quarta-feira, 21 de julho de 2010
Lírica (218) - Orador
Uma tarde, ele apareceu na esquina e começou a gesticular e falar. Pensou-se que era mais um dos que de vez em quando, numa cidade grande, se põem a debater causas perdidas. Entre várias hipóteses, disseram que representava os sem-teto, ou os ambientalistas, ou os defensores dos direitos humanos, mas a única palavra que se conseguia ouvir de sua algaravia, abafada pelo fragor do trânsito, era amor. Pela idade presumida, chegou a julgar-se que ele fosse um remanescente da época do power-flower, gritando ainda slogans tantas décadas depois. Dia após dia, com chuva, sol, calor ou frio, ele estava ali na esquina, a qualquer hora, como se fosse os trezentos e cinquenta de Mário de Andrade, falando sem parar palavras das quais a única inteligível continuava sendo amor. Um dia, alguém, um forasteiro, depois de olhar bem para o homem, disse aos que por ali passavam que o conhecia e garantiu que ele não tinha mais de trinta anos, devendo-se seu desvario, suas rugas e seus olhos tristes a uma desafortunada experiência que sofrera, e que se resumia toda naquela palavra que ele continuava repetindo, no meio de tantas incompreensíveis: amor, amor, amor.
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