domingo, 30 de junho de 2013

Quem se desculpa...

... e não é desculpado, quem pede perdão e não é perdoado, sente-se como quem é expulso de um velório e atirado à rua, ao vitupério dos cães. Cabe-lhe aceitar isso como a definitiva lição de que seu erro foi muito maior do que o imaginado. Cada um de nós há de saber que existem atos irreparáveis e que todos nós podemos cometê-los. Colocar o erro assim, quase como uma fatalidade da espécie humana, nos alivia um pouco, se bem que seja também uma demonstração de covardia e até de astúcia.

Dormir é...

... sempre uma trégua, um simulacro daquilo que há de ser o grande descanso. Mesmo sofrendo os pesadelos com que a consciência culpada nos castiga, é bom dormir. A esperança já nos abandonou e há tempo não somos mais enganados por ela com aqueles sonhos que antigamente nos faziam sorrir. Ah, esperança, quanto engodo, quanta traição no teu verde. Um homem sabe que está irremediavelmente velho quando não apareces mais para ele de madrugada, com teus galhos sobrecarregados de frutos. É o tempo em que a verdade se instala na alma. Os pesadelos não mentem, são uma alegoria das trevas para as quais deslizaremos num dia cada vez mais próximo. Não importunaremos mais ninguém com aflições amorosas e maus poemas.

Manual

Dificilmente um aspirante a suicida encontrará livro mais belo e instrutivo que Os sofrimentos de Werther, de Goethe.

A inevitável hora do adeus

Aquele tempo dourado
Em que eu a ti me entreguei
Agora é um tempo, bem sei,
Infelizmente passado.

Eu guardo, ainda, bem guardado,
Tudo que então te falei
E se algo eu já deplorei
Foi mais não ter te falado.

Tudo passou, é normal,
Nada há que seja imortal,
Quem sabe nem mesmo Deus.

Eu tanto amor te pedi,
E agora o que imploro a ti
É que me digas adeus.

Um trecho de "Os sofrimentos de Werther", de Goethe

"Sinto-me capaz de rasgar o peito e de fazer saltar os miolos quando vejo como é difícil comunicarmos uns aos outros as nossas ideias, as nossas sensações, associá-los a nós mesmos de uma forma íntima. Ah! O amor, a alegria, o fervor e as delícias que eu não posso transmitir aos outros não podem eles comunicá-las a mim; e, com o coração inundado de ventura, não me é possível tornar feliz esse outro que ante mim se conserva frio e inerte!"

Farei de conta...

... que esta é outra tarde, antiga. Uma cuja lembrança me faça sorrir. Serei ficcionista em meu próprio benefício. Me imaginarei escrevendo um daqueles poemas que a alma me ditou, garantindo poderem fazer por mim o que acabaram não fazendo. Farei de conta que estou na estação Vergueiro, naquela tarde em que inventei uma estúpida esperança. Não estará chovendo, ainda, e eu ficarei, como fiquei, no topo da escadaria, ouvindo os passos subindo, adivinhando em cada par deles o anúncio da felicidade. Não haverá um final feliz nesta tarde imaginada. Começará a chover, como choveu naquela, e eu me deixarei encharcar como me deixei naquela. Há tipos inexplicáveis de felicidade - como o alívio que senti ao misturar as lágrimas com a chuva, naquela tarde. Chorar foi, em mim, a confirmação de algo precioso. Pergunto-me como posso ser assim tolo. E respondo-me com outra pergunta: e como posso deixar de ser? Pode o amor ser encarado como um fato cientificamente avaliável? Boa tarde

Hei de...

... morrer de ternura, de uma dessas ternuras bobas às quais dou tanta importância. Uma ternura inexplicável, descabida, como a que me toma quando vejo uma criança arrastada pela mãe porque não quer voltar para casa. Uma ternura infantil por um gato desconhecido que me dizem ter morrido atropelado na estrada de M'Boi Mirim. Uma ternura causada pela lembrança de um personagem de Dickens ou por dois acordes da pavana de Ravel. Hei de morrer de ternura pelo menino que fui, tão promissor, e que se transformou neste adulto execrável. Hei de morrer de ternura, ainda que não mereça.

Autocomiseração

Talvez eu deva, agora que o sol já quase sumiu no horizonte, ser condescendente comigo e ir glorificando as poucas passagens belas de minha vida. Não propriamente torná-las épicas, mas dar-lhes um colorido que naquele último momento - em que dizem passar dentro de nós um filme de tudo que aconteceu conosco - justifique nosso derradeiro sorriso. Ando pensando nisso. Só nos episódios do amor eu não precisarei de empenho para melhorá-los. Praticamente não venho fazendo outra coisa, e eles já foram tão maravilhosamente modificados pelo meu agradecido coração, que muitas vezes eu imagino se não serão de outro aquela história, aquele sol na avenida, aquela galeria, aquele café, aqueles livros na estante, aquela mão pegando um cuidadosamente para oferecer-me, como se ele fosse um passarinho.

Sofá

Quando conto para o meu sofá certas coisas que aconteceram comigo, sinto que ele me ouve só em nome da camaradagem que existe entre nós. No fundo, não acredita em muita coisa. Quando, por exemplo, enveredo pelo assunto de minha predileção, o amor, preciso ter o cuidado de deixar as mãos afastadas de sua pele. Se as mantenho nele enquanto conto certos episódios, percebo como são justificadas suas dúvidas. Podem elas ter tocado aquelas mãos que eu garanto ter tocado, ainda que tenuemente? Podem as mãos que eu lhe digo haver roçado ter-se mantido, ainda que por um momento, sob o triste contato daquela aspereza? Podem estas mãos dizer, como o vento das ruas baldias, que um dia sopraram as pétalas das flores da campina? 

Pago pelas...

... palavras erradas, pelos gestos equivocados, pelas ações, pelas omissões, por não ter conseguido mostrar-me como sou e por ter sonhado mais do que deve um homem. Pago por não ter sido quase nunca audacioso e porque, quando tentei ser, fui audacioso demais. Pago por ter sido incompetente, inábil, tolo, grosseiro e por tantas outras coisas mais. Pago por não ter sabido lidar com um tesouro precioso demais para mim. Ficou-me, das moedas que me escorreram por entre os dedos, um resquício de ouro que, no entanto, me aquece ainda as mãos e às vezes deixa nelas um início de febre que doura os últimos frutos que vou apanhando no caminho.

Justiça

Às vezes, sente que é injusto com a vida. Só lhe vê o lado ruim. Houve alguns bons momentos, ele deve reconhecer. Dez ou doze, pelo menos, como certa manhã dezembrina, como a revoada de pássaros dentro do seu peito, provocada pela chegada tardia do amor, e como aquele livro de Bernard Malamud que ele encontrou num sebo, por inacreditáveis três reais.

Especial

Pensa hoje que talvez não tenha sido amor, mas algo mais. Quando imagina isso, acende-se nele a suspeita de uma autopresunção. Mas imaginar que tudo possa ter sido menos que amor o magoa horrivelmente e o enche de culpa. Jamais saberá o que foi aquilo que por um instante brilhou em sua vida como os derradeiros raios de sol de uma tarde de severo inverno.

Contágio

Naquele tempo, eu já trazia a morte dentro de mim. Talvez por isso o amor tenha vivido tão pouco.

Soneto do amor larápio

Caminhava eu calmamente
Sem pensar nada ou supor,
Quando sorrateiramente
Cortou-me os passos o amor.

Esse doce malfeitor
Mostrou-se tão eficiente
Que me tornou seu credor
Após tornar-me indigente.

Seu furto eu agradeci
E meu caminho segui
Sem nunca vê-lo outra vez.

Ah, se revê-lo eu pudesse
E roubar-me ele quisesse
Como nesse dia fez.

Amor - Propriedades

Até a má poesia pode ser considerada um dos nobres subprodutos do amor.

Etiqueta

Não sei por que eu deveria procurar a verdade. De todos aqueles com quem falo, nenhum jamais se disse mentiroso. Buscar a verdade seria um ultraje a eles.

Pulôver

Ontem à tarde, embora não fizesse frio, saí do sofá e fui pegar o pulôver no armário do quarto. Depois de vesti-lo é que me perguntei por que fora buscá-lo. Era óbvia a resposta. Foi um gesto de afeto que me proporcionei, assim como à vezes faço café, embora não tenha vontade de tomá-lo. Encolhi-me no pulôver, abracei-me e tão bem me senti que cochilei. A sensação que tive deve ter sido semelhante à de um gato quando o dono, seja qual for a temperatura, ajeita o cobertor sobre ele.

O nome

Uma tarde, o mais taciturno dos velhotes desandará a falar comigo e a me contar episódios de sua adolescência. Falará de uma namorada, a primeira, e contará como tudo nela era bonito, o rosto, a boca, os olhos. Até o nome. Era um nome suave, ele me dirá, desses que designam flores. Começará a chorar, então. Eu lhe perguntarei que nome era. E ele: "Eu me esqueci."

Um trecho de Goethe

"Tenho tantas coisas em mim, e a minha adoração por ela tudo destrói! Tantas coisas, e, sem ela, tudo isso é nada! Quantas vezes tenho estado prestes a apertá-la nos braços! Só Deus sabe quanto me custa ver tantos encantos passarem-me por diante dos olhos sem que me atreva a estender os braços para eles! E, não obstante, o instinto natural da humanidade é colher. As crianças não agarram tudo o que podem? E eu?..."

(De Os sofrimentos de Werther, publicado pela Jackson.)

sábado, 29 de junho de 2013

O amor é o ...

... maltrapilho que toca nossa campainha num daqueles dias em que a tristeza está sentada em nosso sofá. Levamos a ele um sanduíche caprichado, um copo de refrigerante e, em vez de o deixarmos ir, permitimos que ele nos conte uma história. A história é longa e, com pena de seu cansaço e para que nossos vizinhos não nos julguem impiedosos, nós o convidamos a entrar. Ele mostra ser bem despachado, entra e logo se acomoda no sofá, atirando ao chão a tristeza. Enquanto come e bebe, vai contando sua história. Quando a acaba, pensamos: como pudemos viver tanto tempo sem ele? No mesmo dia ele diz preferir o lugar que sempre ocupamos no sofá e, depois, na cama. Achamos maravilhoso, isso. Uma mudança nunca vem sozinha. Dali a alguns meses, dizemos a todos, com orgulho, que aquela casa não é mais nossa, é a casa do amor. E uma tarde, quando voltamos do trabalho, tocamos a campainha, tocamos, e o amor demora uma eternidade para nos espiar pela janela e dizer: "Não dou esmola. É uma questão de princípios." Continuamos tocando, tocando, até descobrir que o amor, se por acaso nos deixar entrar, nos receberá com sua segunda identidade: a máscara da compaixão. E tentamos nos lembrar para que vizinho nós demos nossa tristeza, que bem nos serviria, embora de segunda mão.

A tristeza do mundo

Com aquilo que aprendemos com os poetas, queremos dar conta da tristeza do mundo. Deus saiu da sala de aula e nos deixou encarregados de anotar todas as lágrimas, todos os gritos de desespero, todas as queixas. Prometeu voltar logo, mas estamos aqui há tanto tempo que desconfiamos, já, ter recebido ordens de um impostor. No início, olhamos para os nossos colegas de classe, para registrar suas aflições. Depois, fomos descobrindo aos poucos nossas próprias dores e nos esquecemos das dores alheias. Choramos há milênios, Deus não volta, não vimos nesse tempo todo chegar uma só mãe com um lanche ou palavras de conforto. Os livros que Deus nos deixou nos falam da beleza do mar, das montanhas, do amor e das flores. Mas estamos condenados a esperar que Ele volte. Só Ele pode nos liberar do castigo. Enquanto isso, nosso entretenimento é saber quem de nós sofre mais. Há alguns que mentem para ganhar o jogo.

