quarta-feira, 30 de abril de 2014

Recado (urgente) para o Xico Sá

Que alguém, entre os improváveis leitores deste blog, faça chegar este apelo ao Xico. Xico, você está devendo uma ode à Núbia Lafayette. Eu a ouvi ontem na trilha do Pé na cova cantando "Mata-me depressa" e, como tão bem se dizia quando sabíamos dizer as coisas do amor, derramei rios de lágrimas.

"Pé na cova"

Ontem, mais um episódio desses que fazem imaginar, por uma hora, que a tevê pode ser mesmo um instrumento de arte. Um Fellini à moda tropical.

Tira-gosto

De vez em quando convém dar ao amor alguns petiscos sexuais, para que não cresça como um menino boboca.

Aspiração

Morrer deveria ser bonito sempre, como uma pequena obra de arte guardada num estojo.

Feridas

Te lembrarei com ternura. Posso fazer diferente? Ninguém antes me havia ferido com tanto amor, ninguém me havia matado com tanta doçura.

Meteoro

Do luxo à extrema pobreza
Foi rápida a descensão:
O amor foi toalha de mesa,
Agora é pano de chão.

Soneto de como o amor foi um rio

O amor era como um rio
Que as águas encapelava
E rumo ao mar as lançava
Como um animal bravio.

Como leoa no cio,
Tudo ao passar arrastava
E seu rugido causava
Um pavoroso arrepio.

As águas foram rareando,
O rio foi se amansando
E agora não ruge mais.

Quem há de esperar rugidos
Se em seus meandros poluídos
Nadam mortos animais?

Trecho de "Aurélia", de Gérard de Nerval

"Amei durante muito tempo uma dama a quem chamarei de Aurélia e que perdi para sempre. Pouco importam as circunstâncias desse evento que devia ter uma influência tão grande em minha vida. Cada um pode buscar em suas lembranças a emoção mais pungente, o golpe mais terrível desferido sobre a alma pelo destino; há então que se resignar a morrer ou viver - direi mais tarde por que não escolhi a morte. Condenado por aquela a quem amava, culpado de uma falta cujo perdão não tinha mais esperança, só me restava lançar-me em exaltações vulgares. Fingindo alegria e indiferença, corri o mundo loucamente apaixonado pela instabilidade e pelo capricho. Das populações longínquas
eu gostava sobretudo dos modos e costumes bizarros, parecendo-me assim abstrair as condições do bem e do mal, os termos, por assim dizer, daquilo que é sentimento para nós franceses. Que loucura, dizia a mim mesmo, amar assim platonicamente uma mulher que não mais te ama! Isso é culpa das minhas leituras; levei a sério as invenções dos poetas, e fiz para mim uma Laura ou uma Beatriz de uma pessoa comum de nosso século... Passemos a outras intrigas, e esta logo se apagará. O delírio de um alegre carnaval numa cidade da Itália afastou todas as minhas ideias melancólicas. Sentia-me tão feliz e aliviado que compartilhava minha alegria com todos os amigos, e, nas minhas cartas a eles, punha um estado constante de espírito que não passava de superexcitação febril."

(Tradução de Luís Augusto Contador Borges, publicação da Iluminuras.)

A poesia

Para a maior parte dos leitores, a poesia é ainda relacionada com coisas delicadas, como joias, caixinhas de música e aqueles antigos álbuns de adolescentes. Ela certamente não é só isso, mas, se fosse, menos livros ficariam encalhados nas estantes das livrarias.

A palavra amor

Às vezes a palavra amor entala na sua garganta velha. Quando ele tosse, para expeli-la, ela se fragmenta e pela sala começam a esvoaçar borboletas.

Extravio

Por uma dessas artimanhas do destino, o carteiro deixou cair de sua mochila um envelope que deveria entregar no número 222. Uma repentina chuva levou o envelope rua abaixo e o fez entrar na correnteza formada na avenida. Na manhã seguinte, um menino o achou. Dentro havia uma carta com palavras estranhas para ele, como excelsa e adorada, borradas pela água, e um fragmento de legítima estrela que ele conservou até resolver trocá-lo por cinco figurinhas da Copa.

Quando ele fala de amor

Toda vez que fala de amor, ele atrai olhares piedosos. É como se uma árvore há muito tempo morta perguntasse ao vento a opinião sobre seus galhos e suas flores. Ou como se o leito seco de um rio se gabasse dos seus peixes. Ele fala, fala, seus olhos brilham, suas palavras se adoçam, mas quem se dá ao trabalho de escutá-lo não faz mais que sorrir, aquele sorriso condescendente que costuma se oferecer aos insanos para cumprir a exigência de pelo menos uma boa ação por dia.

Reflexão

Chega um momento em que viver e morrer têm o mesmo significado. Por que, então, viver? Por que, então, não morrer?

A doença

Notando que estertorava,
Lhe deram anestesia
E vupt!, para a cirurgia.
Porém o mal que o matava
Ninguém ali pressentia
E nem sequer suspeitava.
Sofria só porque amava.
Morreu no sétimo dia.

Ouropel

Brilhou como ouro, fulgia
Ao sol, freneticamente.
Amor fictício, luzente
Berloque, bijuteria.

Na pior (para o Xico Sa)

Jamais se sentiu assim.
Se fosse um poste, olharia
Para os cães e imploraria:
Por favor, mijem em mim.

Contravenções

Pedir perdão a Aristarco
pela transgressão gramatical
e a Stéphane Mallarmé
pela rima banal
mas escrever mesmo assim
e não ter pejo de repetir
eu amo você
eu amo você

Porque a poesia
não é só aquela
engravatada e endomingada
que se encontra na livraria.

Soneto do amor brincalhão

Morremos a cada dia
Em que, para nos testar,
O amor nos força a provar
O pão da melancolia.

Quão diferente seria
Se ao invés de se ausentar
Depois de nos avisar
Que nunca mais voltaria

Ele viesse de repente
E dissesse sorridente,
Com seu jeito de palhaço:

Estão zangados comigo?
Melhor descrer do que digo
E acreditar no que faço.


Modos de ser

Enquanto, nela confiando,
Ele vive alegremente,
Ela, dele desdenhando,
O trai sempre e, alegre, mente.

Foto

Um dos motivos pelos quais nunca se consegue melhorar o aspecto dos suicidas é que não se pode pedir-lhes que deem um sorrisinho.

Norma

Um poeta de verdade, um que mereça ser assim chamado, deve estar sempre à beira de um colapso nervoso. E deve estar sempre disposto a despencar. Poetas mentalmente sadios deveriam ter a licença cassada.

"A um oportunista", de José Paulo Paes

"o barco naufraga       os ratos
fogem solertes (no cais
ronda a perfídia dos gatos)"

(De Poesia completa, publicado pela Companhia das Letras.)

terça-feira, 29 de abril de 2014

Lógica

Então o que parecia
Sombrio e sem solução
Se alterou, de supetão:
Ficou bem pior no outro dia...

Diante do espelho

Se és um escritor calhorda
E escreves só coisas porcas,
Por que não pegas a corda,
O banquinho e não te enforcas?

Prece

Que falte à vida o que for,
A força, a fé, a alegria.
Mas nunca lhe falte o amor,
Pão nosso de cada dia.

Esperança

Órfão do amor e da sorte,
Projeto nenhum o anima.
Espera apenas que a morte
Não seja só uma rima.

Anseio

Quisera ter a coragem,
Com lâmina ou comprimido,
Com corda ou com estampido,
De fazer a última viagem.

Festa (para o Gianluca e a Nicole)

Nunca houve festa mais rara
E nunca mais haverá
Que as bodas da arara Quara
E do jacaré Paguá.

Ambivalência

O livre-arbítrio não é essencial só para a vida. Ele torna também a morte uma questão de escolha.

A formiga (para o Gianluca e a Nicole)

No saguão do aeroporto, a formiga ia na direção do portão de desembarque, depois recuava. Eu a observei por uns cinco minutos e ela fez sempre o mesmo: ia e voltava, ia e voltava. Finalmente parou e recolheu no chão uma migalha, uma iguaria, certamente despachada de algum país distante por uma amiga.

Soneto da possível lembrança

Talvez te lembres de mim
Quando outros forem os dias
E as dores e as alegrias
Tiverem chegado ao fim.

Talvez te lembres de que eu
Te confessei com ardor
Que sempre foi teu amor
A força que me moveu.

Talvez te lembres (não sei
Se por amor ou bondade)
De tudo que disse a ti

E sintas que te falei
Somente e sempre a verdade
E que jamais te menti.


O acompanhante (para o Gianluca e a Nicole)

Quando, já com o doente dentro, a ambulância saiu, o cachorro da casa pôs-se a correr atrás dela. O doente voltou na manhã seguinte. O cachorro, nunca mais.

