quinta-feira, 8 de julho de 2010
Lírica (198) - Borboleta
Quando vivo, ninguém pressentiu nada incomum nele. Poderiam estranhar a luz que ficava acesa a madrugada inteira no seu apartamento, mas ninguém pareceu tê-la visto, nunca. Se vissem, talvez suspeitassem de alguma coisa, mas certamente não dos poemas que ele, insone, escrevia. Pensariam possivelmente em alguma outra dissipação, como o álcool ou o jogo, quem sabe mulheres, o que explicaria como, tendo vinte e três anos, parecia um velho, com seu corpo e seus olhos de esqueleto. Morreu com esses vinte e três anos, de inanição e inapetência para a vida. A luz estava acesa quando a empregada que ia todas as quartas-feiras o encontrou debruçado sobre a mesa, em cima de uma pirâmide de folhas de papel - versos, queixas de amor, rimas sobre gatos e passarinhos. Um primo encarregado de tratar do enterro e de recolher os objetos do morto surpreendeu-se quando, ao pegar a pilha de poemas, viu em cima dela uma borboleta que só se afastou depois de ser várias vezes enxotada. Já na rua, levando numa mochila média tudo que recolhera, espantou-se ao notar que a borboleta o seguia. Pegou um táxi, um avião e, ao chegar à sua casa, abrir a mochila e apanhar os poemas, viu esvoaçar em volta deles uma borboleta que, embora assombrado, ele julgou ser a mesma. Encaminhou todas as folhas a um amigo, professor de literatura, que um mês depois, em duas páginas, expressou sua opinião sobre os poemas: infelizmente, eram toscos e sem brilho, exceto um, que falava de uma borboleta. Era o único no qual ele tinha sentido alguma vida. "O que foi, parecia que tinha uma borboleta voando, coisa assim?", perguntou o primo do poeta morto. O professor de literatura assumiu um ar de quem compartilha algo incompartilhável e disse, baixo: "É, coisa assim."
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