A tristeza,

assim como outros grandes sentimentos humanos, jamais se deixa expressar por inteiro. Ela é como uma ilha permanentemente cercada pelo nevoeiro. As palavras a contornam, tentam penetrar no seu âmago, mas nunca avançam até o centro, ali onde a suprema dor flagela os homens. Alguns conseguiram dar uma espiada por entre a névoa, mas o que viram e os inquietou tampouco se deixou apreender pelas palavras. Muitos enlouqueceram na tentativa de exprimir essa beleza, bem mais consistente e digna do que a alegria. Penso em Robert Walser especialmente, reconhecendo a derrota e declarando-se, a partir dali, simplesmente um louco, não mais um escritor. Outros ensandeceram por se dedicar ao mesmo projeto. Retratar a tristeza é como pegar um punhado de areia no deserto. E, mesmo que tivessem obtido êxito nessa tarefa sem propósito, de que lhes adiantaria isso? Eles partiam da pressuposição de que aos homens interessaria saber o que se passa com os semelhantes, ainda que fosse o pior. Esse é o engano em que tantos incorreram. E, no entanto, quantos artistas continuam berrando seu alucinado amarelo van-goguiano para o mundo.

A linguagem do adeus

Sinto que nos veremos ainda uma vez. Gastamos já todas as palavras e conhecemos a inutilidade delas. Por isso, apenas nos olharemos, não importa se por um minuto ou por uma hora. Sabemos o essencial sobre nós, temos a convicção de que tudo valeu a pena e nos olharemos como quem aprendeu que as melhores palavras, na hora do adeus, são a linguagem líquida e silenciosa dos olhos, como uma garoa esmaltando de verde o gramado.

Ala terminal

O amor é uma garota desenganada que pede para ir ao jardim do hospital para ser tocada pela última vez pelo sol.

Livro

Folheei hoje um livro que me deste, e as páginas, estranhando a aspereza de minhas mãos, perguntaram onde estavam as tuas.

Estrela - Manual de instruções

Numa noite quente, em que nos deixarem ficar um pouco na varanda do asilo, uma das mulheres, contemplando o céu, dirá que seria bonito ver uma estrela cair. Dali a um momento, será como se a estrela tivesse caído. Estudaremos um plano para escondê-la, a fim de que ela seja só nossa, e começaremos a fixar normas para que cada dia um de nós cuide dela. Um dos velhotes, tido por alguns como louco e como poeta por outros, perguntará de que se alimentam as estrelas.

Oruro, São Paulo

Meu Deus, que mal nos fizeram os meninos bolivianos, para nós os tratarmos assim?

Um trecho de J.M. Coetzee

"Não que os animais não se importem com o que sentimos por eles. Mas quando desviamos para as palavras a corrente de sentimento que flui entre nós e o animal, nós a abstraímos  para sempre do animal. Assim, o poema não é um presente para o seu objeto, como o poema de amor. Ele fica dentro de uma economia inteiramente humana, da qual o animal não participa."

(De Elizabeth Costello, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

Eu poderia

Eu poderia me apaixonar por alguém que fosse suave e doce, que sorrisse com timidez, como se receasse ser vista como presunçosa. Eu poderia me apaixonar por alguém que gostasse de animais, principalmente de gatos, e conservasse ainda, na idade adulta, alguns dos impossíveis ideais da meninice. Eu poderia me apaixonar por alguém que tivesse uma voz que acordasse em mim instintos de arte e me levasse a metáforas de beleza. Eu poderia me apaixonar por alguém que de vez em quando sorrisse, apesar de tudo que tivesse sofrido, e que, quando chorasse, chorasse lágrimas que fossem irmãs das que choro. Eu poderia me apaixonar por alguém que às vezes falasse vagamente em suicídio, mas que no momento seguinte me pegasse a mão e tentasse me convencer de que, pelo menos naquele momento, chamar a vida de bela seria a mais plena das verdades.

Louvor

Beleza, é em teu louvor
Que os astros brilham de espanto,
Que as rosas nascem de encanto
E os homens morrem de amor.

Kama Sutra - CCI

Uma sensação antiga aflorou-lhe hoje à língua. Demorou alguns minutos para identificá-la. Lembrou-se de uma noite em que, repelido pela mulher amada, e mais estimulado ainda pela recusa, não podendo beijar-lhe o rosto, porque ela se esquivava, beijou-lhe o braço enquanto ela a todo custo tentava desvencilhar-se. No sal que hoje a língua lhe relembra, há uma suave aspereza de blusa e de cotovelo.

Amor ou ideal

Queremos, queremos, queremos. Pequeno é o mundo para tanto querer. Quando essa obsessão se torna maior do que nós, nós astuciosamente a chamamos de amor ou ideal.

Carona

Os passarinhos mortos que vemos são aqueles que a maldade humana abateu. Os outros, quando chega sua hora, pegam carona numa nuvem, de preferência bem clara, e se vão.

Como as flores

Deveria ser-nos dado morrer como as flores, sem um protesto, embora o vento bisbilhoteiro insista em lhes perguntar se estão sentindo alguma dor.

Algo que Deus deveria ter concedido aos gatos

Tão majestosamente belos são os gatos que ao menos a eles Deus deveria ter isentado daquela grosseira necessidade, se bem que eles sejam graciosos até quando a ocultam com areia.

Kama Sutra - CC

No sonho, quando tem sorte, encontra alguma putinha de Dalton Trevisan, paga-lhe um pastel e um caldo de cana e ganha o direito de chupar-lhe o precioso dente de ouro, enquanto ela liberta da braguilha seu pardal alvoroçado. De manhã, quando acorda, antes do primeiro acesso de tosse, por uns segundos sente-se quarenta anos mais jovem.

Aspiração

Que triste deve ter sido a vida de um homem, se a sua única aspiração é a morte.

"Filhos da época", de Wislawa Szymborska

"Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discuta por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A moça da cozinha

Com o tempo, a moça da cozinha, encarregada também de colocar a comida no prato dos velhinhos do asilo, me protegerá nos dias de canja, e me dará dois pedaços de pescoço. Esperarei que ela se afaste, antes de deixar escorrer as lágrimas para dentro da sopa.

Morreremos...

... de alguma causa prosaica, embora tenhamos nos esforçado tanto para morrer de amor. Se houvéssemos ouvido o apelo das facas, das balas, dos venenos, das lâminas, dos viadutos, estaríamos agora livres do pesadelo diário que nos atira à solidão de uma UTI ou ao lento definhar num asilo, fazendo apostas com os outros velhos para ver quem será o primeiro a escapar confortavelmente deitado no carro escuro.

O asco

O asco é um método de avaliação muito eficaz. Quando o sentimos ao nos ver no espelho, estamos sempre mais perto daquilo que os outros pensam de nós, embora face a face eles nos elogiem e vejam maçãs em nosso rosto, quando ele não passa de um solo áspero e sáfaro.

Com a idade...

... e a vivência, amplia-se nosso vocabulário: ateroma, trombose, espondilite. E pensar que, até pouco tempo atrás, se morrêssemos, nossa causa mortis responderia pelo simpático nome de amor.

Soneto do dia perfeito

Se o amor ainda nos quisesse
Como quis naquele dia,
Ouviria nossa prece
E decerto a atenderia.

De novo o sol brilharia
Que nenhum de nós esquece
E à nossa melancolia
Ainda por vezes aquece.

Se o amor ainda nos prezasse
Talvez um modo arranjasse
De aquele dia voltar.

E depois de ter refeito
Aquele dia perfeito
Faria o tempo parar.

Dois jovens na calçada

"Ih, vamos mudar de calçada, rápido. É aquele velho chato."
"Velho chato é pleonasmo."
"É. Vamos, senão ele segura a gente pra falar daquelas coisas do tempo dele. Qual era aquela de ontem, mesmo?"
"O bonde?
"Não. Aquela outra, como era mesmo o nome?"
"Amor?"
"Isso. Amor. Vamos."

Madrugada

A lagartixa percorre cautelosamente a tela. Por um momento, fica sobre a lebre, como se fosse substituí-la. Mas, com a sala às escuras, o caçador cochila e sua espingarda não acordará ninguém na casa.

Um poema de Lawrence Ferlinghetti

"Há um rosto que a escuridão poderia assassinar
                                                                 num instante

                 uma face fácil de ferir
                                              por riso ou luz
                                 "De noite pensamos diferente"
                                                         ela me disse certa vez

                  recostando-se lânguida
                                          E poderia citar Cocteau
"Sinto que há um anjo em mim", ela diria,
                                                      "que escandalizo constantemente"
                        Sorriria então enigmática
                                     acenderia meu cigarro
                                                             entre suspiros
              e erguendo-se mostraria
                                                   sua bela anatomia
                                                                           deixando cair uma meia."

(Do livro Poesia beat, tradução de Sergio Cohn, publicado pela Azougue.)

Diálogo

"Bom dia. O amor está?"
"O amor? Não, ele se mudou."
"Para onde, a senhora sabe?"
"Não, o senhor sabe como o amor é. Não disse para onde ia."
"Faz tempo isso?"
"Foi em 2010. O que foi? O senhor está pálido."
"Nada, não. Estava pensando que vivi três anos à toa."

Um dia...

... nada disto terá importância. Ao esvaziarem a casa, para alugá-la, os filhos escancararão as gavetas, incluindo aquela, e de lá não sairão rosas, nem rimas, nem as palavras que o coração em febre ditou. Escaparão da gaveta, com o mofo, papéis velhos, podres já, que um dia falaram de um sentimento grandioso, maior do que a vida.

Inferioridade

Quando penso que decerto há homens muito mais tristes do que eu, sinto que essa é uma de minhas mais deploráveis inferioridades.

Se eu topasse...

... em meu caminho com um bom dia, não saberia o que fazer dele. Talvez o trouxesse ao colo, como se fosse um gato, talvez lhe arranjasse um lugar ao meu lado, no sofá. O que se faz com um gato repentinamente encontrado? Há responsabilidades para as quais os homens tristes não estão preparados. Talvez o gato morresse no meu colo ou no meu sofá. Os homens tristes não servem para nada, nem para reconhecer e agradecer a bênção de um bom dia.

Da generosidade do amor

É generoso o amor. Sempre nos dá mais corda do que aquela de que precisamos para nos enforcar.

Pode ser perigoso...

... um bom dia. Às vezes, bastam um desvio, um excesso, uma festinha aparentemente inofensiva, um copinho de cerveja na hora errada e lá está um homem honesto estragado para o resto da vida.

Clamor

Clamamos
bradamos
chamamos
de madrugada
a madrugada

Inútil é o nosso clamor

Assim como o amor
a morte é surda
ou se faz de rogada.

Vício

Aquele que um dia injetou nas veias o amor nunca pode se dizer curado. Passem quantos anos passarem, um dia ele ouvirá uma canção, verá numa estante de livraria determinado livro, terá no meio da multidão a visão de uns cabelos tocados pelo fulgor do sol - e precisará cravar as unhas nas palmas para resistir ao impulso de pegar a seringa e novamente introduzir no corpo o veneno que lhe dá vida enquanto amorosamente o mata.

O embrulho

Encontraram o amor embrulhado num cobertor fino, na margem do rio que recebe o esgoto das casas vizinhas. A quem o levou até ali faltou a coragem de atirá-lo ou fazê-lo deslizar até a água escura. Era um desses amores bem jovens, de rosto ainda indefinido, e a mulher que o salvou disse que talvez fosse melhor tê-lo deixado ali, para preservá-lo dos sofrimentos que por certo estavam destinados a ele.

Autoajuda

Uma frase se formou espontaneamente em seu cérebro: "Como eu gostaria de estar morto." Ele sorriu: "Eu também."

Soneto dos inúteis apelos

Quando eu chamava por ti,
Andavas pelo Gabão,
Viajavas pelo Taiti,
Pela Índia, pelo Japão.

Sempre que ajuda eu pedi,
Tu me disseste que não.
Cuidavas de órfãos no Haiti,
Na China, no Paquistão.

Enquanto eu agonizava,
A tua missão se ampliava,
Se estendia aos animais.

Ah, por ti eu chamei tanto,
Sabes, melhor do que eu, quanto.
Hoje não te chamo mais.

O épico em Wislawa Szymborska

As epopeias de Wislawa Szymborska não precisavam de campos extensos, de imensos territórios, e seus participantes podiam ser um tapete, um filete de sol, um gato espreguiçando-se no sofá. Sua poesia nunca exigiu nada mais grandioso que isso. Coisas como um bocejo do gato ou a audácia do voo de uma mosca, da persiana para a mesa da sala, sobre uma perigosa jarra de água, davam à cena o tom épico.