Soneto do amor execrável

Quando a pureza despreza
E em sordidez se consome,
O amor não vale o que pesa,
O amor não paga o que come.

O amor verdadeiro, o amor
Que se canta em verso e prosa,
Se a algo comparado for,
Que seja sempre a uma rosa.

Quando o amor é simplesmente
Um item, um ingrediente
Para o prazer aumentar,

Ele não vale o sabão
E a esponja que do colchão
As manchas irão tirar.

Um trecho de García Márquez, sobre editoras

"Os concursos literários patrocinados por editoras só favorecem a elas próprias. Os editores pensam, desde o dia de infortúnio em que foram inventados, que eles é que fazem aos escritores o favor de publicar-lhes seus livros, sobretudo os escritores novos, e que, por conseguinte, são eles que devem pagar pela publicação. Um editor me disse há pouco que a indústria editorial não é feita pelos escritores, nem pelos escritores e editores juntos, mas só pelos editores. Disse-lhe que era o mesmo que pretender que a indústria petrolífera é feita só pelas companhias petrolíferas, sem a modesta colaboração do petróleo. Esta concepção messiânica de seu próprio destino foi sem dúvida o que induziu as editoras ao embuste dos concursos literários. Elas os organizam com pretensão de benfeitores da humanidade e arcanjos da cultura, quando a única coisa que fazem na realidade é promover o nome de suas próprias empresas à custa dos escritores que não têm quem os publique, como não tiveram no início de suas vidas nenhum dos escritores que foram grandes no mundo."

(Do livro Obra jornalística de Gabriel García Márquez - volume 5 (crônicas), tradução de Léo Schlafman, publicado pela Editora Record.)

Fernanda Lima

Homens notáveis, mulheres extraordinárias transformam-se em ícones. É a imortalidade possível para um ser humano. Os ícones não mudam, não se alteram. Os ícones representam a perfeição, a plenitude, o auge. A perfeição, a plenitude e o auge são irretocáveis. Sobre eles já não têm jurisdição nem o passado nem o futuro. Nesse sentido, o de ícone, Fernanda Lima é já irretocável.

Eu também

Eu também me envergonharia de dizer que estou com o coração despedaçado - se não fosse exatamente isso que sinto.

Esconderijo

Na gaveta esquecida, onde
As cartas amareladas
Estão, e as juras goradas,
O amor, como um réu, se esconde.

Soneto do que se deve dar ao amor

Quem todo ao amor se entrega
Comete grave tolice,
Pois fazendo isso se nega,
Como se não existisse.

E a quem ao amor recusa
Aquilo que o amor lhe pede
Não deve se dar escusa,
Porque também mal procede.

O amor, assim como a vida,
Tem sua própria medida,
Que há de ser sempre acatada.

Não lhe dê tudo, jamais,
Porque há de pedir-lhe mais,
Nem nunca o deixe sem nada.

Velório, sala D

A menina de quatro anos entrou com a mãe e o pai, sorriu para os parentes, e também para os desconhecidos, e perguntou: "Por que todo mundo veio aqui ver o vô dormir?"

Ainda

No entanto tu andas ainda, e outros esforços teus, como abrir os lábios para tentar dizer aquele nome que nunca consegues, podem também ser considerados sinais de que continuas vivo.

Fundo

Bem para o fundo eu quero ir,
Para o fundo mais profundo,
Não respirar, não ouvir,
Morrer (e matar o mundo).

Megalomania

Talvez, ao contrário do que pensas, não sejas tão mais pecador do que os outros. É provável que essas abominações que apregoas não passem de mais uma das manifestações da tua mania de grandeza.

Teu sonho

Gostaria de ver um pouco do teu sonho. Ver como, nele, pegas teu gato, sorris para ele, o afagas. Ver como pegas teu cachorrinho, esfregas o nariz no dele, o afagas. Ver se sonhas comigo, se me abraças, se me afagas.

Soneto de quem viveu de amor

Vivi de amor no passado.
Agora, estando ele já findo,
Morrer seria abençoado,
Morrer seria bem-vindo.

Melhor morrer que viver
Pensando constantemente
Como o hoje podia ser
Se o ontem fosse o presente.

Melhor é tudo olvidar,
Ficar assim, sem pensar
Em nada nem em ninguém,

Naqueles tempos felizes
Que deixaram cicatrizes
E mais mal fazem que bem.

"Palavras", de Sylvia Plath

"Machados
Que batem e retinem na madeira,
E os ecos!
Ecos escapam
Do centro como cavalos.

A seiva
Mina em lágrimas, como a
Água tentando
Repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e racha,
Crânio branco,
Comido por ervas daninhas.
Anos depois eu
As encontro no caminho -

Palavras secas, sem destino,
Incansável som de cascos.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Governam uma vida."

(De Poemas de Sylvia Plath, tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, publicação da Iluminuras.)

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Sinais

Ah, como foste inocente.
Não viste que a juventude
Podia ser a semente
Da tua decrepitude?

Terceirizando

Tão fácil, quando se quer,
A culpa toda jogar
Nos ombros de uma mulher
Ou num escárnio do azar.

Soneto de como os dias passam por mim

Agora os dias me vêm
Como quem passa na frente
De uma casa decadente
Onde não mora ninguém.

Nenhuma vergonha têm
Em passar rapidamente
E, se me veem, simplesmente
Simulam que não me veem.

Resignado à minha sina,
Me oculto atrás da cortina
E só os vejo passar.

É melhor que seja assim,
Que nunca olhem para mim,
Que não me vejam chorar.

Um trecho de García Márquez, sobre seu temperamento arredio

"Disse uma vez que toda honraria se paga, todo subsídio compromete e todo convite se fica devendo. Por isso tenho sido sempre tão cuidadoso em minha vida social. Nunca aceitei mais almoços do que os dos meus verdadeiros amigos. Há muitos anos, quando era crítico de cinema e vivia pressionado pelos exibidores, conservava sempre o ingresso de cortesia para provar que não fora usado, e pagava a entrada. Não aceito convites de viagens com despesas pagas."

(De Obra jornalística de García Márquez, volume 5 - Crônicas, tradução de Léo Schlafman, publicado pela Editora Record.)

Se fores

Se fores à rua onde mora tua amada, encontrarás, se ainda por lá não passaram os homens da limpeza, teu último soneto, misturado a laranjas espremidas, embalagens da pizza dominical e latinhas de cerveja. As letras com que escreveste os dois quartetos e os dois tercetos estarão úmidas, mas serás ingênuo se pensares que ali estão as lágrimas da bem-amada. Se prestares atenção, ainda ouvirás, ecoando no ar, as gargalhadas com que foram acolhidos teus versos. O som desses risos ficou pendurado numa árvore e faz balançar ainda um de seus galhos.

Recado matinal

São mais favoráveis as manhãs para quem já não tem esperança nenhuma senão a de lançar recados ao vento. Os ruídos urbanos ainda não fixaram seu reinado, o ar parece mais leve e quem sabe o vento encontre, numa manhã como esta, deste simpático abril, o caminho, e conduza nossas palavras aos ouvidos certos. Amor, como sabes ocultar bem teu paradeiro!

Sobriedade

Não gastes toda a tua tristeza de uma vez. Guarda um pouco dela. Talvez um dia revejas aquela que abriu em ti essa fonte de lágrimas, e haverás de ter ao menos algumas gotas, para que ela saiba que, se alguém mentiu, não foste tu.

Cotação do dia

Quanto vale a tristeza, hoje? Quanto valho eu? Livrei-me do último grão de alegria e cada poro do meu corpo foi regado por minhas lágrimas.

Fernanda Lima

Fernanda Lima tem um
Sorriso franco, solar,
Mais belo, no seu brilhar,
Do que sorriso nenhum.

O assunto

Não ter nunca nenhum assunto senão o amor é ter sempre o melhor de todos os assuntos.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é uma península cercada de beleza por todos os lados, menos por um, que a liga a uma beleza ainda maior.

Prospecção

Dizer o quê? Que palavras
Definirão o tesouro
Que no meu peito tu lavras,
Que nome dar a isto, a este ouro?

Soneto de como tratamos o amor naquele inverno

Nós nos lembramos ainda do momento
Em que ouvindo os conselhos da razão
Desdenhamos a voz do coração
E declaramos nulo o sentimento.

Livres do amor e do seu sofrimento,
Dos cansativos lances da paixão,
Nós dois já não pensávamos senão
No ócio, na paz e no recolhimento.

Fechamo-nos em casa. O amor eterno
Ao relento ficou naquele inverno,
Gritando o nosso nome e unhando a porta.

