sexta-feira, 23 de julho de 2010

Lírica (253) - Passos

O homem andava pelas ruas. Estava em São Paulo, mas poderia estar em qualquer outra cidade do mundo, ou em nenhuma, porque era somente seu corpo que esperava a abertura do sinal de pedestres, que atravessava para a outra calçada e passava diante das pessoas e das lojas. Estava em São Paulo, porém numa São Paulo que ele percorria não com os olhos, mas com a memória, uma cidade embriagada por um perfume soprado pelo vento como um feitiço leve, na manhã de um remoto dezembro. Estava numa São Paulo que vivia só nas suas recordações doloridas, na reconstituição de um dia tão assombrosamente singular que às vezes ele se perguntava se não tinha sido apenas o eco de um sonho. Andava de cabeça baixa, porque sabia que, depois da célebre manhã dezembrina, vinha caminhando na direção oposta àquela onde encontrara sua felicidade ou pelo menos a mais generosa insinuação do seu destino. Andava e não ouvia seus passos, não porque estivessem mortos, mas porque ele se recusava a compactuar com o som de uma caminhada que, levando-o aonde o levasse, não o levaria jamais ao único lugar, agora perdido para sempre na névoa, e ao único e irreconquistável tempo no qual ele desejaria estar.

2 comentários:

  1. Raul..
    Fiz uma primeira leitura apressada da Lírica 253... grande texto..
    abs. Pedro

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  2. Pedro, obrigado. Tenho me doado inteiro nessa série Lírica. Pena que quase nunca os textos exprimam completamente meu estado de espírito. Para exprimi-lo, eles precisariam fazer o leitor chorar. Não é algo lá muito simpático para se desejar a quem faz a gentileza de ler o blog. Comecei hoje uma nova série: Situações, na qual pretendo manter também a sensibilidade exaltada, mas não tanto quanto na Lírica, que me deixou doente, ou quase.

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