Tanto para quê?

Tanta trigonometria,
Tanta hipotenusa, abscissa.
No fim, a longa agonia,
A morte, o velório, a missa.

Pequenez

Olho para as formigas e penso por que Deus não nos fez assim, pequenos. Não conheço uma formiga barriguda, jactanciosa, literata, cineasta. Não conheço nenhuma que ambicione o Oscar ou o Nobel.

Véus

Buracos, fendas, grutas. Essa nomenclatura, própria de geólogos e espeleólogos, causa escândalo em livros eróticos, fazendo-os decair para a condição de pornográficos. E, no entanto, quantas belas palavras de famosos poemas de amor há que, sob sua pura aparência, não são mais que eufemismos de buracos, fendas e grutas.

Um trecho de Elfriede Jelinek

"Mas durante o ato sexual nenhuma mulher preserva a grandeza por muito tempo. Não demora para que os jovens senhores se permitam liberdades encantadoras, que continuam também ao ar livre. Ninguém mais abre a porta do carro. Ironias sobre certas faltas de habilidade são despejadas. Em seguida, mente-se para a mulher, tortura-se, não se telefona com frequência. Propositalmente, não se esclarece quais são as próprias intenções. Uma ou duas cartas ficam sem resposta. A mulher espera, mas é inútil. E ela não se pergunta por que está esperando, pois teme a resposta mais do que a espera. E enquanto isso o homem, decididamente, deixa outras mulheres, em outra vida, se acostumarem a um tratamento."

(Do romance A pianista, tradução de Luis S. Krausz, publicado pela Tordesilhas.)

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Nosce te ipsum

Gastamos a vida inteira para descobrir, pela conduta dos outros, como o ser humano é desprezível. Se em vez disso voltássemos os olhos para nós mesmos, faríamos essa descoberta bem mais rapidamente.

Falsidade

A literatura, a música, a pintura não nos representam. A arte é tão melhor do que nós que, se provar alguma coisa, será apenas a nossa falsidade. Todo artista, quando mostra como poderíamos ser, nos trai, pensando atrair a simpatia dos deuses.

Benemerência

Enquanto meu rosto esperava por elas, tuas mãos, em todos os continentes, acudiam órfãos que eu abominei com toda a força do meu coração.

Soneto da doce amargura

Não pensa certo quem pensa
Em todos os sonhos pôr
Nos braços frouxos do amor.
Não há mais errônea crença

Do que essa, de se supor
Que para a tristeza imensa
Ele nos dê recompensa,
Alívio ou seja o que for.

O amor, por definição,
Só tem uma obrigação,
Que é a de nos afligir.

Ver nessa aflição doçura
Ou simplesmente amargura
A nós cabe decidir.

A escolha

Nosso prazer, além do chá, das pantufas e do recém-descoberto conforto de dormir com meias de lã, é olhar os folhetos em que nos oferecem a tranquilidade de que necessitaremos quando estivermos mortos. São cemitérios de nomes belíssimos, como Jardim dos Eucaliptos, Bosque dos Pinheirais, Último Refúgio. Alguns de nós já se decidiram pelo crematório, mas será mesmo a melhor escolha? Entre virar fumaça e decompor-se na terra, nosso coração balança. Quem sabe possamos transformar-nos ainda numa flor, numa rosa. Precisamos decidir logo.

Um trecho de Elfriede Jelinek

"Quem é sensível acaba se queimando, como uma delicada borboleta noturna. E é por isso que esses dois compositores extremamente doentes, Schumann e Schubert, cujos nomes começam com a mesma sílaba, são os que estão mais próximos de meu coração arruinado. Não aquele Schumann de quem já escaparam todos os pensamentos, mas o do período imediatamente anterior. Quando ele já estava quase louco. Ele já intuía a loucura, já sofria com ela em suas mais tênues veias, já se despedia de sua vida consciente por meio de coros de anjos e de demônios, mas ainda resistia uma última vez, embora não totalmente consciente de si mesmo. Trata-se de um último auscultar atento e saudoso, e do luto pela perda do bem mais precioso: de si mesmo. A fase na qual ainda se sabe o que se está perdendo, antes de se entregar totalmente.

(Do romance A pianista, tradução de Luis S. Krausz, publicado pela Tordesilhas.)

Há de ser um bom dia,

por que não? Às vezes, impossibilidades se tornam possíveis e ter um bom dia talvez não seja um milagre, se tanta gente diz que é uma ocorrência cotidiana.

Kama Sutra - ICC

Na última das vezes em que ele a estendeu sobre o colo, lhe ergueu a saia e encheu de palmadas suas nádegas, ela lhe negou os gemidos de sempre, e ele, buscando obstinadamente arrancá-los, pôs tanta fúria na mão com que nela batia que um de seus dedos, quebrado, o fez gemer. Também ela, então, começou a lhe dar os gemidos que ele buscara. Nunca repetiram o ritual. Sabiam que jamais voltariam a ter prazer semelhante.

Cotação do dia

Cultivar a tristeza nunca nos traz decepções. A colheita é sempre certa. Mas, se um dia ela vier a falhar, cultivar a alegria dá praticamente no mesmo, ainda mais se a esse cultivo se acrescentar o do amor.

De Rosa Montero, sobre Oscar Wilde e lorde Alfred Douglas

Tudo havia começado em 1891; foi então que Wilde conheceu lorde Alfred Douglas. Bosie, como era chamado por todos, tinha 21; Wilde, 37. Douglas era liso, lânguido, egoísta, vaidoso, frívolo, violento, malvado. Também era louro e com grandes olhos azuis, mas, a julgar pelas fotos do magnífico livro ilustrado de Juliet Gardiner, não era grande coisa. Posa, nos retratos, com uma triste cara de mártir virginal, à la Joana D'Arc, todo ansioso por heroísmo, principalmente se o tormento fosse infligido a outro: como de fato foi. Não valia nem a poeira dos sapatos de Oscar, mas que importa? O amor não passa de vontade de amar. E a vontade de Wilde era comovedora, trágica, total."

( De Paixões, tradução de Maria Alzira Brum Lemos e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)

Hélade

Tudo que dizemos ou fazemos, algum grego disse ou fez melhor, há milênios.

Ouvidos

Um dos nossos ouvidos é para ouvir os jovens e seus projetos irrealizáveis. O outro é para ouvir os velhos e seus projetos irrealizados.

Afeto de mãe

Quando eu, com pouco mais de dez anos, disse à minha mãe que pretendia ser escritor, ela achou isso perfeitamente possível. Se eu lhe dissesse que meu desejo era ser astronauta, ela me apoiaria também, embora na época nem se falasse de viagens espaciais. Afeto de mãe há de ser sempre considerado com todas as restrições e suspeitas, e mais algumas.

O próximo

Por convicção ou simplesmente porque a frase soa bem, quanto mais longe de mim estiver o próximo, mais serei capaz de amá-lo.

Soneto dos sonhos humanos

Enquanto os homens se empenham
Em alimentar seus sonhos,
Os deuses deles desdenham.
Sabem como são bisonhos

Os homens e os seus ideais
E como, sendo pequenos,
Quanto mais almejam, mais
Se satisfazem com menos.

E sabem que seus castelos
Quanto mais parecem belos
Mais desmoronáveis são.

Quando os homens os constroem
Os deuses logo os destroem
Com um simples assoprão.

Os velhos

Como os velhos seriam suportáveis se não tivessem feito tantas coisas, se não tivessem sido secretários de escola, cozinheiros da marinha, salva-vidas, enfermeiros em campos de batalha e não lhes agradasse contar sempre as mesmas histórias, como se cada versão fosse um carimbo de validade.

Eufemismos

Quantas vezes, em todos os tempos, os olhos, os lábios e os cabelos das amadas foram cantados e decantados porque aos poetas faltou coragem, ou sobrou delicadeza, para nomear aquilo em que realmente pensavam.

Passo adiante

O próximo tende sempre a se tornar promíscuo.

História

A poesia começou a se mostrar um pouco mais como era quando se livrou dos pontos de exclamação, adornos dos românticos, e das reticências, penduricalhos dos simbolistas.

Um poema de Michael McClure

"O MISTÉRIO DA CAÇA

            É o mistério da caça que me intriga.
     Que nos impele como lemingues, mas cautelosos -
 Em busca de uma cintilante nuvem quadrada - cheiro de limão verbena -
      Ou aprender as regras do jogo que a lontra marinha
                                          Pratica nas ondas.

    São essas coisas mínimas - e o segredo por trás delas
                                Que enchem o coração.
                O padrão, o espírito, o demônio ígneo
                                     Que as une
            E empurra sua liberdade para nossos sentidos.

         Aroma de arbusto, uma nuvem, a ação dos animais
      - A elevação, a exuberância, quando o mistério se revela.
                                    São essas coisas mínimas

                          Que trazidas à visão se tornam um inferno."

(De Poesia beat, organização Sergio Cohn, publicado pela Azougue.)
                 
    


quarta-feira, 26 de junho de 2013

Que eu possa...

... manter esta indiferença que há três dias convive comigo e me dá uma paz que fazia muito tempo eu não desfrutava. Que ela conserve a tranquilidade de minha alma e a frieza do meu coração, até que eles já nem saibam se estão vivos ou mortos. Desapegar-se é libertar-se. Que tudo continue assim. Que minha indiferença possa olhar-me com seu olhar vesgo e que babe quanto quiser. Já era hora de me mostrar como sou.

Soneto dos bons e dos maus momentos

Com toda a justiça ou sem,
Todos os momentos vãos e
Os mais valiosos também
Ou já se foram ou vão-se.

É assim a vida. Nem bem
Chegam os instantes bons e
Os maus com eles logo vêm
E os maus aos bons sobrepõem-se.

Nada na vida é fortuito,
Nada na vida é gratuito.
A cada gozo gozado,

A cada escasso prazer,
Vem nossa aflição de ter
O nosso prazer cobrado.


Viagens

Meu sofá é meu barco. Entro nele, com meus livros, e viajamos. Não há mais piratas como antigamente, nem as procelas que convulsionavam os oceanos e os juntavam ao céu. Hoje não me empenho mais em abordagens, em lutas nos conveses. Minhas viagens são interiores, mornas, chochas, lembranças de trivialidades, e, nos livros que agora leio, se algo morre não são piratas nem marinheiros, mas ninharias como ilusões, esperanças, ansiedades e - a mais patética de todas - o amor.

Soneto do tempo perdido

O amor é um velho avarento.
O pouco que ele nos dá
Jamais nos compensará
Por todo o nosso tormento.

A cada feliz momento
Que nos proporcionará
Ele nos exigirá
Cota igual de sofrimento.

Plantar o amor, cultivá-lo,
Viver por ele, adorá-lo,
Sempre só resulta em perda.

Melhor é o tempo gastar
Em truques como coçar
O saco com a mão esquerda.

De Hemingway, sobre Zelda e Scott Fitzgerald

"Scott estava apaixonado por sua mulher e tinha grande ciúme dela. Durante nossas caminhadas, falou-me muitas vezes do tal romance que ela tivera com o piloto naval francês mas, depois desse caso, parece que ela jamais tivera outro. Naquela primavera, porém, o problema existia em relação a outras mulheres. Nas noitadas em Montmartre Scott receava ficar inconsciente e tinha horror de que isso acontecesse com ela também. No entanto, tornarem-se inconscientes pela bebida sempre fora o mecanismo de defesa que ambos usavam. Embora a quantidade de uísque ou de champanha que ingeriam fosse inócua para qualquer pessoa acostumada a beber, era o bastante para derrubá-los e eles dormirem como crianças. Muitas vezes eu os vi inconscientes, parecendo antes anestesiados do que bêbedos, e seus amigos - ou por vezes um motorista de táxi - tinham que botá-los na cama. Quando despertavam, no dia seguinte, sentiam-se felizes e descansados, pois a dose de álcool que os derrubava não era suficientemente grande para afetar seus organismos."

(De Paris é uma festa, tradução de Ênio Silveira, publicado pela Civilização Brasileira.)

Um desejo,

 cada dia mais intenso e irrealizável, de ter morrido em 2009.

Cotação do dia

A esperança de que uma gripe fortíssima, associando-se aos resíduos da anterior, não curada, possa fazer alguma coisa por mim. Já não é sem tempo.