No dia em que afinal a porta abrimos,
Horrorizados sua imagem vimos,
Irremediavelmente fria e morta.

O elixir do amor

O amor é uma coisa velha
E velho o seu elixir.
Composto de água e groselha,
É feito para dormir.

Tédio

Estás enfadada, eu sei.
Desculpa-me, por favor.
Só trago e sempre trarei
O mesmo afeto e fervor
E aos teus ouvidos direi
A mesma palavra: amor.

Um trecho de Walt Whitman

"Sei que sou sólido e são,
Os objetos do universo convergem eternamente para mim,
Tudo foi escrito
para mim e devo decifrar o seu sentido.
Sei que sou imortal.
Sei que esta minha órbita não pode ser traçada pelo compasso de um carpinteiro,
Sei que não me apagarei como o fogo do archote que uma criança leva pela noite.

Sei que sou majestoso,
Não atormento o meu espírito para quem se defenda ou explique,
Sei que as leis elementares nunca se desculpam,
(No fim de contas, reconheço que o meu orgulho não é mais alto do que o nível
           onde edifico a minha casa).
Existo como sou, e isso basta.
Se mais ninguém no mundo fica satisfeito,
E se todos e cada um o sabem fico satisfeito.

Há um mundo que o sabe e é sem dúvida o mais vasto para mim, e esse sou eu
             próprio,
E se o reconheço hoje ou dentro de dez mil anos ou dez milhões de anos,
Alegremente o posso aceitar agora, ou alegremente posso esperar.

O apoio do meu pé é entalhado em granito,
Rio-me daquilo que chamas dissolução,
E conheço a amplitude do tempo."

(Do livro Canto de mim mesmo, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 27 de abril de 2014

Uma letra

Numa mudança de letra, a síntese do amor: afeição = aflição.

Fernanda Lima

Bastaria dizer que Fernanda Lima é uma mulher. Dizer que é bela é já um ornato. Mas quem negará a uma bela mulher o adorno de um brinco ou de um colar, o brilho justo de um adjetivo?

Lusinha (para os Loucos por Futebol)

Na primeira hipótese
Fica na A.
Na segunda,
Fica na B.
Na terceira
Vai para a C.
Na quarta,
Quem saberá?
Talvez a CBF,
Quem sabe o STJD.

Cada verso é filho do amor", de Marina Tsvetáieva

"Cada verso é filho do amor,
Ilegítimo e desventurado,
Primeiro - de uma rodada
À mercê dos ventos - colocado.

Para o coração - inferno e altar,
Para o coração - infâmia e paraíso,
Quem é o pai? Será o czar?
Talvez o czar, talvez o ladrão."

Da coletânea Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, publicada pela Martins Fontes.)

www.rubem.wordpress.com

Falo hoje da generosidade das crianças, que tudo querem salvar no mundo. Ah, se pudéssemos manter esse espírito, sem nos contaminarmos com a descrença que vem com a chamada idade adulta.

Bom dia

Bom dia a todos. Os que irão morrer de amor vos saúdam e vos desejam, quando o vosso dia vier, essa, que é de todas a mais abençoada das mortes.

Espirito filosófico

"Boa tarde."
"Boa tarde por quê?"

Morrer de amor...

... é, daqueles costumes antigos, o que eu acho mais bonito.

Meio difícil

Pedir sensatez a um homem tomado pela paixão amorosa é pedir à chuva que não chova.

Nas pequenas

Nas pequenas frases pode não haver sabedoria, mas há menos espaço para burrices.

Engano

Deixei-me todo em teus braços
E neles pus a esperança.
Eram frouxos, porém, lassos,
Indignos de confiança.

Soar literariamente

Ao sol caminho. Poderia dizer que caminho ao sol, mas me pareceria menos literário, e parecer literário tem sido minha maior busca e minha infelicidade. Inverter palavras é um dos truques que aprendi. Pena que tenham me ensinado tão poucos.

Gênio

O primeiro passo para a infelicidade é sentir-se gênio. O segundo é óbvio e imediato: sentir-se incompreendido.

Soneto da chama extinta

Já tantos meses passaram
Desde o seu primeiro olhar,
Que mal conseguem lembrar
Se houve um tempo em que se amaram.

Já tantos anos deixaram
O seu cansaço ao passar
Que hoje é inútil buscar
Neles provas, se as deixaram.

Às vezes pensam que sim,
Porém é confusa a história
Desde o início até o fim.

Houve uma chama, parece,
Que se mantém na memória
Mas já não brilha ou aquece.

Um poema de Emily Dickinson

"Tão antiga quanto Deus,
A Verdade é Sua identidade gêmea
E, assim como Ele, suportará
Uma coeternidade.

E haverá de perecer no dia
Em que Deus, carregado, sair
Da mansão universal
Como divindade sem vida."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)

sábado, 26 de abril de 2014

Fernanda Lima

Dizer Fernanda Lima é dar aos lábios o mesmo sabor de mel que sentem quando dizem perfeição ou completude.

Poesia e prosa

Na prosa, se começa a chover, abrem-se guarda-chuvas. Na poesia, pode-se esperar o milagre do arco-íris.

A bicicleta vermelha

Ele pensa na palavra amor e, antes mesmo de pronunciá-la, seus lábios abrem um sorriso de menino, e é como se estivesse com catorze anos e tivesse diante dos olhos a imagem da garota que com a bicicleta vermelha pedalava na direção do crepúsculo. Cecília, ah, Cecília, que nos sonhos o instigava a segui-la para dentro da noite e ajudá-la a colher as estrelas nascentes.

Incompatíveis

Por desencontros pequenos,
Não nos veremos jamais.
Para um, o que era somenos
Era para o outro somais.

Soneto da desejavelmente boa lembrança

Talvez te lembres de mim,
Quem sabe hoje ou amanhã,
Num dia sombrio assim,
Numa tristonha manhã.

Talvez tu sintas saudade
Ou talvez não sintas nada.
O que foi ontem verdade
Hoje é verdade negada.

Se alguma coisa sentires
Que entre as boas possas pôr,
Sem o ardil de me mentires,

Não me escondas, por favor.
Um nada, uma ninharia,
Fará florir o meu dia.

"Lamento de outono", de Yu Xianji

"Pesa a paixão, amar é sofrer sozinha
Mais, se é outono: vento, luar tomam o pátio
Canta o vigia as horas junto a meu quarto
Tinge-se meu cabelo à branca luz fria."

(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicação da Editora Unesp.)

Sábados

Antigamente, os pastéis da feira eram para mim como a madeleine de Proust. Metaforicamente eram como rosas, de rosas era seu olor, e eu os mordia como se mordesse pétalas, devagar, para tornar menor meu pecado e para melhor saboreá-lo.

Cotação do dia

Houve um tempo em que fazia sentido gritar por amor.

Providências

Depois do final inglório,
Que tudo esteja a contento:
Que seja curto o velório
E breve o sepultamento.

Oração

Amor, meu Deus, meu senhor,
Amor, meu guia e meu amo,
Vos amo e venero, amor,
E vosso poder proclamo.

Sobreviventes

Triste é termos sobrevivido ao naufrágio do amor e restar-nos contemplar o mar, agora manso, com inveja dos que se afogaram.

Não canto

Não canto o ribeirão
canto o arroio
não canto o trigo maduro
canto o joio
não canto o clarão
canto a escuridão
canto o escuro

Canto o direito
de ter um defeito
de aprimorá-lo
e de tornando-o perfeito
assim proclamá-lo

Não canto a glória
de ter o nome na história
canto o fracasso
canto o fiasco
canto a pequena glória
de ter sido
o menos conhecido
de todos os desconhecidos
e de morrer assim
e de assim permanecer.

Poderio

Não sou tão frágil assim.
Com minhas forças, tão fracas,
E minhas luzes, opacas,
Estou à altura de mim.

Mictório (para o Xico Sá)

A mão, discreta, o sacode,
Três vezes só, sem vigor.
Mais que isso é mau, não se pode,
É falta de pundonor.

Vezes cem

Quando acordava, Fernando Pessoa precisava sempre de algumas tentativas para lembrar quem era. Felizmente elas nunca passavam de cem.

Vila Alpina

Não

Não irás ver-me
não irás falar-me
não ousarás tocar-me

Temerás ressuscitar-me.

"Ocaso", de Georg Trakl

"Sobre o lago branco
Partiram os pássaros selvagens.
No crepúsculo sopra de nossas estrelas um vento gelado.

Sobre os nossos túmulos
Inclina-se a fronte despedaçada das trevas.
Sob carvalhos, balançamos numa nuvem prateada.

Sempre ressoam os muros brancos da cidade.
Sob arcos de espinhos
Oh, irmão, ponteiros cegos, escalamos rumo à meia-noite."

