ela é o poema inteiro, com todas as palavras e as pausas para a respiração.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é um desses fenômenos explicáveis somente no âmbito da taumaturgia.

Cotação do dia

Fingimos ter importância. Damo-nos ares de grandeza. Tememos que a morte nos ache insignificantes demais para vir buscar-nos.

Febres

Existe uma luxúria vocabular, diferente da física, que pode nos consumir de maneira igual e às vezes até mais intensa. Se leio ou escrevo um texto que presumo erótico, sinto-me tomado por febres tão fortes quanto as que me atormentavam na juventude.

Reminiscência

Correu que a mais linda garota do bairro havia sido beijada por um garoto que era, tecnicamente, quase de outro bairro. Os detalhes foram se avolumando. Creio que havia mais criatividade neles - uma criatividade a serviço da autoflagelação - do que verdade. Cada um de nós, meninos ultrajados por aquele forasteiro, ia acrescentando alguma hipótese à cena. Às vezes perguntávamos ao presumível dom-juan se cada uma delas correspondia ao que acontecera. Ele, ladino, apenas sorria, como alguém que detivesse um conhecimento que é dado só a um, em um milhão. Tanto alvoroço por um beijo?, perguntarão vocês, como eu também hoje me pergunto. A verdade é que não pensávamos em nada além disso e, reinventando a cena, substituíamos os lábios dele pelos nossos, mas era sempre amargo o gosto. O beijo era a conquista máxima, definitiva, a transgressão suprema. Até hoje, quando penso na garota beijando o garoto forasteiro, sei que essa foi a primeira grande desilusão de minha vida. Na época, eu daria meu mais precioso bem - minha bicicleta Philips - para ter sido aquele garoto. Ela há muito se foi, e ele também imagino que sim. Quem sabe não tenham se beijado nunca, e a maior felicidade que gozaram terá sido, então, um delírio de meia dúzia de ressentidos garotos do Jardim da Saúde. A infância nos marca de forma indelével. Houve depois outros beijos que eu imaginei. Outros eram os protagonistas, mas o espírito da recordação era o mesmo: machucar-me. Machuquei-me muito, já adulto. Posso dizer que minha vida sentimental foi uma repetição do drama da infância: beijos ansiados, beijos não dados. Não existe, para mim, maturidade. A contabilidade amorosa dará sempre maior valor aos beijos que não passaram da intolerável expectativa. Ah, doce pássaro da juventude, cantas ainda na última curva do caminho!

Fernanda Lima

Esquivei-me de ver Fernanda Lima ontem. Se a tivesse visto, com que olhos olharia esta manhã? Que atrativo teria o sol? Ver Fernanda Lima há de ser um exercício esporádico e único, assim como a surpresa de um arco-íris.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é um dos mais consistentes argumentos daqueles que falam sobre a inefável beleza da vida.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é um espanto ao qual eu já pensava estar habituado, desde Brigitte Bardot.

O papel

A vida é uma peça estúpida e mal escrita. Mas nascemos já com o nosso papel garantido e o levamos até o final. Alguns pensam em livrar-se do fracasso e das vaias do último ato. Penduram-se numa corda, envenenam-se, fazem os miolos adornar a parede na qual pende uma natureza-morta. Esses não sabem que isso também estava previsto por quem escreveu o enredo, aquele que se esconde sob o pseudônimo de Destino.

Os protagonistas

O vício de ouvir histórias nos leva a querer escrevê-las. Daí a querermos ser os protagonistas há um passo. É nesse ponto que as histórias começam a se tornar falsas e interessantes.

Kama Sutra - DIII

Acordar agarrado a ela, como um náufrago à tábua de salvação. E beijar a madeira com volúpia, como se as horas de sol marítimo houvessem cozinhado meus miolos.

"O monte & o grão", de William Blake

"'O Amor não busca o Próprio agrado,
Nem por si mesmo tem cuidado;
Mas pelo outro tem esmero,
E cria um Céu no Desespero'"

Assim cantou um Monte de Barro,
Pisado pelos pés do gado;
Porém, um Grão do ribeirinho
Cantou seus versos direitinho:

'O Amor a Si quer agradar
E em outro alguém Se deleitar;
Alegra-se com a aflição alheia
E o Céu, num Inferno incendeia.'"

(Do livro "Canções da inocência e canções da experiência", tradução de Gilberto Sorbini e Weimar de Carvalho, publicado pela Disal Editora.)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Boa noite, Fernanda

Quem me dera ser o teu Quintana. Mereces tanto quanto a Bruna Lombardi (um tantinho mais, até). Quem me dera ser o teu Quixote, derrubar moinhos por ti. Sou só um poeta mais pra lá do que pra cá e, aqui entre nós, já um bocado louco, embora não me importe ensandecer mais um bocadinho, por ti. Não tenho mais o telefone do Verissimo. Se o tivesse, pediria que ele me ensinasse, com sua experiência de presidente do fã-clube Patricia Pillar, a criar o teu. As atas precisariam ser todas em versos - não os meus, evidentemente, mas quem sabe os de Dante ou Petrarca, desde que se mostrassem apropriados a louvar-te.

Fernanda Lima

Passei o dia sob o doce veneno de Fernanda Lima. Não contei, mas penso ter escrito uma dezena de textos sob sua influência. Deveria tê-los reunido, tirado os outros que postei hoje sobre assuntos anódinos e feito a primeira edição especial da história do blog. Quem sabe amanhã. O que me dizem de um título como "Sublime obsessão"? Pego carona em Mário de Andrade: "Ah, Fernanda, comoção de minha vida."

Soneto do envelhecimento do amor

Se visto como agora é,
Talvez ninguém predissesse,
Mas digo de boa-fé
Que o amor também envelhece.

Se infenso ao tempo parece,`
E às vezes eterno até,
O tempo jamais o esquece,
Maré sucede maré.

Se é carnal o teu amor,
Colhe-o agora, sem pudor.
Logo chegará o dia

Em que sua bunda enrugada
Com complacência forçada
Tu lavarás na bacia.

Fernanda Lima

Se Fernanda Lima é literatura? Se não for, pior para a literatura.

Loteria

As frases de ocasião, os achados, os berloques ainda atraem mais leitores que as obras erguidas com suor e pedra. Isso vai um pouco por conta da crença de que a arte mais meritória é aquela à qual o autor chega por um golpe de sorte, como se fosse um presente dos deuses.

Em cima

Viver mal, como gosto, eu sempre soube.
Estou com a vida que pedi ao céu.
A posição de vítima me coube
Sempre como uma luva, ou um chapéu.

Farsantes

Os aforismos possivelmente sejam os piores entre todos os farsantes que tentam passar por literatura. Os textos de autoajuda são filhos deles.

Um soneto de Pablo Neruda

"Outros dias virão, será entendido
o silêncio de plantas e planetas
e quantas coisas puras passarão!
Terão cheiro de lua os violinos!

O pão será talvez como tu és:
terá tua voz, tua condição de trigo,
e falarão outras coisas com tua voz:
os cavalos perdidos do outono.

Ainda que não seja como está disposto
o amor encherá grandes barricas
com o antigo mel dos pastores,

e tu no pó do meu coração
(onde haverá imensos armazéns)
irás e voltarás entre melancias."

(De "Cem sonetos de amor", tradução de Carlos Nejar, publicado pela L&PM.)