Ontem, em...

... Mococa, quatrocentas boas almas acreditaram que eu fosse um escritor e me ouviram por três horas no Teatro Municipal. Algumas me qualificaram, até, de bom escritor. Jesus! No Dia do Juízo Final, isso naturalmente será apresentado também como peça de acusação.

De repente, anteontem,

eu estava no fim da tarde em Ribeirão Preto, andando no rumo que, segundo as indicações, me levaria a um posto Ipiranga onde poderia recarregar o celular. Desconfiei estar perdido quando os vinte minutos de caminhada já tinham passado de uma hora. Finalmente vi o posto, do outro lado da rodovia. Atravessei-a como um maluco invocando o suicídio como direito. Chegando ao posto, descobri que nele (possivelmente o único no Brasil)  não se fazia recarga de celular. Voltei a andar, recarreguei finalmente o celular num Atacadão e, assim que saí dele, uma chuva dessas que parecem movidas pela ira divina me apanhou. Com a camisa e a calça encharcadas como panos de chão, dois sapos coaxando nos sapatos e os olhos embaçados, pus-me a tentar achar o caminho do hotel. Fui xingado, advertido, ridicularizado, andando no meio dos carros e das motos e - como se pode supor - cada vez mais me distanciando do caminho certo. Minha identidade, no bolso da camisa, ficou borrada, quase se desmanchou. Houve um momento em que, para castigar minha burrice, comecei a atravessar sem nenhuma cautela as ruas e avenidas. Durou três horas e meia essa odisseia e nem preciso dizer que no fim dela, já milagrosamente chegando ao hotel, vi pelo menos meia dúzia de lugares onde poderia ter feito a recarga sem precisar andar como andei. Enfim, resumindo: salvei-me. Deus zomba de mim, me faz pensar que logo estarei livre de mim, mas me puxa sempre, quando já esboço o sorriso dos bem-aventurados.

E,

já que assim nos ensinam os bons modos e os costumes consolidados, daremos graças por mais este dia, pelo que ele nos trouxer de mau - a especialidade dos dias -, e, se alguma coisa boa ele nos conceder, sejamos honestos: avisemos que houve um engano e que nos entregaram algo que só pode pertencer a outro.

Perigo a bordo

Quando viaja, sente ser um risco para os outros passageiros. Sempre imagina que seria a melhor forma de sair do mundo. Um segundo, dois, um choque, a indenização dobrada do seguro de vida, o eterno esquecimento.

O fruto

Quando já era o único fruto da árvore e parecia destinado a apodrecer e cair, como os outros, foi descoberto no fim de uma manhã por um passarinho peregrino e voraz que amorosa e intensamente o bicou até que, ao chegar a tarde, ele não fosse mais do que a lembrança de algo que havia estado no galho e que rumava agora com o passarinho para algum lugar no horizonte.

Soneto do Amor bastardo

Mesmo com a fama e apesar do
Respeito que inspira o nome,
Do seu brilho e do seu renome,
O Amor é um filho bastardo.

E os que recebem seu dardo,
Seja mulher ou seja homem,
No seu fogo se consomem
E carregam o seu fardo.

E se, julgando-o divino,
Alguém alívio lhe pede,
Ele jamais o concede.

O Amor é reles, mofino,
E de deus não possui nada
Além da falsa fachada.


Aplicação

Começou a ir a velórios como forma de aprendizagem. Quer ser um morto exemplar.

Fugindo do reino dos mortos

Há muito tempo foi, já três anos atrás,
Mas o meu coração tão frio permanece
E tão baixinho bate que nem mais parece
Que o planeta dos mortos ficou para trás.

Ubiquidade

Para que me serviria o dom da ubiquidade? A ideia de estar ao mesmo tempo em dois lugares me aflige. Gostaria de estar todos os momentos em lugar nenhum.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Uma outra coisa pela qual detesto a burguesia francesa é o seu profundo interesse em evacuação. O que é constipação e o que não é? Este é o verdadeiro critério. No fim deste corredor há o W.C. dos Grandes Atiradores! Eles correm e lá se amontoam. E não apenas isso. Eles são todos vítimas da mais espantosa flatulência imaginável. Os bombardeiros aéreos sobre Londres não chegam aos pés deles. Isto, eu suponho, é causado por purgativos e remédios violentos, que me parecem inteiramente desnecessários. Também o povo da cidade tem o hábito de atender suas sérias necessidades (suponho que à noite) lá embaixo, na praia, sob as palmeiras redondas. Talvez sejam os marinheiros, mas minha garganta inglesa se contrai e meus lábios ingleses se entortam em sinal de desprezo. Outro dia, uma palmeira tinha um aviso afixado: "Chiens seulement" (Somente para cães). Não é engraçado? Esse aviso gerou um ha-ha-ha que durou o dia inteiro."

(Do livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

terça-feira, 25 de junho de 2013

Soneto do amor tormentoso

Que tolos fomos pensando
Que tendo o tempo passado
E que o afeto morto estando,
Tudo estaria mudado.

Nada foi modificado.
Tudo está igual a quando
Fui a ti apresentado
Naquele dia nefando.

Desde essa manhã funesta
O amor nos fere e nos testa,
Dia e noite, sem parar.

Morre, renasce, resiste,
Tudo faz e em tudo insiste
Para nos atormentar.

Sina

Não nos sobraram escolhas.
As flores foram colhidas
E as frutas foram comidas.
A nós couberam as folhas.

A morte

Se a morte não fosse um direito adquirido já dede o dia em que nasci, eu lutaria por ele.

Árvore

Meus galhos estão velhos. Minha seiva já não os anima. O vento os toca ainda, embora eles não emitam mais aquele seu som verde. Um ou outro espasmo de vida, ainda os sinto quando um raro pássaro, geralmente jovem e tolo, pousa em mim e se detém o tempo necessário para notar minha velhice e procurar outra árvore.

Soneto das épocas boas

Naquelas épocas boas,
Que poucas foram, amávamos
O nosso amor, o exaltávamos
E lhe tecíamos loas.

Jamais amantes nenhuns
Tantos maus versos rimaram,
E também nenhuns usaram
Piores lugares-comuns.

Tu me amavas, eu te amava,
Eu de rainha te chamava,
Tu me chamavas de rei.

Hoje que, acabado o luxo,
Tu só me chamas de bruxo,
Do que é que eu te chamarei?

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Bom dia

Há de ser um bom dia. Não terá coragem de aparecer diante de mim nenhum pior do que os recentes. Até amanhã.

Se queres...

... saber o que vale na vida, o que é mel e o que não é, ouve a canção dos outros. Saberás. Se queres provar o mel, pede aos outros. Talvez já estejam fartos dele e deixem pingar em tua boca um pouquinho. Para quem não lhe conhece o gosto, bastará. Mais te mataria.

Soneto do amor perdido

Que triste havermos perdido
O amor em nós encontrado,
Tão docemente cantado
E tão depressa esquecido.

Que pena termos cedido
Àquele argumento errado
De que onde um amor é achado
Pode outro estar escondido.

Do nosso nos apartamos
E agora nos lastimamos
Por essa nossa tolice.

Que outro amor encontraríamos
E até melhor o acharíamos...
Quem foi que falou? Quem disse?

Eufemismo

Perguntado sobre a origem de sua fortuna, o homem respondeu que era a esposa. "Ah, ela é milionária, então." "Não, ela é especialista em artes de alcova." O homem coçou a cabeça. Seria o que ele estava pensando? O outro estendeu-lhe um cartão que de certa forma eliminou sua dúvida, mas aumentou sua curiosidade. Dizia: "Madame Bianchet - Especialista em todas as artes de alcova. Atende com hora marcada. Descontos para grupos acima de três pessoas. Ambos os sexos."

Artista

Pelo temperamento que tenho, imagino que pudesse ter sido um artista se me houvessem espancado na infância, me alimentado só de pão e água e me feito treinar dezesseis horas por dia com argolas. E, se eu me tivesse apaixonado pela bailarina do circo e ela me rejeitasse, então eu seria insuperável.

Porto

Literatura, meu porto,
Que busco sem encontrar,
Receio a ti aportar
Só quando já estiver morto.

Soneto da derrota bem-vinda

Depois de tanto cansaço,
De tanto tempo perdido,
De tanto sangue vertido,
Só obtivemos fracasso.

Cuidamos de tudo, passo
A passo, tudo medido,
Tudo certo, definido,
Linha a linha, traço a traço.

Foi bom sermos derrotados.
Os nossos corpos cansados
Como iriam suportar -

Se no final desta história
Conquistássemos a vitória -
A vitória festejar?

domingo, 23 de junho de 2013

Boa noite e...

... que os amores encontrem ao menos acolhida hoje, se não encontrarem guarida. Que se dê a eles um desconto, ou todos, e que, zeradas as contas, os corações possam alvoroçar-se de novo. Que se reconheça que eles nunca agem por maldade e, se besteiras cometem, é pelo seu natural avoamento quando estão possuídos pelos desígnios de Eros. Que sejam todos perdoados, todos menos o meu, naturalmente - este, já se vê, foi condenado ao degredo, às galés, aos trabalhos forçados e àquela execração que tão bem soa em latim: per omnia saecula saeculorum.

Em véspera...

... de viagens, mesmo as curtíssimas, há um item que já há algum tempo é para mim o principal na hora de arrumar a mala: uma calça a mais. É a síndrome Ovomaltine. Há uns três anos, fui com uma só para o Sul e, no dia da chegada, não resisti e pedi esse sorvete, o meu preferido, num shopping. Um minuto depois ele descia como uma avalanche pelo meu corpo. Era noite e eu tinha um compromisso logo na manhã seguinte. Não era possível deixar a calça para lavar no hotel. Seria estranho eu aparecer de cueca no colégio que me receberia. Procurei lavar a calça sozinho e cada manobra que fazia, cada água que jogava, cada sabonete que esfregava, ia compondo um tema surrealista. Seca ela deve ficar melhor, eu imaginei, e dormi. Ao acordar, percebi que à "tela" não faltava nem um título, tal era a evidência que expressava. Mas, se título tivesse, seria este, autoafirmativo: "Meu dono urinou em mim."

O duelo

Enquanto o duque e o conde se batiam em duelo, a duquesa de L., por quem os dois acabaram mortos no final, queixava-se do desconforto do vagão do trem no qual fugia com um arruinado fidalgo polonês e pedia a ele que, se tivesse mesmo amor a ela, a abanasse com o leque em vez de ficar tentando mordiscar-lhe inabilmente os lábios.

Na Cobasi

A dona puxa o cachorro, que reluta em seguir. "Vem, Gabriel. Que preguiça, ô!" Uma menina pergunta: "O nome dele é Gabriel?" "É, que nem o do anjo. Vem, peste, vamos."

Soneto da falência feliz

Do amor eu fui tributário
E provedor obstinado.
Dava-lhe todo o salário
No dia adrede acertado.

Com ele fui tão perdulário,
Tão mão-aberta e largado
Que me chamava de otário
Quem conhecia o meu fado.

Porque ao amor tudo dei
A minha quebra previram,
E estavam certos. Quebrei.

Maravilhoso, esse dia.
Muitos  homens já faliram,
Nenhum com tanta alegria.

Soneto de Camões

"Alma minha gentil que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo onde subiste
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa sem remédio de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te
Quão cedo de meus olhos te levou."

Às vezes

Sempre chega aquele momento em que o amor, já se considerando um homenzinho feito, arruma a trouxa e, bravateando, avisa que vai embora, perder-se ou encontrar-se pelo mundo. Leva um tempo decuplicado para preparar-se, esperando que tentem demovê-lo. Quando isso não acontece, ele diz bom, vou indo, e vai. Chegando à rua, anda devagar e olha para trás. Quem sabe... Às vezes o chamam antes de alcançar a esquina. Nem sempre. Às vezes ele volta, mesmo que não o chamem, a pretexto de ter esquecido o canivete suíço. E às vezes ele vai. Quem o acompanha da janela vê só a esquina por onde ele sumiu, e espera, espera. Às vezes ele volta. Às vezes nunca mais. Bom domingo aos amores, doces meninos. Que não os espreitem desgraças nem malfeitores.