(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicado pela Iluminuras.)

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Amor, fase um

Não, não é o que foi que eu choro.
Isso já está esquecido.
O que me dói, e eu deploro,
É o que podia ter sido.

Poupa-me

Tu sabes como sou tolo.
Jamais me dês, por favor,
Um pingo sequer de amor.
Não saberia onde pô-lo.

Um poema de Yu Xuanji

"PARTINDO GALHOS DE SALGUEIRO

Cada manhã, um novo adeus. Recolho lágrimas,
como se joias, raras flores, nos salgueiros.
Quisera estéril a montanha à primavera,
nenhuma árvore, ninguém para chorar."

(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicada pela Editora Unesp.)


Pauliceia desvairada

Conheci ontem, na rua de baixo, um homem de cinquenta e dois anos que nunca foi assaltado. E já faz um mês que mora em São Paulo.

Pauliceia desvairada

Ao ter o terceiro carro roubado, o casal decidiu não comprar mais nenhum. Quando precisam, pegam um táxi. Hoje foram assaltados pelo motorista.

Uma indagação de Peppino Picarollo (para o Verissimo)

E se, por nossos maus fados,
A alma for vesga e corcunda,
Tiver os dentes cariados
E uma verruga na bunda?

Soneto da árvore solitária

Os passarinhos chegaram,
Suas árvores escolheram
E ali ficaram, viveram.
Em mim, porém, não pousaram.

Eu de chamá-los não canso
E os ramos meus lhes ostento
E peço a ajuda do vento
E os frutos todos balanço.

É tudo inútil, porém.
Chamo, chamo, e eles não vêm.
Que sejam amaldiçoados,

Pela peste perseguidos,
Pela desgraça atingidos,
Pelos gaviões dizimados.

A origem das guerras

No início, há sempre uma bunda. Depois é que surgem os soldados. No final, se o número de mortos comportar, encomenda-se uma epopeia a um poeta. E, como talvez os pósteros venham a ser pudicos, recomenda-se que ele substitua a bunda por um belo par de olhos e um sorriso celestial.

Neném

Trazer o amor ao colo e niná-lo, como se fosse um menino. Ele está morto, bem morto, mas quem precisa saber?

Novela

Feita a tomada e refeita,
Manoel Carlos disse: É pena.
Você seria perfeita,
Porém não se chama Helena.

"Recado tardio", de José Paulo Paes

"a praça? nunca foi do povo
nem com jeito
nem com dor

(que candor condor!)

quanto ao céu
de (cé) e de (u)s
devagar co'ardor

e co'andor condor!"

(De Poesia completa, publicação da Companhia das Letras.)

Uma das mil quatrocentas e quinze razões para não ler Haruki Murakami

"Ele não é um ser humano ruim. Aomame tentava se convencer. Ele até que transou bem. Teve inclusive o cuidado de segurar a ejaculação até o momento de ela gozar. O formato de sua cabeça e o estado de sua calvície também lhe agradavam. O tamanho do pênis também era dos bons. Era um homem educado, se vestia bem e não era do tipo mandão. Sua criação deve ter sido boa. Mas suas conversas eram maçantes a ponto de deixá-la irritada. Mas isso não era algo tão grave a ponto de ela ter de matá-lo. Com certeza não."

Essa coisa foi extraída do início de 1Q84, romance (!!!) de Haruki Murakami. Na orelha do livro, diz-se que Murakami deu aulas em Princeton. Não explica de quê - talvez de compostagem. Não é necessário ser crítico para jogar essa droga na primeira caçamba. No entanto, parece que os leitores já deram a essa literatice a honra de atingir uma trilogia. Será que o sexo anda tão mal praticado que isso possa causar ao menos uma comichão um palmo abaixo do umbigo? Comparado com ele, Carlos Zéfiro é um gênio. Imagino que os livros dos famosos tons de cinza trilhem o mesmo caminho. Livros que narram e detalham o sexo acabam sendo defendidos sob a suposição de que as críticas se dirijam a esse ponto, à intimidade de dois ou mais três seres humanos numa cama. Alguns chegam a ser considerados libertários. Não é o caso, certamente. Murakami não tem o direito nem de chacoalhar as bolas de D.H. Lawrence. O amante de Lady Chatterley é literatura. O que Murakami escreve é outra coisa. Que se tire o chapéu para ele num aspecto: requer-se muito capricho para ser ruim desse jeito. As outras mil quatrocentas e catorze razões para não ler Murakami são mais fáceis de achar do que qualquer leitor imagina. Melhor não procurá-las.

Limite

Sofrer por amor deveria ter um limite, um ponto que, se ultrapassado, fizesse instantaneamente o coração explodir em rosas que, dotadas de asas, brilhassem um instante no azul, antes de se incorporarem às nuvens brancas e simularem ser borboletas em excursão matinal.

Despeito

"Meu marido me trocou por uma bunda viúva e com três filhos."

Agora

De tudo que houve, só sei,
Agora que o verão terno
Se foi e chegou o inverno,
Que não me amaste, e eu te amei.

Pichação

Num muro, o resumo do novo empreendedorismo: "Templo é dinheiro."

Soneto do amor fictício

Há quem nos minta somente
Pelo gosto de iludir,
Pelo prazer de mentir,
Desinteressadamente.

Mentir é, para essa gente,
Uma forma de fugir
A esse tédio de existir
Que nos mata lentamente.

Mentem com tal despudor
Sobre seu fictício amor,
Que nele nos fazem crer.

E tão vivamente cremos
Que por ele, só, queremos
Viver, sofrer e morrer.

Parque Dom Pedro, oito da noite

"Ali no motel é oitenta. Aqui, em pé, eu faço por trinta."

Amor lancinante

Histórias de amor lancinante com protagonistas femininas, como Adèle H. e Camille Claudel, são exceções clamorosíssimas. Sofrer por amor, enlouquecer por ele, martirizar-se, ficar engolindo o vento numa esquina onde a amada um dia esteve, são especialidades masculinas.

DNA

É isso mesmo. Meu pai teve demência senil e meu irmão se matou. O que isso tem comigo eu não sei, mas obrigado pela preocupação.

Filha, pai

Verônica é a obra-prima de Fernando Sabino.

Tatuagem

Já tem vinte anos de rua Aurora, mas está sempre seguindo as tendências. Há três meses  tem no ventre uma tatuagem: um sorvete de casquinha. Como imaginara, seus fregueses mais jovens, entre os quinze e os dezessete, ficaram encantados. Passam o dedo ali, buscando o arrepio gelado. Mas quem mais gostou foram os da faixa entre sessenta e setenta, com suas línguas reminiscentes.

Tema para pintura

Uma mulher nua tocando piano. Aos pés dela, um gato, sonolento como um devasso que andou por três lupanares. No jarro da mesa, uma das flores vermelhas, como se tocada por uma nota aguda, parece erguer-se. Na parede atrás do piano, uma reprodução de Picasso (que entra aqui por motivos exclusivamente pictóricos).

"Os cisnes selvagens de Coole", de W.B. Yeats

"Em sua outonal beleza estão as árvores,
Secas as veredas do bosque;
No crepúsculo de outubro as águas
Refletem um céu tranquilo;
Nessas transbordantes águas sobre as pedras
Banham-se cinquenta e nove cisnes.

Dezenove outonos se passaram desde que
Os contei pela primeira vez;
E, enquanto o fazia, vi
Que de repente todos se erguiam
E em largos círculos quebrados revolteavam
As clamorosas asas.

Contemplei esses seres resplandecentes,
E agora há uma ferida no meu coração.
Tudo mudou desde o dia em que ouvindo ao crepúsculo,
Pela primeira vez nesta costa,
A alta música dessas asas sobre a minha cabeça,
Com mais ligeiro passo caminhei.

Infatigáveis, amante com amante,
Movem-se nas frias
E fraternas correntes ou elevam-se nos ares;
Os seus corações não envelheceram;
Paixão ou conquista solicitam ainda
Seu incerto viajar.

Mas vagueiam agora pelas quietas águas,
Misteriosos, belo;
Entre que juncos edificarão sua morada,
Junto a que lago, junto a que charco,
Deliciarão o olhar do homem quando um dia eu despertar
E descobrir que voando se foram?"

(De Uma antologia de W.B. Yeats, tradução de José Agostinho Baptista, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Na moda (para o Verissimo)

Sejamos politicamente corretos. Dá menos trabalho, menos problemas - e é politicamente correto.