Hora de ir...

... ao Ragazzo, talvez, comer as coxinhas anunciadas retumbantemente pelo tenor bem-aventurado. Tomar um sorvete, quem sabe, apesar da gripe hedionda. Aos domingos deveria ser proibida a poesia. Rejubilai-vos, estômagos! Dia de alimentar a carcaça, porque a alma já foi comida pelas esperanças descabidas e pelos insensatos apelos do coração. Apresentai-vos, apetitosas esfirras, quibes gordurentos. A vós pertence o Reino da Terra! Alegrai-vos, bem-sucedidas digestões! O amor morreu e tudo é lícito agora!

Ótima fase

Creio estar vivendo a melhor época de minha vida. As esperanças já não se atrevem a me importunar, e as decepções são cada vez menos numerosas. Se bem que a última tenha valido por todas.

Ewaldo Dantas Ferreira

Quase todo dia, agora, alguns amigos, os poucos sobreviventes, avisam que morreu mais um. No capítulo final da vida, estamos numa trincheira, com a cabeça enfiada na terra, e os disparos zunem cada vez mais perto. Hoje recebi um desses avisos. Os que o mandaram não sabem que por artes e desastres do amor há muito estou morto, já. Foi uma morte amável.

Jaculatória

Vos peço, rimas afáveis,
Que deis aos meninos pulcros
Os mais bonitos sepulcros
E as mortes mais agradáveis.

E que quanto antes mateis
Também as belas garotas
Filhas de putas escrotas
Ou descendentes de reis.

Que possam jovens morrer
Antes de o amor conhecer,
Com suas dores e penas,

Ou que possais, rimas ternas
As normas do amor eternas
Tornar mais doces e amenas.

As mil mortes do amor

O amor morreu tantas vezes
Em mim e em meu coração
Que a morte tem a extensão
De mil canais de Suezes.

E tendo a área de mil ilhas
Sua descrição não vem
Em mapa nenhum e nem
No pacto de Tordesilhas.

Morreu tanto, quem diria,
Que burlou a geografia
Com tanta desfaçatez

Que as contas me fez errar
E por mil multiplicar
O único canal de Suez.

Verso e reverso

Há quarenta anos expõe seus versos e tudo que caiu no seu chapéu foram algumas cusparadas de escárnio e duas dúzias de moedas de comiseração. O mendigo que ao seu lado exibe as pernas pestilentas está só há três anos no negócio e já comprou uma casa e um carro com o qual nos fins de semana leva a mulher, uma loira até que razoável, à praia do Suarão. Ninguém reclama ao vê-lo pulando as ondas, porque aos sábados e domingos suas pernas parecem normais.

Perícia

Embora jures que não,
Na enxada que me enterrou
O técnico detectou
As marcas da tua mão.

Cotação do dia

Não gosta de pensar em si mesmo, de se ver como é. Astutamente, coloca-se numa jaula como um bicho de zoológico e, olhando-se assim como se o olhasse outra pessoa, chega às vezes a sorrir. Nesses momentos, seria capaz de atirar para si um amendoim ou uma pipoca e apanhá-los graciosamente, com um salto.

E se...?

E se tudo, nesse tempo todo, não houver passado de algo só um pouco mais sofisticado que resolver palavras cruzadas? Quando lhe vem esse pensamento, vem também outro: o da autoextinção.

Guinness

Saltou do viaduto
e não morreu mas
matou três na caída

Mais um minuto
pegaria a saída
do baile mensal
e seriam muitos mais
recorde mundial.

Números

Da Semana de 22
sobraram dois
talvez só um
quem sabe nenhum

Da Geração de 45
malograram
quarenta e quatro
mais um

Do século 19 ao 21
o velho Machado
vale por todos
e mais alguns.

Socrático

Foi bom o primeiro passo que deste no rumo do autoconhecimento: não sabes ainda o que vales, mas já sabes o que não vales.

Um trecho de Elfriede Jelinek

"Uma doutora há tempos é íntima da dor. Já há dez anos ela está pesquisando o último segredo do Requiem de Mozart. Até agora ainda não foi capaz de avançar um passo, porque essa obra é impenetrável. Não temos como entender! A doutora afirma que essa é a mais genial obra feita por encomenda de toda a história da música. Esta é uma certeza inabalável, para ela e para uns poucos mais. A doutora é uma das poucas escolhidas que sabem que há coisas que, com a melhor boa vontade, não podem ser descobertas. E o que sobra para explicar a respeito disso? É inexplicável como algo assim pode ter sido criado. O mesmo vale para alguns poemas, que também não se deveria analisar. O Requiem foi pago adiantado por um desconhecido misterioso, vestido com um casaco negro de cocheiro. A doutora e outros que assistiram a esse mesmo filmes obre Mozart sabem: esse desconhecido era a morte em pessoa! Com esse pensamento ela consegue fazer um buraco na cápsula que envolve as sumidades e penetrar em seu interior. É só raramente que se consegue crescer tanto a ponto de alcançar os grandes."

(Do romance A pianista, traduzido por Luis S. Krausz, publicado pela Tordesilhas.)

sábado, 22 de junho de 2013

Dar a...

quadris, pernas, coxas e seios nomes como Isabel, Glória ou Dolores - e passar a referir-se somente assim a eles - é o primeiro passo dos insensatos para introduzir o amor e o sofrimento em sua vida.

Há quem...

... creia nos sonetos alexandrinos e quem creia no amor. O poeta crê nos dois e naquilo que os espertos disseram sobre a existência da alma.

Acreditar...

... que o amor seja puro é uma dessas crendices que persiste ainda entre camadas sociais menos favorecidas pelo bom-senso.

O amor e...

... a mentira são farinhas do mesmo saco, e quem come um engole a outra.

Cada poeta...

... que morre é um otário a menos na rua. E se for, como costuma acontecer, um mau poeta, é uma bênção para a literatura e para a saúde pública.

Em nenhum...

... lugar está declarado que o amor deve ser digno e puro. Isso é invenção dos poetas.

Os que o...

... advertiram sobre a inutilidade dos seus preparativos estavam certos em tudo, menos no detalhe da escada que ele levou e colocou embaixo da sacada do amor. Os dele não, mas os pés de outros se deleitaram com seus degraus.

Depois que os tolos...

... a ele se declaram, o amor não marca mais encontros. Concede audiências.

O amor não...

... requer nem prática nem habilidade. Um pouco de tolice basta.

Logro

Como em qualquer outro conto do vigário, o amor assemelha-se a um emplastro: é autoaplicável.

Custo-benefício

Apesar de toda a autopropaganda, o amor é uma forma de perder tempo como outra qualquer.

Todos os...

... que falam mal do amor e o execram já o exaltaram. É um dos poucos casos em que a tolice é um dos atalhos para a sabedoria - embora neste caso ela costume receber o nome de recalque. Antes recalque do que nunca.

Depois que...

... o amor virou mais um dos passatempos da rede social, melhor é dedicar-se ao estudo da obra de Paulo Coelho, se bem que seja difícil encontrá-la.

Acreditar em...

... Deus dá muito menos prejuízo do que acreditar no amor.

O amor

O amor é a futilidade mais metida a besta que eu conheço.

Como conforta...

... saber que o amor está morto. De que peso estão livres os nossos ombros, as nossas costas. Respiramos melhor agora, andamos melhor, sem o chupim que nos sangrava, sem aquela sanguessuga que nos desnutria e nos lançava com febre ao leito. Por algum tempo, ainda, estaremos sob o risco da recaída - fatal, como se sabe. Depois seguiremos adiante. Será um caminho monótono, é verdade. Mas jamais voltaremos a sustentar aquele folgazão. Que vá montar nas costas de outro incauto e aporrinhar-lhe a a paciência. Há um milhão deles por aí. Que aguentem a cruz com classe e, sob o chicote, gemam melhor do que nós, que já gememos tanto. 

Antes

Que desejáveis as frutas,
Os frutos, os usufrutos.
Enquanto não os desfrutas,
Que doces são os produtos.

O outro

Ele nem lembra mais que foi rejeitado pelo amor. Não era ele, era um sujeito forte, sorridente e tolo como todos os jovens.

Heráldica

Meu brasão: "Sou feliz só quando estou triste." Transposto para o latim deve ficar bonito.

No asilo

Que no asilo haja uma horta em que eu e os demais possamos plantar nossas alfaces. Que o sol de Van Gogh nos visite diariamente e que seus girassóis se transformem em borboletas que possamos chamar pelos nomes e que cantem para nós, ao entardecer, todas as canções que a vida sempre nos negou. Que os corvos se revelem pássaros canoros, também, e que, se um dia notarmos a falta de uma das orelhas, saibamos que fomos finalmente admitidos plenamente no âmago do mistério e que nosso irmão Theo, o primeiro a quem comunicaremos, venha nos visitar e nos traga fumo para cachimbo e balas de hortelã.

Avareza

Enquanto me ofereciam alegrias, ouvi as propostas e me fiz acessível. Sabia, já naquele tempo, que toda alegria é falsa. Quando, porém, começaram a se aproximar de mim insinuando infelicidades e tristeza, fechei-me. Eram oportunistas, interesseiros, cobiçosos do meu tesouro. Jamais saberão onde está a arca em que guardo minhas lágrimas todas, desde a primeira. Toda noite eu as conto, uma a uma, e volto a guardá-las, com os acréscimos do dia.
Num mundo cada dia mais complexo, em que cada efeito tem sempre mais de uma causa, sou uma aberração. Sou triste, miseravelmente triste, de uma tristeza múltipla e avassaladoramente ampla, mas não consigo ver senão uma causa para ela: eu mesmo. Será isso, efetivamente, ou é puro egoísmo meu? Às vezes acho que tenho ciúme desta tristeza e a defendo como um cão defende o osso especial que ganhou no dia 24 de dezembro. Minha tristeza não tem sócios, editais de convocação, participação acionária nem distribuição de lágrimas e lamúrias. Minha tristeza sou eu.

Ponto de vista

Há quem, seguido constantemente por moscas verdes, julgue ter atraído passarinhos.

Autoajuda

Por pior que seja nosso dia, sempre nos lembraremos de outros, ainda menos venturosos. Isso é um consolo e uma esperança. Sempre haverá um dia mais aziago para nós. Talvez hoje, quem sabe amanhã.

O problema

Não há problema nenhum com o mundo. Ele foi feito para funcionar exatamente assim, e é assim que funciona desde o início. Não há truque nenhum, as regras são claríssimas. Sofrem só os que, julgando-se superiores, criam balelas nas quais acabam acreditando. Os poetas são especialistas nisso, e é inesgotável o seu estoque de lamúrias. Os poetas são aqueles que, diante de uma alegria, emudecem como se lhes tivessem feito uma injúria.

A lição

O maior ensinamento que o amor nos proporciona é falso como ele. Cedo aprendemos a fingir que amamos estar na gaiola em que ele nos mantém. Ele nos mente, dizendo que nos prende por afeto, e nós lhe devolvemos a mentira, assegurando que a prisão é a nossa felicidade. É um dos jogos humanos de maior sucesso. De vez em quando um tolo, ou uma tola, acredita na honestidade do jogo e adoece. Uns chegam a enlouquecer, outros se matam. Esses não leram as instruções do fabricante.

Seria preciso...

... que alguém tivesse a coragem e a sensatez de proclamar que a alma, ainda que digam dela o que continuam dizendo, é inútil, e que o amor é o seu mais deslavado chamariz.

Um sol

Um sol como este, de hoje, chamou um dia uma fragata ao mar verde e a orientou pelo caminho das ondas a um abismo onde poderíamos vê-la hoje, se ela pudesse ser vista.

A nos dizer que não

O vento sopra o pequeno pinheiro da casa defronte à minha, que me diz, graciosa mas firmemente, balançando os braços, que não. Tudo que nos rodeia está programado, desde o Dia da Criação, a nos sorrir e a nos mostrar como seríamos felizes se isto tudo que nos sorri pudesse ser nosso. Nossa é só a tristeza. A desesperança. O desencanto. Já é alguma coisa. Podemos tentar a poesia, ao menos. Mas até a poesia está adestrada a nos dizer que não.

Festa, hoje,

no colégio. Desde cedo o vento sacode as flâmulas e os galhardetes. Há no ar aquele burburinho que só as expectativas juvenis conseguem criar e alimentar. Serão cantados os santos (sempre aqueles três de junho, o que indica uma falta de renovação na área). O homem do churrasquinho venderá seus gatos como se lebres fossem e o do algodão-doce defenderá também seu mês. A propósito: nunca entendi, quando menino, como alguém podia trocar aquela preciosidade de finos e doces fios por uma nota amassada ou uma moeda já meio comida pela ferrugem. Depois, ao longo da vida "adulta", vi venderem preciosidades ainda maiores. Tudo está à venda, sempre. Tudo no mundo está por conta da simonia. Vendemos tudo, tudo compramos. Claro que a alma tem um preço especial. Tanto que eu, apesar de todo este discurso de bons hábitos e costumes, venderia a minha ao Diabo, como não, por um Sonho de Valsa, como aquele da música. Mas o Diabo não é tolo. Sabe que terá minha alma de graça, no fim.

Sáfaro (ou Cotação do dia - 2)

Inútil sou, com certeza.
Não tenho mais serventia.
Reguei a flor da tristeza,
Perdi o dom da alegria.

A notável Elfriede Jelinek

Uma sensação muito rara, no fim da noite. Um êxtase que só o contato com uma obra de arte única proporciona. Li as duas dezenas de páginas iniciais de A pianista, de Elfriede Jelinek, Nobel de Literatura de 2004, e me censurei pelo pouco-caso com que venho tratando ultimamente a vida. Vale a pena vivê-la, ainda. Vale muito. A arte de Elfriede Jelinek é razão suficiente. Lembrei-me de uma frase de John Steinbeck, sobre a beleza que,às vezes, por ser demasiada, se torna insuportável. Espero resistir à beleza do restante do livro, embora as primeiras páginas advirtam que será uma tarefa difícil. Morrer com o livro de Elfriede Jelinek no colo seria para mim uma bênção imerecida.

Do trabalho e da arte

Às vezes lhe vêm ideias perturbadoras. Como esta: a da mediocridade quase abjeta da velha e louvada crença no trabalho como única forma decente de sucesso e de conquista. Pensando nisso, seu estômago se contorceu agora, logo cedo, nem tanto pela aversão que lhe causa essa fórmula, mas pela expressão bovinamente triunfal dos que a advogam, como se tudo mais fosse abominável. Talvez sua rejeição se deva a uma deturpação provocada pela sua "educação artística". Parece-lhe intolerável ver num verdadeiro artista o resultado apenas de um labor obstinado. Ele sente a necessidade de valorizar, de dar importância igual, ou maior, a variáveis como o acaso, ou a insanidade. Pode-se dizer que a genialidade de Van Gogh foi fruto do seu trabalho? Sempre gostou de achar que o artista é um eleito. Alguém gabar-se pelo resultado que atingiu com seu trabalho, e só com ele, soa-lhe como uma insuportável arrogância.

Saudade

Há muito, já, que não vivo
Tão feliz quanto vivi
Quando fui do amor cativo
E sob seu jugo sofri.

Que

Que possa a minha tristeza
Até a hora derradeira
Ser a única companheira,
Meu pão e minha beleza.

Poesia

Se não fosse a poesia, precisaríamos satisfazer-nos com cruezas como a de se dizer que uma rosa é uma rosa.

Cotação do dia

As passeatas se foram, nós ficamos. A vida não nos quer. Havemos de ficar parados aqui. Quando chegar o tempo, a morte benigna nos achará. Não sei o que disseram a vocês. A mim o projeto agradou. Iremos para um lugar que é um jardim imenso, onde teremos o direito de flutuar com as borboletas. Será nosso aprendizado. Quando estivermos aptos, poderemos levar nossa alma ao seu lugar.

De Elfriede Jelinek, sobre a arte

"Para a maioria, a maior atração da arte está em reconhecer algo que eles imaginam conhecer."

                                                                        ***

"E então nem mesmo toda a arte será capaz de consolá-la, ainda que se diga muito sobre a arte - sobretudo, que é uma consolação. Mas às vezes a arte é que gera o sofrimento."

(Do livro A pianista, tradução de Luis S. Krausz, publicado pela Tordesilhas.)

sexta-feira, 21 de junho de 2013

"É brincadeira,

isso, o cara distribuir esses papeizinhos aqui. Eu achando que era um panfleto. O seu é igual? Sapatos em promoção? Era só o que faltava. Tem gente pra tudo."

Na Sé

"Eu não sabia que andar fazia tão bem à voz."

Candelária

"Please, esta já é a fila para a compra de ingressos da Copa de 14?"

Paulista

"Não sei não. Acaba dando rolo. Será que nós estamos seguindo o padrão Fifa?"

Poste

O mais barulhento dos cachorros da minha rua pareceu mais exaltado que nunca, hoje à tarde. Latiu, deblatterou (!?), fez um entusiasmado discurso e, quando eu esperava que ele fosse comandar um movimento canino de âmbito nacional, simplesmente levantou a pata e, como todos os dias, obsequiou o poste.

Soneto da proclamação

Só sei dizer que nem eu,
Três dias já decorridos
De comoções e alaridos,
Sei o que me aconteceu.

Só sei que eu o povo vi
Seus lemas viris entoando
E com ele fui caminhando,
E segui, e prossegui.

Assim fui com a multidão
E, de canção em canção,
Tomamos todas as ruas.

Aquilo que ela cantava
Não sei. Sei que eu proclamava
Teu nome e as belezas tuas.

Das dificuldades do sussurro

Difícil é fazermos com que ouçam nossa voz, em meio aos brados de convocação. As ruas são sacudidas, os quarteirões abalados. O ar está carregado de exclamações. Quem ouvirá nossa voz, que sussurra por algo tão antigo e antirrevolucionário quanto o amor? Em que ouvidos, em que ombro pousarão nossas reticências?

As tristes sementes do inverno

As palavras de amor malogradas retornam ao peito envoltas pelo frio do desprezo e começam a semear o inverno no coração.

A voz

A voz de Priscylla Mariuszka Moskevitch poderia ser intransitiva, de tão bela. Ela é mais importante que as palavras, e poderia não dizer nenhuma, nunca. Poderia percorrer simplesmente a escala musical, de dó a dó. Isso bastaria para assegurar-lhe a majestade. Mas a voz de Priscylla Mariuszka Moskevitch é transitiva. Ela instiga, ela chama, ela atrai. A voz de Priscylla Mariuszka Moskevitch convoca a beleza.

Nove em dez

Dos dez romances que fiz,
Nove eram tão geniais
Que pareciam iguais
Aos de Machado de Assis.

"Amora com o tronco cinza", de García Lorca

"Amora com o tronco cinza,
dá-me um cacho.

Sangue e espinhos. Aproxima-te.
Se me queres, também hei de querer-te.

Deixa teu fruto de verde e sombra
sobre minha língua, Amora.

Que largo abraço te daria
na penumbra de meus espinhos.

Amora, aonde vais
Buscar amores que não me dás?"

(Do livro Poemas de amor de Federico García Lorca, tradução de Floriano Martins, publicado pela Ediouro.)

Quando começou a chover,

ele foi ao quintal, armou as mãos em concha e tomou um gole. É por coisas assim que o consideram esquisito. Outras: lê poesia e acredita que as estrelas nasçam de lágrimas de amor.

O infiltrado

No meio dos manifestantes, parecia um deles. Gritava como todos. Uma diferença, que ninguém notou, era que não levava faixa nenhuma. Tinha uma caneta e um bloco e de vez em quando, esquivamente, punha uma nova palavra, ou substituía outra. Não era uma ode, como se poderia supor, mas um soneto em que se dispunha a derrubar o mundo, se necessário fosse, para um dia poder ser engolido pela vertigem de um abraço de Priscylla Mariuszka Moskevitch.

Nossa voz...

... gastou-se em hinos à liberdade e, agora que dela necessitamos para reivindicar a opressão do amor, ela nos falha e soa como a de um velho fazendo gargarejo.

Depois do som...

... e da fúria, há um vazio que o amor oportunamente começa a ocupar. Enciumado, ele se põe a nos censurar pela atenção que demos a coisas passageiras e proclama sua generosidade: teve o ímpeto de nos deixar para sempre e só não fez isso porque nos acha, apesar de tudo, merecedores de mais uma chance. Mas nos adverte: será a última. Esquecemos então nosso surto revolucionário e, colocando de lado as faixas, redescobrimos nossa natureza de vassalos e, pegando a imaginária lira, entoamos uma loa para o nosso querido déspota.

Um dos manifestantes,

sorrateiramente, desgarrou-se da multidão diante do número 2.073 e foi à Livraria Cultura ver se ali já havia chegado o livro de poemas de Margaret Atwood.

De um morador de rua, ontem

"Toda noite, agora, é isso aí: não se pode mais nem dormir sossegado."

Quando tudo isto...

... tiver passado, daqui a um ano ou dois (não ouso projetar para mim nada além disso), eu me lembrarei dos clamores e dos fragores ou, no meio deles, da falta que me fazia Priscylla Mariuszka Moskevitch?

Que proíbam...

... Priscylla Mariuszka Moskevitch de participar de qualquer um dos atos que vêm se realizando nas praças públicas. Um só dos fios dos seus cabelos de fogo pode incendiar a Nação.

A reação

Depois dos primeiros pingos de chuva, alguém na multidão gritou: "Começou o contra-ataque dos reacionários."

O distraído

Quase carregado pela enxurrada popular, ele perguntava, com o grito abafado pelos lemas e palavras de ordem: "Esta aqui é que é a Paulista?"

A placa de hoje

A mulher jogou longe a placa que anunciava a abertura de vendas de apartamentos de um, dois e três dormitórios e avisou à colega: "Você, se quiser, fica aí. Pra mim deu. Diz pro homem que eu caí fora. Minha placa hoje é outra." E juntou-se à multidão.

Copa do Mundo

Que forte tu és, Brasil, começando a andar finalmente com os teus próprios pés. Que bom saber que não é só para jogar futebol que eles servem.

Cotação do dia

Orgulho da energia dos outros, que instante a instante se revela mais forte, em cada centímetro quadrado disto que se mostra finalmente Brasil. Redescubro a alegria de dizer nós.

Beijaram-se, então,

desajeitados, porque cada um carregava uma faixa. Havia no ar algo além de fumaça e do cheiro de gás lacrimogêneo.

Daqui a vinte anos...

... se lembrarão de que se conheceram numa passeata, na Paulista, e entre beijos erguerão um brinde à democracia.

Esperança

Talvez, entre os restos das passeatas, se encontre um poema rabiscado em que a palavra de ordem seja amor.

Menino

Garimpa o nariz e vai atirando as pepitas ao chão.

Soneto das súplicas risíveis

As súplicas e os apelos
Que pelo amor eu fazia,
Melhor, bem melhor seria,
Se nunca viesse a fazê-los.

Eu os fiz, porém, e tê-los
Feito quando não devia
Me fez alvo da ironia
E já não posso esquecê-los.

Como esquecê-los, se cada
Lamúria por mim lançada
Ainda me fere a autoestima?

Como esquecê-los irei,
Se com eles me degradei
E fiz do amor pantomima?

Pergunta

Pergunta que sempre faço:
Errei naquilo que fiz,
Não tive aquilo que quis.
Isso é ou não um fracasso?

Como se vendem os infantojuvenis

O mercado do livro infantojuvenil hoje praticamente se resume às vendas diretas das editoras aos colégios. As grandes quantidades comercializadas permitem descontos expressivos, e grandes sucessos, com milhares de exemplares vendidos (alguns chegam ao milhão), não chegam a passar pelas estantes das livrarias. A estas não interessa reservar espaço para manter um pequeno volume de exemplares desses livros. Assim, os protagonistas da venda de infantojuvenis são os divulgadores das editoras e os diretores e professores dos colégios. Às livrarias só chegam, como sempre, os best-sellers, tipo Harry Potter, e as séries de vampiros. Outra característica do mercado é o fato, cada vez mais comum, de visitas de autores de infantojuvenis serem oferecidas como brinde a colégios que tenham adotado o catálogo de didáticos da editora. Os autores de ficção vão se tornando auxiliares da divulgação de livros de geografia, matemática, português...