Resigna-te

Bom tempo este
em que já não precisas de nada
em que sonhos novos não tens
e os velhos ideais
ficaram todos para trás

Já não te importa
que entreguem prêmios
a gente viva
a gente morta
e misturem josé joão
com carlos drummond

Se fraudarem concursos
não entrarás com recursos
pela irretorquível razão
de não participares de mais nenhum

Teu dever hoje é só
o de respirar
firmar-se bem
na bengala
sem tropeçar

Tomar os remédios
um a um
direitinho
sem pular nenhum
Pensamentos de fama
não abrigar
nem ambição
e jamais olvidar
que a literatura e a sua glória
são as duas uma só ficção.

Deixar o dia passar
simplesmente passar
sem reparos ou reflexão
e - isto é o principal -
não esquecer jamais
de pôr limão no teu chá.

Burocrata

Tratou o amor como um assunto. Depois de pesquisá-lo, estudá-lo e catalogá-lo, o arquivou na letra A.

Compromisso

Todo amor começa a morrer no instante em que é declarado e assume o compromisso da perfeição.

Escambo

O homem é aquele ser sempre disposto, venturosa ou desventuradamente, a trocar sua alma pelas promessas de uma bunda.

Fernanda Lima

Dizer Fernanda Lima com convicção não é um mantra para encurtar o caminho que leva à beleza. É fazê-lo valer cada centímetro, cada passo, por serem irrepetíveis no esplendor único de suas minúcias.

Parcimônia

Se algum reparo se pode fazer aos poetas que exageram ao exaltar o amor, é o de que talvez devessem exagerar um pouco mais.

Paraíso

Ele esteve a dois centímetros de beijá-la. Nunca mais, nem morto, ficará tão perto do paraíso.

Um poema de Emily Dickinson

"À noite, como deve sentir-se solitário o vento
Quando todos apagam a luz
E quem possui um abrigo
Fecha a janela e vai dormir.

Ao meio-dia, como deve sentir-se imponente o vento
Ao pisar em incorpórea música,
Corrigindo erros do firmamento
E limpando a cena.

Pela manhã, como deve sentir-se poderoso o vento
Ao se deter em mil auroras,
Desposando cada uma, rejeitando todas
E voando para seu esguio templo, depois."

(Da coletânea Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicada pela L&PM.)

Ele disse

Ele disse que só abriria o coração à mulher que, vista pela primeira vez, despertasse nele a voz da brisa e dos violinos. Ele a encontrou certa manhã, e logo sentiu que só poderia ser ela a esperada, porque no seu peito começou a cantar um riacho, e um vento morno beijou as árvores da avenida, tirando de seus galhos um som agudo que somente se ouvira no tempo de Paganini. Ele acompanhou seus passos, que pareciam um esvoaçar de borboleta. Ele mesmo parecia esvoaçar agora. Viver era aquilo, enfim: estar leve, ser só espírito e essência. Andou por quarteirões que pareciam suspensos no céu da manhã. A mulher e ele eram agora fios de uma nuvem clara. E ele a seguiu assim, sem coragem de lhe dizer uma palavra. Ela o olhou e também não disse nada. Foram três minutos, talvez dois, ou um, em que os envolveu a epifania. Acordaram dela quando já os passos dos dois ressoavam não como o voo de duas borboletas sopradas por um violino, mas como os passos de um homem e uma mulher numa calçada. Não poderão jamais repetir aquele momento e, se forem minimamente sábios, jamais tentarão.

O amor

O amor agora só sai de casa quando a cidade já dormiu. Para o seu rosto, desfigurado pelo sofrimento, até a lua fecha os olhos, e as estrelas, quando o veem, logo se escondem entre as nuvens. Ele vai ao viaduto onde dormem os leprosos. Lá, seu rosto não causa espanto, e uma das mulheres até o afaga e o chama de querido.

Guerra e paz

Amor, feroz e doce sentimento,
Que sempre vives entre guerra e paz,
Amor, minha alegria, meu tormento,
Com que delícia tu me matarás?

Soneto das dores que o amor provoca

Seja a época qual for,
E estando ou não bem atentos,
Das duras dores do amor
Nunca estaremos isentos.

O amor sempre foi assim.
Pode o doce nos negar,
Mas do mau e do ruim
Jamais irá nos poupar.

Se não podemos livrar-nos,
Que as dores possam poupar-nos
E ser mais brandas que aquelas

Que tanto nos têm doído,
Que tanto nos têm pungido,
E deixem menos sequelas.

Tardio

Fruto tardio
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda
poderia ver em ti
a cor da alegria
e apalpar
tua polpa macia
quando eu tinha
ainda dentes
e as tuas sementes
podia com minhas mãos
ao solo relançar

Fruto tardio
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda poderia
olhar-te e ver-te
olhar-te e ver-te apenas
sem a perda lastimar
de não poder morder-te
de não poder provar-te
de não poder ter-te.

Quem te dera
ah quem te dera
fruto tardio
não tivesses frutificado
estivesses florindo
pelo sereno banhado
e perolado pelo rocio.

A paz

A paz é um cachorro velho, cego e aleijado no quintal. Para que nos serve? A paz não foi feita para os vivos. A paz é um assunto dos mortos.

Avô

Sonha
que em horas soturnas
em esquinas noturnas
ainda procura
mulheres pintadas
de saias curtas
e bocas desbocadas

Sonha que elas
com seu jargão escroto
o chamam vem meu bem
vem meu tesão vem
vamos fazer neném

Sonha que pega
uma grandona
a mais cavalona
para aproveitar bem
cada vintém

E fazendo tudo como fez
quando na zona
com sua verde idade
deixou a virgindade
dentro da mais cavalona
geme e grita

Acorda com uma voz aflita
vem gente rápido rápido
onde estão vocês
o avô teve outro infarto.

Incongruência (para o Xico Sá)

Nunca entendi o tom de contrariedade que se costuma dar à expressão é foda.

Treinamento

De vez em quando
ainda que por um segundo
mesmo que por um instante
feche os olhos
e apague o mundo

Feche os olhos para tudo
para a manhã
para a tarde
para o sol
peneirando ouro
sobre a avenida

De vez em quando
feche os olhos
vá se acostumando

De olhos fechados você estará
quando para você estiverem olhando
no dia mais importante
de sua vida.

Três poemas de José Paulo Paes

"CEM ANOS DEPOIS

Vamos passear na floresta
Enquanto D. Pedro não vem.
D. Pedro é um rei filósofo
Que não faz mal a ninguém.

Vamos sair a cavalo,
Pacíficos, desarmados:
A ordem acima de tudo,
Como convém a um soldado.

Vamos fazer a República,
Sem barulho, sem litígio,
Sem nenhuma guilhotina,
Sem qualquer barrete frígio.

Vamos, com farda de gala,
Proclamar os tempos novos,
Mas cautelosos, furtivos,
Para não acordar o povo."


"LÁPIDE PARA UM POETA OFICIAL

a morte enfim torceu
o pescoço à eloquência."


"VENEZA: COM OU SEM FESTIVAL

burocratas da arte: eis a cidade onde paradoxalmente
toda a beleza da vida flui pelos canais competentes."

(De Poesia completa de José Paulo Paes, publicação da Companhia das Letras.)


quarta-feira, 23 de abril de 2014

A ociosidade

A ociosidade é a mãe de todos os vícios, e o amor é o pior de todos os seus filhos.

Soneto de como o amor busca a saciedade

Se o amor não me fosse urgente,
Talvez eu me dispusesse
A olhar mais atentamente
O mundo e o que ele oferece.

Quem dera olhos eu tivesse
Iguais aos de toda gente
E mais coisas não quisesse
Do que as que gozo atualmente.

Bem sei que se conseguisse
Curvar-me enfim à humildade,
Talvez menos me afligisse.

Mas o amor se negaria.
O amor quer a saciedade,
O êxtase, a dor, a agonia.

Os longos dedos dos mortos

São longos os dedos dos mortos. Que eles possam mantê-los entretidos em ajeitar as raízes, em espalhar melhor as sementes, para que não tenham tempo de lembrar-se de nós nem de urdir suas vinganças.

Cardápio

A vida é um cardápio. Todo dia o garçom vem mostrá-lo e espera aquele nosso minuto de reflexão, depois do qual pedimos: o de sempre. Boa escolha, senhor, é o que ele diz.

Sinecura

Por nos assegurar o ócio
E nada em troca querer,
A hipótese de morrer
Talvez seja um bom negócio.

Ser ou não

Ser amado me conforta,
Porém não ser não me afasta.
Se me amas já pouco importa,
Amar-te, só, já me basta.

Soneto da felicidade irreal

E contudo você ria
E uma canção entoava,
Enquanto a tarde murchava
E com ela murchava o dia.

Enquanto a noite chegava
Com sua melancolia
E o vento à chuva dizia
Por que ela não desabava,

Você, com sua canção,
Fazia a celebração
Da felicidade irreal

Que como uma flor ceifada
Seria logo arrastada
Com a vinda do vendaval.