No que deu

Sonhei fazer epopeias
E memoráveis sonetos.
Componho só melopeias
E abomináveis quartetos.

Longevo

Que bizarro sou eu, falando de amor, só de amor, como um cego descrevendo o arco-íris.

Um trecho de Elfriede Jelinek

"Ela resolve: não vai entregar nada de si a ninguém, nem mesmo o último resto do seu eu. Vai ficar com tudo para si e, se possível, ainda ganhar algo por isso. Aquilo que se tem, se é. ELA amontoa montanhas íngremes. Seus conhecimentos e suas habilidades formam um pico sobre o qual a neve jaz, alisada pelos esquis. Só o mais corajoso dos esquiadores vai conseguir galgá-lo. A qualquer instante o jovem pode escorregar por seus declives, no abismo de uma fenda no gelo. ELA confiou a chave de seu precioso coração, da estalactite de gelo de seu espírito refinado, e por isso pode confiscar essa chave a qualquer instante."

(Do livro A pianista, tradução de Luis S. Krausz, publicado pela Tordesilhas.)

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Maciez

Em ti é macio tudo,
Maciez de xale e de lenço.
Toda vez que em ti eu penso,
Eu penso em seda e veludo.

RG

Há tanto tempo morri
Que de momento a momento
Vou pegar o documento:
Sou mesmo eu que estou aqui?

Ser tolo

Ser tolo é uma dessas doçuras inesgotáveis. Se o tolo se queixa de assim ser, tolo é também quem nele acredita.

Cotação do dia

Um estado de resignação, igual a tantos que tive recentemente e que duraram tão pouco. Que este perdure. Sinto-me bem como vítima, é a minha vocação. Entre ser o chicoteador ou o chicoteado, minha escolha sempre foi clara, e minhas costas são testemunhas.

Nem e nem

Não é uma simples queixa
Que faço só por fazer.
O amor morrer não me deixa
E não me deixa viver.

Soneto da falsidade

Pagamos já nosso preço.
A nossa cara afeição
Tornou-se desafeição
E o amor virou desapreço.

Aquela intensa paixão
Da qual eu jamais esqueço
Estava desde o começo
Fadada à consumição.

Nos nossos olhos confiamos,
Nas bocas acreditamos
E em tudo que nos diziam.

Quanto viemos a sofrer
Porque não soubemos ver
Como eles e elas fingiam...

Para Verônica Sabino

Louco? Por ti
Verônica Sabino
Qualquer desatino
Qualquer Juqueri
É pouco.

Um parágrafo de Sam Savage

"Há um trecho em O fantasma da ópera em que o fantasma, um grande gênio que vive oculto, sem sair à luz do dia por causa de sua grande feiura, diz que o que ele mais queria no mundo era simplesmente passear à noite nos bulevares tendo nos braços uma linda mulher, como um burguês comum. Para mim, essa é uma das passagens mais emocionantes da literatura, mesmo que Gaston Leroux não seja um dos Grandes."

(Do livro Firmin, tradução de Bernardo Ajzenberg, publicado pela Editora Planeta do Brasil.)

Nem às alfaces irei...

... hoje. Fecharei o micro, descerei para o sofá e ficarei lendo o que Lorca escreveu sobre o amor. Talvez haja tempo, ainda, de eu aprender alguma coisa e ser abençoado com um poema em que o amor, em minhas mãos, não parecesse, como sempre parece, um passarinho friorento e estropiado. Que pelo menos o amor eu consiga retratar com dignidade, eu que um dia quis dar a ele a vida e fui tão cruamente rejeitado. Boa tarde

Pensei agora cedo...

... que devo ir renunciando a tudo que possa submeter meu coração a sobressaltos. Meu coração é um velho de pantufas que já não tira o pijama durante o dia e começa a avaliar se precisa mesmo tomar banho todos os dias. Devo ir subtraindo-lhe com muito jeito as ilusões e esperanças que houverem restado, e aos poucos. Bem, quanto a isso acredito que não precise preocupar-me. Tudo que ainda faço e sinto é devagar, aos poucos. Minha vida é um carnê de quarenta e oito prestações das Casas Bahia e a cada dia mais cresce o meu receio de que não honrarei meu compromisso.

Priscylla...

... Mariuszka Moskevitch tinha um jeito delicado de abrir o sachezinho de açúcar, como se despetalasse uma flor que lhe houvesse suplicado piedade.

Quando a...

... esperança se põe a me dar umas cutucadelas, levanto-me, vou ao espelho e imediatamente meu rosto devastado me convence de que ainda estar respirando já é, para mim, uma epopeia em dez cantos. Amor? Ora, faça-me a gentileza de não ser ridículo, velhote.

Eu estaria numa...

... tela, um menino sentado à beira de um rio. Em cima, nuvens diabolicamente escuras. A pintora deixaria para dar os últimos retoques no dia seguinte e iria dormir. Deixada às escuras na sala, a tela seria repentinamente atingida por um temporal. De manhã, a pintora diria: ora, eu imaginava ter pintado um menino aqui.

Há de ser sereno...

... o dia, para quem já não tem forças para andar em passeatas. O aconchego do sofá, um livro, o bloquinho e a caneta para anotar um texto, e a certeza de que daqui para a frente tudo será sempre assim, como uma paisagem siberiana estendida diante dos olhos. Frio, tristeza, a monotonia com que a vida nos castiga pelos arroubos da mocidade. Devemos ter pecado muito, devemos ter desafiado tantas normas, para que passemos por isso, agora. Deveríamos ter pecado mais, desafiado mais normas, convenções e leis. O sangue que nos mantém lastimavelmente vivos é aquele que não gastamos quando poderíamos. Ah, por que não pudemos, ah, por que não quisemos?

Há quem...

... se atire a escaladas alpinas, há quem dirija a 300 km por hora, há quem ande funambulescamente entre edifícios, a 500 metros de altura. Não sabem que há muito a Morte se modernizou e já trabalha no sistema de delivery.

Cotação do dia (2)

Uma folha tão velha que o vento, ao vê-la, não a sopra. Cospe, enojado.

Cotação do dia

Uma mancha muito antiga de tinta num móvel que, no entanto, quando um dia some, já ninguém se lembra dela.

Lixo

Em cada estrofe, pedaços de minha verborragia caem sobre o poema, como dentes postiços sobre o prato de carne.

Norte

Devemos estar no rumo certo, finalmente. A cada dia, juntam-se mais alguns urubus ao bando que nos acompanha.

Adeus

Ontem, aquela mulher
Disse amar os versos meus.
Hoje, não deixa sequer
Que a veja e lhe diga adeus.

Penduricalhos

Os substantivos, hoje, não passam de cabides para pendurar adjetivos.

Livros-cachoeira

Francamente, escrever livros, como alguns que tenho visto, de duzentas páginas sem um parágrafo e sem pontuação, é confiar muito na paciência dos leitores.

Paul Auster

Não entendo de literatura, não sou crítico, mas creio que, como leitor, me será permitido dar esta opinião, possivelmente isolada: estou para ver escritor mais monótono e sem vida que Paul Auster.

"O poeta pede a seu amor que lhe escreva", de García Lorca

"Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
não conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
do mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei minhas veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de mordidas e açucenas.

Enche, assim, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre obscura."

(Do livro Poemas de amor de Federico García Lorca, tradução de Floriano Martins, publicado pela Ediouro.)

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Prêt-à-porter

A tendência, nas editoras que publicam livros infantojuvenis, é comprar o produto pronto no exterior: texto, ilustrações, fotos, diagramação, acabamento, impressão. O autor brasileiro encontra cada vez menos portas abertas. Isso naturalmente se reflete no mercado. Os escritores do Brasil agora raramente são vistos nas livrarias e também nos colégios, para bate-papos. Têm sido exceções, para mim, esses encontros, nos quais tenho a oportunidade de conversar com leitores de meus livros. Nunca viajei tão pouco. Para tirar de mim o mofo e de minha roupa a naftalina, estive no dia 13 no Colégio Arcieri, na capital, e estarei no dia 25 em Mococa, no Teatro Municipal, das 9 às 12h, falando com quatrocentos alunos e professores do quarto ao nono anos da Escola Municipal José Barreto Coelho, sobre a literatura infantojuvenil e a arte literária de modo geral. Há de ser um belo e proveitoso dia, como foi a manhã no Colégio Arcieri.

Soneto do rio caudaloso

Foi há três anos, eu acho,
Um pouco menos ou mais,
Que o amor nasceu como um riacho
Com suas águas normais.

Fluía leve, ligeiro,
Tranquilo como os demais,
Sem pretensões a ribeiro
Ou ribeirões colossais.

Depois, repentinamente,
Engrossou sua torrente
Com as fortes chuvas do estio

E agora, já presunçoso,
Arremessando-se impetuoso
Deságua em mim como um rio.

Soneto de Priscylla

Foi assim. Ela ordenou
Que os meus livros eu pegasse,
Na mochila os embalasse
E a porta me escancarou.

Para quem sempre se achou
Um homem de certa classe,
Melhor se ela me matasse,
Mas ela não me matou.

Com a alma dilacerada
Eu me sentei na calçada,
Escorado na mochila.

E li então que nem ela
Me pertencia, era dela.
Tinha o seu nome: Priscylla.

Soneto da mudança

Mal conhecemos o amor,
A ele nos demos inteiros
E fomos seus prisioneiros
Por nosso próprio pendor.

E assim lhe dando o penhor
Amamos seus cativeiros
E os seus suplícios vezeiros
Louvamos com todo o ardor.

Se agora nós o execramos
E de vileza o acusamos
Não foi porque ele mudou.

Termos hoje outra opinião
Tem só uma explicação:
És outra hoje, e outro hoje eu sou.

"Ismália", de Alphonsus de Guimaraens

"Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar..

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar..."

(Do livro Obra completa, publicado pela Editora José Aguilar.)

Quase hora...

... de ir para a conversa diária com minhas alfaces. Cartola, se as conhecesse, teria inveja, eu presumo. Suas rosas não falavam, apenas exalavam o perfume da mulher amada. Já minhas alfaces andam cada dia mais tagarelas. Falam de tudo. Não há assunto que rejeitem. Mas, conhecendo minha predileção, têm me perguntado muito sobre o amor e vêm lamentando minha tristeza. Já lhes expliquei que a tristeza deixada em mim pelo amor é só outra forma da antiga alegria que ele me proporcionou, e poderia chamar-se também lembrança. Acho que não entenderam muito bem, porque o amor entre as alfaces há de ter suas peculiaridades. Mas sempre puxam o assunto - e as alfaces mais novas, e naturalmente mais pudicas, chegam a ruborizar-se. Imagino que algum outro freguês do sacolão tenha dito alguma inconveniência a elas. Foi bom lembrar-me disso. Direi hoje a elas que o amor, mesmo que quisesse ser diferente, não poderia ser senão limpo e puro. Como pura é esta manhã, em que, sei lá se por alguma intuição ou por ingenuidade, digo bom dia como se ele pudesse mesmo corresponder ao adjetivo.

O amor é um navio...

... do qual já se atiraram ao mar todos os botes salva-vidas, menos um. O tripulante ao qual o bote caberia sorri agora para as gaivotas que relatam umas às outras a catástrofe e, bem no centro das ondas que vêm para o ataque final, grita um nome de mulher, que o vento levará aos rochedos, para que estes o repitam enquanto houver mar, homens e amor no planeta.

Kama Sutra - CXCVIII

Ainda penso no amor, por que não? Penso com moderação, quase sempre, como deve pensar um cidadão já com tantas décadas nas costas. Nas poucas vezes em que passo do limite, sou tomado por um barato que faz meu sofá girar lentamente, e vejo na parede silhuetas que dançam todas as danças do Diabo e sugerem longos beijos e incitam a fornicações lentas, com uma voz grave, que zumbe em meus ouvidos como se neles se tivessem formado duas colmeias.

Quando falo de amor,

recuso-me a aceitar que sou eu quem fala. Sou outro, tenho um rosto diferente, meus olhos também são outros, e as palavras me saem e soam como se acabassem de ter nascido da fonte da poesia. Sou melhor quando o amor me bebe, me toca, me aguça. É cego o amor, para assim me beber, tocar e aguçar. Que seja surdo, também, e não me ouça dizer estas palavras que me deixam alvoroçado e tumultuoso como o coração de um jovem mortal espreitando o banho de Diana, a caçadora.