Caçadas

Não tenho troféus na sala
cabeças de animais abatidos
rifles pendurados
nem fotos de caçadas

Leões e tigres
África e Ásia
para mim são só palavras
num livro de geografia

Matei uma lagartixa hoje
isso é bem verdade
mas não creio
ser possível empalhá-la
porque minhas sapatadas
a partiram em duas metades
e uma delas mesmo morta
com tanta veemência ainda me acusava
que eu lhe dei mais pancadas
até conseguir calá-la.

Teia

Em Roma, Amsterdã, Paris,
Hoje não há lugar mais
No qual as redes sociais
Não metam o seu nariz.

Elas vão tecendo as teias,
Vão espalhando fofocas,
E vão preservando focas,
E resgatando baleias.

E postam fotos que são
Vistas instantaneamente
Na Índia, no Irã, no Japão.

Mais ninguém é só. Um ai
É ouvido simultaneamente
Aqui, ali, no Uruguai.

Uma frase de Hemingway

"Uma vez que escrever se converteu no vício principal e no maior prazer, só a morte pode acabar com ele."

(Do livro Crônicas de Gabriel García Márquez, volume 5, tradução de Léo Schlafman, publicado pela Editora Record.)

Cotação do dia

Já renunciamos, já desistimos, já abdicamos de tudo, já pedimos perdão por existir. Por que, então, o sol vem todos os dias tocar nossa janela? Por que, então, acabamos abrindo? A esperança, esse ser tão desprezível quanto nós, manifesta-se ainda, como a cauda de uma lagartixa esmagada.

Fim

Sabemos já que falhamos.
Deserto, apenas deserto...
Nenhum oásis, longe ou perto.
Contudo nos arrastamos.

Lista

Gosto das coisas tristes. Dos Noturnos de Chopin, da Pavana de Ravel, da Lacrimosa de Mozart. Gosto dos rouxinóis, do som agudo dos violinos agonizando nas tardes de outono. Gosto de Romeu e Julieta, gosto do cocheiro que fala com o cavalo no conto de Tchekhov, gosto do cavalo que ouve o cocheiro. Gosto das coisas que vivem o tempo exato para morrer no auge de sua beleza. Gosto do amor.

Os extremos e o meio

Ou nós nos damos muita importância - e sofremos - ou nós não nos damos nenhuma - e sofremos. Entre esses extremos, o da presunção e o da autoimolação, há um imenso território, em que moram quatro quintos da humanidade e onde florescem a alegria e a mediocridade.

Desconto

Amar a poesia tão intensamente quanto a amo me dá certo alívio. Talvez eu não seja tão desprezível, talvez minha alma não tenha morrido inteiramente. Minha única esperança de redenção é a beleza.

Bolsa

A primeira coisa que o poeta parnasiano faz diariamente, antes de começar a escrever, é consultar a cotação do ouro que usa nas suas chaves alexandrinas.

Wikipédia

O amor foi um costume que perdurou até a década de 1990. Foi substituído com imensas e inumeráveis vantagens pelo skype e pelo sexo virtual.

"Pé na cova"

Três maneiras de definir os dois primeiros episódios da nova temporada: arte, arte, arte. A melhor série que a Globo produziu nos últimos anos.

Fernanda Lima

Em Fernanda Lima há uma cintilação que poderia ser confundida com a de uma estrela, se não fosse bem mais intensa.

Vupt

Quando começamos a notar como a vida passa depressa, ela já passou.

Despeito

O bem-te-vi apaixonado e repelido trocou uma consoante em sua saudação. Agora, quando vê a amada, canta: nem te vi, nem te vi...

Artigo tal, parágrafo tanto

O amor não é distinção,
O amor é nódoa, labéu,
Quem o pratica é um réu,
Sujeito a condenação.

"1Q84"

Li ontem sessenta páginas de 1Q84, de Haruki Murakami - o suficiente para saber que é um romance de mero entretenimento, nada mais. Quem pretender ver nele alguma excelência formal desistirá já ali pela página 20. É um amontoado de lugares-comuns, de construções descuidadas, uma total falta de brilho. Murakami é um daqueles enchedores de linguiça capazes de dizer que alguém pegou um copo, o ergueu, o levou lentamente aos lábios, bebeu um gole, repôs o copo na mesa, alisou o bigode com o dedo médio da mão esquerda, puxou com o indicador um fio grisalho, pegou novamente o copo com a mão direita e deu um gole um pouco maior que o primeiro. Uma dose de inutilidades, de vacuidades, de desnecessidades, presente em cada parágrafo. Para os menos exigentes - que são sempre a maioria -, resta a curiosidade sobre a trama, o que Murakami, até onde li, conseguiu fazer bem. Se eu passar pela página 60, será por essa curiosidade. Não sei se a manterei. Prêmio Nobel para Murakami? Ah, contem-me outra, por favor.

Três poemas de José Paulo Paes

"A MAIAKÓVSKI

uns te preferem suicida

eu te quero pela vida
que celebraste na flauta
de uma vértebra patética
molhada no sangue rubro
de um crepúsculo de outubro."

"POÉTICA

Não sei palavras dúbias. Meu sermão
Chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.

Com duas mãos fraternas, cumplicio
A ilha prometida à proa do navio.

A posse é-me aventura sem sentido.
Só compreendo o pão se dividido.

Não brinco de juiz, não me disfarço em réu.
Aceito meu inferno, mas falo do meu céu."

"L'AFFAIRE SARDINHA

O bispo ensinou ao bugre
Que pão não é pão, mas Deus
Presente em eucaristia.

E como um dia faltasse
Pão ao bugre, ele comeu
O bispo, eucaristicamente."

(De Poesia completa de José Paulo Paes, publicação da Companhia das Letras.)


terça-feira, 22 de abril de 2014

Falha contábil

Meu erro foi presumir
Que o amor, impulso tão nobre,
Eu pudesse dividir
Com o corpo, sócio tão pobre.

Logro

Que vale o teatro lotado?
Quando o amor não entra em cena,
A peça não vale a pena
E o público sai logrado.

Requisito

O poeta há de ter sido ingênuo e bem-intencionado em alguma fase da vida, ainda que apenas na infância.

Prospecção

Dizer o quê? Que palavras
Definirão o tesouro
Que no meu peito tu lavras,
Que nome dar a isto, a este ouro?

Sem falta

Hoje ou amanhã
eu ligo para ele
hoje ou amanhã
sem falta
nós todos nos dizíamos

Um mês depois
ou um ano
nos encontrávamos todos
de novo
e hoje ou amanhã
nos dizíamos
eu ligo para ele
sem falta
hoje ou amanhã

Ontem nos ligaram
e soubemos
que já não podemos
ligar hoje ou amanhã
nunca mais
depois do tiro
que deste em tua boca
do tiro que cultivaste
como uma roseira
na tua solidão
enquanto nós nos dizíamos
hoje ou amanhã
eu ligo para ele
sem falta
hoje ou amanhã.

Até aprender

Farei isso então

Pegarei o amor como se fosse um gatinho
E esfregarei seu focinho no chão
Para ver se desta vez ele aprende
A não fazer mais o que fez

Talvez desta vez ele aprenda
A ser obediente e principalmente
Que quando dizes não
É não mesmo que tu queres dizer.

Ou... ou

Viver a vida ou amar-te,
Que diferença faz isso?
És o meu sol, o meu viço,
Não vivo sem respirar-te.

Soneto de risos e de lágrimas

Sem ti eu sou só fração,
Contigo eu sou todo, inteiro,
És o meu sal, o meu pão,
És norte, fim, paradeiro.

Em ti me firo e deleito,
És meu furor, minha calma,
E preenches todo o meu peito
E ocupas toda a minha alma.

Estás em mim quando rio,
Em mim estás quando choro,
E se não estás deploro,

Pois se a alegria não trazes
E se chorar não me fazes,
Eu sou inteiro vazio.

Pudor

Os jovens usam suas luvas esterilizadas para escolher os termos que admitirão em seus poemas. Para se isentarem de tentações, há muito tiraram do estoque as palavras estrela, rosa e amor.

Amigas

Quando a amiga, chamando-a de querida,
A língua em sua boca enfim enfiou,
Ela ecoou - querida - e suspirou:
"Esperei por isso toda a vida."

Os condenados

Os escravos do amor
batem a cabeça nas grades
e ao invisível céu lançam
seus gemidos
seus gritos
seus lancinantes ais

Ao chicote submetidos
a torturas outras
a mil suplícios
gemem e gritam

Pedem mais
anseiam por mais
querem mais.