A melancolia...

... me veio morna hoje, aliciadora, com sussurros estranhos e insinuações. Sei bem o que lhe aconteceu. Ela envelheceu também e, assim como eu, às vezes extrai ainda das mais caras lembranças um langor, uma frouxidão, uma entrega de sentidos, uma deliciosa sensação de mel gotejando nas veias, como outrora fazia o amor.

Parece ter...

... chegado o tempo não de desfrutar o amor, porque já estão inalcançáveis os frutos e inaptas as mãos, mas de cantá-lo, como um velho marinheiro contando passagens de mares raivosos e tempestades coléricas, de tufões que ele domava com sua invencível juventude.

De repente...

... os bem-te-vis resolveram, também eles, apresentar uma pauta de reivindicações. Reuniram-se na minha ameixeira, confabularam, discutiram educadamente, como convém a tão nobre espécie, e voaram na direção de uma janela muito verde e fechada. Puseram-se a entoar palavras de ordem, lemas, e um instante depois a janela se abriu. Vi um sorriso que me passara despercebido durante todo o tempo em que já estou aportado com a minha tristeza aqui, na Antônio Cantarella. Ou talvez seja um sorriso recente na paisagem do bairro. Míope e - mais do que isso - fantasioso, pareceu-me ver no rosto uns traços de Rapunzel. Se amanhã os bem-te-vis repetirem a manifestação, já decidi: aderirei.

Talvez um dia...

... eu possa evocar certas passagens e vê-las com a ternura que merecem, mas sem que o monitor embace e o teclado se umedeça como se tocado pelo orvalho da manhã. Nesse dia, estarei com o coração pacificado, mas o olharei como se olha para um traidor.

Abri a janela...

... e fiquei atento aos bem-te-vis. Seu canto me pareceu o mesmo. Cantaram como sempre o amor, com o mesmo ímpeto. Se eu tivesse ainda alguma dúvida, estaria dissipada. Imaginei que talvez hoje eles pudessem fazer soar alguma nota cívica, mas parece ocorrer com eles o que ocorre comigo: uma total inaptidão a tudo que não se refira ao lirismo e ao amor. Se dependesse de mim e dos bem-te-vis, o mundo ainda não teria começado a se mover. A ideologia dos bem-te-vis, e a minha, é serena, com tendências a súbitos impulsos e arroubos apaixonados, seguidos de longas apatias.

Contabilidade

Afinal
para quem
estando em coma
um dia também
a outro se soma
ponto a ponto
na conta final
ou se faz
algum desconto?

Viaduto

Se um dia for mesmo fazer aquilo, para dar um toque literário há de ser no Alcântara Machado.

Descrédito

Que coisa ridícula, essa.
Promete os pulsos cortar,
Na corda se pendurar,
E fica só na promessa.

"Se minhas mãos pudessem desfolhar", de García Lorca

"Pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
a beber na lua
e dormem as ramagens
dos arvoredos ocultos.
E sinto-me vazio
de paixão e música.
Louco relógio que canta
antigas horas mortas.

Pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante do que nunca,
mais distante do que todas as estrelas
e mais dolente do que a mansa chuva.

Tornarei a te querer como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?

Se a névoa dissipa-se,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!"

(Do livro Poemas de amor de Federico García Lorca, tradução de Floriano Martins, publicado pela Ediouro.)

terça-feira, 18 de junho de 2013

Pensa no que...

... aconteceria se os manifestantes descobrissem que ele é um entusiasmado defensor da servidão: no dia em que o amor poupa suas costas das chibatadas, ele imagina o que terá feito de errado para ser tratado assim pelo seu amado senhor.

O meu país

Vejo e ouço os brados das multidões, pela tevê. O Brasil parece ter se redescoberto repentinamente e cada pedaço do país vibra. Falta só sair da gaveta a expressão "do Oiapoque ao Chuí". Talvez alguém tenha requerido patente e ela não possa ser usada sem o pagamento de direitos. Meu coração se entusiasma, na pequena parte de civismo que ainda conserva. Descobrir isso, esse pequeno território do amor ocupado pela noção de cidadania, me fez certo mal. Eu imaginava ter dado o coração inteiro ao amor. No jargão político antigo, eu sou um entreguista. Antes que me confundam, deixo claro, com uma frase que imagino ser de Taiguara: o amor é o meu país.

Assim como...

...  qualquer outra riqueza, o amor, a maior de todas, é sempre deplorado quando acaba. Também o sol de uma tarde de verão, quando se vai, vai-se com lágrimas. Não deveria ser assim. Quem poderia garantir que o amor, se perdurasse, manteria seu brilho? E poderia por acaso o sol, um dia, impedir que a noite chegasse? Cantemos a riqueza enquanto ela durar - a do amor e a da natureza - e depois a conservemos em nossa memória agradecida.

Cartografia

Naquele dia
enquanto alguém com a mão
buscando o mútuo prazer
teu corpo percorria
eu tentava percorrer
com a imaginação
a mesma geografia

Naquele dia
talvez tenhas sentido
além do contato
da mão quente
o tato da mão fria
da minha frustração
e da minha agonia.

Soneto da única alegria

Se tu pudesses perdoar
As mágoas que te causei
E as que talvez haverei
Ainda de te provocar

Eu poderia explicar
Que sempre que te magoei
Foi apenas porque errei,
Não por querer-te magoar.

Querer magoar-te seria
Ferir a única alegria
Que até agora conheci

(Aquela que me mostraste,
Aquela que me ensinaste
E eu ainda não aprendi).

Um trecho de Franz Kafka

"Ora, essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a censurar em mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a a cada passo; se fosse possível dividir a vida em partes mínimas e cada partícula pudesse ser julgada em separado, certamente qualquer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento para ela. Já me perguntei várias vezes por que a exaspero tanto; pode ser que tudo em mim contrarie o seu sentido de beleza, o seu sentimento de justiça, os seus hábitos, as suas tradições, as suas esperanças; existem naturezas que se contradizem desse modo, mas por que ela sofre tanto com isso? Não há nenhuma relação entre nós que pudesse forçá-la a sofrer por minha causa. Ela só teria que se decidir a me ver como alguém completamente estranho, o que aliás sou: não me oporia a essa decisão, mas a receberia muito bem; ela teria apenas que se decidir a esquecer da minha existência, que eu por sinal nunca impus ou imporia a ela - e todo o sofrimento sem dúvida acabaria."

(Do conto "Uma mulherzinha", do livro Um artista da fome, tradução de Modesto Carone, publicado pela Editora Brasiliense.)

Gostaria de...

embebedar-se de amor, chafurdar nele como se fosse o pior dos pecados, empapuçar-se, empanzinar-se dele, encharcar-se, degradar-se, desmerecer-se, ter gravada no peito a letra escarlate da desonra, ser apontado como usuário do amor, ser preso, encarcerado, levado a júri, condenado, degradado, degredado, posto num poste, apedrejado. Gostaria de, pelo amor, ser exorcizado, excomungado, amaldiçoado. E, morrendo de fome e sede num cárcere de segurança máxima, recusar pão, água e - por mais uma depravação inspirada pelo amor - alimentar-se só de rosas e beber só o leite dos lírios. Gostaria de babar e que, da baba da sua insanidade amorosa, nascessem borboletas brancas que aderissem às nuvens claras das manhãs.

Olhou-se hoje...

... no espelho e viu, com orgulho, que estão se acentuando os olhos encovados, as rugas, os lábios murchos, à prova de sorrisos, e todos os outros sinais que distinguem os viciados em amor.

O vento...

... me traz ainda uns restos de brados, de palavras de ordem, de gritos jovens acordando a velha democracia. Imagino sentir um pouco do cheiro daquilo que os jornais e as tevês chamam de bombas de efeito moral. Sinto que há um alvoroço novo no ar, uma expectativa. Não se sabe muito bem o que é, mas alguma coisa está enfim acontecendo. Gostaria de participar disso, seja lá o que for, mas há muito só tenho vida, alma e coração para um sentimento que tem também suas batalhas, seus clamores e seu burburinho, mas que eu, egoísta, não divido com ninguém. As poucas forças que ainda tenho estão todas à disposição desse sentimento. Que os outros fiquem com a liberdade, a justiça, a honra, a verdade. A mim me bastaria o amor e, se ainda ergo o mutilado estandarte, é por ele, e só por ele.

O sobrevivente

Das lutas pelo amor
ele sempre volta feliz

Cansado
ferido
estropiado
vencido

Mas olhando
para ele
para o rosto ensolarado
ninguém diz.

Revolucionário

No tumulto da passeata, com vinte mil manifestantes, ele é o único original. Vai gritando vivas ao amor, enquanto pensa nas primeiras estrofes da ode revolucionária que escreverá: Tributo a Priscylla.

Soneto dos verões restantes

Mesmo sendo inepto na arte
De contar as estações,
Penso ter, para louvar-te,
Mais quatro ou cinco verões.

São poucos, sei, e também,
Para cantar-te a beleza,
Não tenho nem a arte e nem
A necessária destreza.

Mas enquanto um sol houver
Eu te cantarei, mulher,
Com fogo ou com leve chama.

E, muito ou pouco, verás
Que tudo receberás
Daquele que tanto te ama.

Pacaembu

O grito de gol
na arquibancada
sacudiu o edifício
derrubou um vaso raro
da sacada do apartamento

Caro desperdício

No mesmo momento
o juiz ergueu o braço
e apitou impedimento.

Os quatro gatinhos

Eram quatro gatinhos
um feiinho
outro um pouquinho
mais feio
o terceiro feio
demais

O quarto
bonitinho
morreu
de doença pertinaz.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Sobre os velhos mestres. O que eu sinto sobre eles (todos eles - escritores também, naturalmente) é que, quanto mais se vive com eles, melhor para nosso trabalho. É quase um caso de vivermos dentro de um mundo ideal - o mundo que desejamos expressar. Você sabe o que quero dizer? Por essa razão, acho que, se me apoio em homens como Chaucer e Shakespeare e Marlowe e até Tolstói, mantenho-me muito mais próxima daquilo que quero fazer, do que se confundir as coisas, lendo uma porção de homens menores. Gostaria de fazer dos velhos mestres meu pão de cada dia - no sentido mesmo em que é usado no Pai-Nosso -, fazer deles uma espécie de alimento essencial. Todo o resto - bem - vem depois.

(Do livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

Um poema de García Lorca

"ENCONTRO

Nem tu nem eu estamos
em condição
de nos encontrarmos.
Tu... pelo que já sabes.
Eu a quis tanto!
Segue essa veredinha.
Nas mãos,
tenho os furos dos cravos.
Não vês como estou
dessangrando?
Não olhes nunca para trás,
vai devagar
e reza como eu
a São Caetano,
que nem tu nem eu estamos
em condição
de nos encontrarmos."

(De Poemas de amor de Federico García Lorca, tradução de Floriano Martins, publicado pela Ediouro.)

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Priscylla

Se ela não se chamasse Priscylla, ele acha que talvez fosse menor seu encanto. Ser Priscylla é parte do feitiço de que ele é uma vítima agradecida. Não sabe o que mais lhe agrada no nome. Tentou desvendar o mistério investigando sentimentalmente cada letra, mas, não chegando a nenhum resultado, descobriu que é o conjunto que o fascina: a primeira sílaba, o pris, subindo delicadamente até o cyl, permanecendo um instante no alto e descendo com suavidade pelo lla, como se precisasse descansar depois de executar tamanha beleza. Andou comparando Priscylla com outros nomes e quase se deixou seduzir por Letícia. Desistiu a tempo.

Dizer boa noite...

... é, como tantas outras, uma coisa que já fez bem melhor.

Esgar

Pendia da trave, enforcado, e sorria como se a corda lhe fizesse cócegas.

Se um dia...

lhe der na veneta (favor consultar o dicionário de expressões arcaicas), entrará numa maratona. Ficará pelo menos vinte e quatro horas, sem descanso, escrevendo textos sobre o amor no blog. Não quer ser descoberto pelas redes sociais. Uma pessoa lhe basta.