Cotação do dia

Sou o veleiro daquela foto antiga, tirada no dia em que fui pela primeira vez posto no mar. O jovem casal sorri, e também os dois meninos. Três anos depois, o mar engoliria o veleiro, o casal, os filhos e um cãozinho que não aparece na foto.

Fernanda Lima

Definir Fernanda Lima é fácil, como é fácil exprimir a primavera. Basta ter um conhecimento, ainda que mínimo, do sol, da brisa, dos pássaros, das flores.

"Brisa marinha", de Mallarmé

"A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar
Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!

Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre as ondas más,
Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-
Tros, sem mastros, nem ilhas férteis, a vogar...
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!"

(Da coletânea Mallarmé, tradução de Augusto de Campos, publicada pela Editora Perspectiva.)

Correspondência atrasada

Nem sei por que estou aqui.
Ainda não me avisaram,
Mas minhas horas soaram
E há muito tempo morri.

Em mim

Houve um momento
no dia
em que te senti em mim
tão toda
tão inteira
que me apalpei
e parecia
que eras tu
quem me apalpava
ou tu quem tornava
certeira a mão
com que eu te sentia.

Ferida

Toda vez
que fala em amor
uma ferida sangra
em seu peito
e seu rosto
parece o macilento rosto
de um crucificado.

Definição

Quando foram lhe contar
que a mulher
praticara felonia
com o sargento
o capitão rabugento
disse que felonia
era uma traição
passível de se enquadrar
no código militar.

Soneto da fragilidade do homem perante o amor

Nós somos frágeis, Senhor.
Tu mesmo, Tu, que nos criaste,
Sabes que negligenciaste
E não nos deste vigor.

Foi muito tênue o calor
Com que, Senhor, nos forjaste
E o corpo nos preparaste
Para os espinhos da dor.

Nós somos frágeis, meu Deus.
Não Te importa ver assim
Tão fracos os filhos Teus?

Tudo pode nos matar,
Tudo pode dar-nos fim,
Senhor, até mesmo amar.

Recompensa

A ti
que amorosamente
afagas teu cão e beijas
diariamente
o filho querido
do teu coração
talvez não agrade
a recompensa que virá

Não te preocupes
pelo menos não inteiramente

O cão jamais te morderá.

Lembrança

As dentadas do amor são tão doídas,
Nos machucam tão forte e intensamente,
Que a dor de ontem, embora já ausente,
Ainda lateja em todas as feridas.

"Ele pede à sua amada que esteja em paz", de Yeats

"Ouço os Cavalos Fantasmas, as suas longas, alvoroçadas crinas,
Os tumultuosos e pesados cascos, o branco resplendor dos olhos;
O Norte desvenda-lhes a obstinada, serpenteante noite,
O Leste sua oculta alegria ao romper da manhã,
Chora o Oeste o pálido orvalho enquanto suspirando morre,
Verte rosas o Sul de fogo carmesim:
Oh que inúteis o Sono, a Esperança, o Sonho, o eterno Desejo,
Os cavalos do Desastre investem pela densa argila:
Amada, semicerra os olhos, deixa o teu coração palpitar sobre
O meu coração, sobre o meu peito deixa os teus cabelos,
Afogando a solitária hora do amor em profundo anoitecer de paz,
Escondendo as agitadas crinas, os tumultuosos cascos."

(De Uma antologia de W.B. Yeats, tradução de José Agostinho Baptista, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O blog em tom de blague

O blog está na pior fase e a
Saída será fechá-lo.
Deixaram de visitá-lo
Ucrânia, Angola e Malásia.

A Rússia já me abandona
E o mesmo fará a China.
Na minha cara Argentina
Nem mais me lê Maradona.

Enquanto meu sonho sonha
Com leitores na Polônia
E nos Estados Unidos,

Os leitores da Alemanha,
De Portugal e da Espanha
Já me fecham seus ouvidos.

Controle de leitura

Eu escrevo para quem?
Escrevo para quarenta,
Escrevo para cinquenta,
Para mim, para ninguém?

Soneto do dia em que o amor te chamou

O amor te chamou um dia
Quando a manhã despertava,
O sol a relva dourava
E a primavera floria.

E tu foste com ele. Havia
No rumo que ele tomava,
Em cada passo que dava,
Uma alusão à alegria.

Mas logo veio a verdade.
No instante em que a tempestade
Se desatou inclemente,

Era noite, já. Estavas
Em um lugar que ignoravas.
E o amor? Ah, estava ausente.

Proverbiozinho

Mais fácil a água acabar
Furando a pedra mais dura
Que eu te sensibilizar
Com a minha inábil ternura.

Alvoroço

Sempre que ouve a voz dela, sente-se como uma abelha alvoroçada esvoaçando em torno de uma flor.

O último prato

Se pensa quantos braços já pousaram no ombro dela, sente-se como um pedinte que, depois de três horas na fila da caridade, ouve a assistente social recomendar que volte no dia seguinte, porque acabam de servir o último prato.

Os mortos

Como são avarentos os mortos. Cobertos de flores e de homenagens, não nos dão um sorriso, não abrem uma brecha pela qual possamos compartilhar sua bem-aventurança.

O padrinho

O menino de cinco anos perguntou por que haviam posto aquelas flores no peito do padrinho. Disseram-lhe que talvez não houvesse flores no lugar para onde ele estava indo, e ele poderia precisar. O menino tirou então dois biscoitos do pacote e os juntou às flores.

Leite com groselha

O amor há de ser sempre um imprevisto, um acaso, uma surpresa, um assombro. Se dele houver um pressentimento, um sinal, a intolerável banalidade de um apontamento na agenda, não será amor. O amor também não há de ter mesuras. Amor com mesuras é leite morno com groselha, é amizade. A amizade é a mais chocha de todas as formas de convivência.

"Grafito para Ipólita", de Murilo Mendes

"A tarde consumada, Ipólita desponta.

Ipólita, a putain do fim da infância,
Nascera em Juiz de Fora, a família em Ferrara,

Seus passos feminantes fundam o timbre.
Marcha, parece, ao som do gramofone.

A cabeleira-púbis, perturbante.
Os dedos prolongados em estiletes.

Os lábios escandindo a marselhesa
Do sexo. Os dentes mordem a matéria.

O olho meduseu sacode o espaço.
O corpo transmitindo e recebendo

O desejo o chacal a praga o solferino.
Pudesse eu decifrar sua íntima praça!

Expulsa o sol-e-dó, a professora, o ícone.
Só de vê-la passar, meu sangue inobre
Desata as rédeas ao cavalo interno.

                          2

Quando tarde a revejo, rio usado,
Já a morte lhe prepara a ferramenta.

Deixa o teatro, a matéria fecal.
Pudesse eu libertar seu corpo (Minha cruzada!)

Quem sabe, agora redescobre o viso
Da sua primeira estrela, esquartejada.

                          3

Por ela meus sentidos progrediram.
Por ela fui voyeur antes do tempo.

                          4

O dia emagreceu. Ipólita desponta."

(De Melhores poemas de Murilo Mendes, seleção de Luciana Stegagno Picchio, publicação da Global Editora.)



Fragmentos

É um homem estilhaçado.
Suas partes dando, uma a uma,
Já não há parte nenhuma
Que ao amor tenha negado.

Soneto do ser e do não ser amado

Nas horas claras do dia,
De noite nas horas mortas,
Desfaço-me em agonia,
Mas tu sabes? Tu te importas?

Os meus lamentos tu cortas
Com tua cruel zombaria
E minhas decisões tortas
Recebes com ironia.

O teu chicote me lanha,
Porém se reclamo e choro
Comentas que é tudo manha,

E se eu, em meu desatino,
Pelo teu amor imploro,
Dizes o quê? "Sai, menino!"

Narinas

Que bom estares morto. Se não, embora tenham enfiado esse algodão em tuas narinas,  como suportarias o cheiro ácido das flores quando fecharem a tampa?

Consciência limpa

Mataram o amor na Paulista. Depois, cada um pegou um caminho. Ela foi levar o cachorro ao banho, na Rebouças. Ele foi ver um filme no shopping Plaza Sul.

Crime

Por mais fundo que o enterremos
E o mantenhamos oculto,
Dele não nos livraremos.
O amor é um morto insepulto.

Suicida

Deixou um bilhete. Nele,
Com zelo e termos exatos,
Justificou os seus atos.
Todos, com exceção daquele.

Cinco versos de Murilo Mendes

"A palavra nasce-me
fere-me
mata-me
coisa-me
ressuscita-me."

(Da coletânea Melhores poemas de Murilo Mendes, seleção de Luciana Stegagno Picchio, publicada pela Global Editora.)


Fernanda Lima

Fernanda Lima é um caleidoscópio. Só o sol conhece os três mil quatrocentos e quarenta e seis matizes de sua beleza.

Um gato

Convém que aceites a própria insignificância, sem celebrá-la nem tentar fazê-la parecer motivo de orgulho. Se queres atrair simpatia, arranja um gato.

Mel

Quando diz o nome dela, diz com lentidão, para que a língua possa saborear o mel de cada sílaba.

Paisagem

Ele se sente como o pinheiro que, por falta de tinta ou negligência do pintor, não foi engalanado pela neve de Natal.

Cotação do dia

Já há alguns meses o amor entra todo dia nessa fila, diante do casarão arruinado. A sopa é rala e o pão duro, mas, das três funcionárias que servem os mendigos há uma que, quando não está de mau humor, lhe dá um sorriso, que ele retribuiria, se não precisasse mostrar sua boca sem dentes.

Sempre

Os dias passam, eu não.
Travei os passos da história
E em mim, em minha memória,
É sempre aquele verão.

Soneto do som daquela voz

Ouvindo o som de uma voz
Que a tua voz parecia,
Segui-a na treva atroz,
Varei a noite sombria.

Busquei-te, e todos os passos,
Chamei-te, e todos os gritos
Levaram-me a fracassos
E a sentimentos aflitos.

Perdido na noite escura,
Chorei a minha amargura
E a Deus piedade pedi.

Fiquei assim, implorando,
Por tua voz esperando,
Porém nunca mais a ouvi.

Atalho

Todo artista transgressor, no fundo, pensa em tornar-se clássico um dia.

Nefelibata

Foi preciso chamar os bombeiros para resgatar o velho poeta pendurado na nuvem branca.

Lacuna

Quase sempre uma força de expressão é uma fraqueza de linguagem.

Lembrança

Foi triste. Nem bem os meus
Braços ternos te acolhiam,
Os teus braços se encolhiam.
Chegara a hora do adeus.

Padrão

Do sobe e desce da vida,
Do que à ventura nos leva
Ou nos encaminha à treva,
És tu, amor, a medida.

Por onde andas

Nem imaginas
por onde andas
a horas tantas
da madrugada
quando tua ausência
me é cobrada
por minha alma
atormentada

Nem adivinhas
por onde caminhas
quando em tua cama deitada
adormecida
dormem também
tuas mãos
porém não dorme
a minha

Não sabes
que me tocas a campainha
e sobes a escada
e entras no quarto
e te deitas na cama
onde te espera e chama
minha alma enfim
apaziguada.

Quintal

Na tigelinha azul, o leite amornado pelo sol se arrepia quando sente as primeiras lambidas da áspera língua do gato.

"O quarto", de Yves Bonnefoy

"O espelho e o rio em cheia, esta manhã,
Chamavam-se através do quarto, duas luzes
Encontram-se e unem-se na escuridão
Dos móveis deste quarto descoberto.

E dois países éramos de sono
A se comunicar por seus degraus de pedra
Onde ia se perder a água não turva
De um sonho, sempre a reformar-se, a se quebrar.

A mão pura dormia junto à mão zelosa.
Um corpo às vezes se movia no seu sonho,
E além, na água mais negra de uma mesa,
Dormia iluminante o vestido vermelho."

(De Obra poética de Yves Bonnefoy, tradução de Mário Laranjeira, publicado pela Iluminuras.)

domingo, 20 de abril de 2014

Imarcescível

Da gaveta, que não era aberta fazia vinte anos, saiu primeiro um olor adocicado e, depois, à luz da manhã, mostrou-se a rosa. Estava dentro de um livro, e era vívido o contraste de seu viço com as folhas amareladas do romance.

Soneto do que o amor escreve

Amor, que poderes tens,
Que força, que intensidade,
Que realeza e majestade,
Tu, bem maior entre os bens.

Sem ti, amor, e tua chama,
O que mais seria a vida
Que uma história aborrecida
Da mais monótona trama?

Amor, criador incansável,
Amor, escritor notável,
Amor, autor magistral,

És tu que o brilho garantes
E cenas emocionantes
Do início ao ato final.

Velho

Falava ainda de amor,
Mas falava num tom frio
Que soava como um rumor,
Um sopro ou um balbucio.

Nós

Tivemos tudo. Fruíamos
O mel, a luz, o calor,
Tudo que nos deu o amor.
Porém nós não merecíamos.

Tão bom

Tão bom não ser, tão bom não
Se debater, não querer
Da vida nada senão
A paz que existe em morrer.

Preservacionismo (para o Gianluca e a Nicole)

Mirou o céu e lançou o anzol. Veio uma estrela tão miúda que ele a arremessou de volta.

O rosto

O cirurgião plástico restaurou o rosto dela, devastado na infância pela fervura de um caldeirão, e foi um trabalho tão perfeito que ela agora, quando se deita com os rapazes, não lhes diz mais obrigada.

"Carta a um candidato aos exames imperiais", de Yu Xuanji

"Fiz poesia, triste e quieta no meu canto
Já tantas vezes à montanha recolhi-me
A leste, oeste a voz ecoa pelos picos
Sul, norte corre este cavalo sem descanso

Noites chuvosas, nosso encontro era um festim
mas chega a primavera, as flores, e te vais
Se um dia à porta chamem, fosse tua mensagem
alcançaria a erma choupana uma alegria

Acaba a música, rompeu-se o instrumento
Se o par de pássaros se aparta, gela o ninho
Lembra da amiga só, no campo, à própria sina
É primavera, passa ao rio este momento."

(De Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicação da Editora Unesp.)

Fernanda Lima

Fernanda Lima é um desses substantivos únicos que não precisam jamais de nenhum adjetivo. O que se há de dizer do sol? Que é claro, que é quente, que é esplendoroso? Também os advérbios não fazem falta a Fernanda Lima. Fernanda Lima é.

Soneto da desforra do amor

O amor gastou sua voz
Pelas ruas nos chamando,
Nos becos investigando
E procurando por nós.

Dele nós plenos estávamos
E nada mais nós queríamos,
Dele nós até nos ríamos
E dele nos afastávamos.

Hoje, que nós o perdemos
E que de volta o queremos,
Ele se vinga e nos deixa

Por ele em vão procurando,
Pedindo e nos humilhando,
E não ouve nossa queixa.


Música

Sim, sou um homem sujeito a chorar ouvindo uma música, mesmo que ela não seja de Chopin.

Estilo

Os bárbaros não chegaram. Esperávamos que eles viessem impor aspereza ao nosso estilo, mas já é noite e só nos resta continuar polindo nossas vogais.

A notícia

Alguém irá te dizer que eu parecia tão bem, que havia acabado de pegar um livro e sorrido para uma frase que ninguém saberá qual era, porque no instante seguinte o livro e eu estávamos estendidos no chão, como se ali fosse o mar e nadássemos.

Madrugada

Enquanto dormes, enquanto
Te esqueces de que eu existo,
Escrevo e, escrevendo, insisto
Que te amo, ah, que te amo tanto.

Sonho do que talvez ainda reste

Talvez a vida ainda tenha
Alguma coisa a me dar
Antes de a morte chegar.
Talvez. Se tiver, que venha.

E que, simples, possa entrar
Em minha casa sem senha,
Como melhor lhe convenha,
Do jeito que lhe agradar.

Que se sente no sofá
E diga que há muito já
Conhecer-me pretendia.

E jure, embora mentindo,
Que esse será seu mais lindo
E mais memorável dia.


História

O amor é aquela história muito triste que, para aliciar o leitor, começa sempre numa manhã de sol.

O milagre

Quando pronuncia a palavra amor, decepciona-se por não ocorrer diante de seus olhos um milagre, como a aparição de um arco-íris no coração da noite.

"Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud", de René Char

"Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Teus dezoito anos refratários à amizade, à malevolência, à bobeira dos poetas de Paris, assim como ao zum-zum de abelha estéril de tua família ardenesa um pouco doida, fizeste bem em espalhá-los aos quatro ventos, em jogá-los sob a lâmina de sua guilhotina precoce. Tiveste razão em abandonar o bulevar dos preguiçosos, os botequins dos mija-liras, pelo inferno das feras, pelo comércio dos espertos e o bom-dia dos simples.
   Este impulso absurdo do corpo e da alma, esta bala de canhão que explode seu alvo, sim, é isso mesmo a vida de um homem! Não se pode, indefinidamente, saindo da infância, estrangular seu próximo. Se os vulcões mudam pouco de lugar, sua lava percorre o grande vazio do mundo levando virtudes que cantam em suas feridas.
   Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Ainda há quem creia, sem provas, que contigo a felicidade é possível."

(Do livro O nu perdido e outros poemas, tradução de Augusto Contador Borges, publicado pela Iluminuras.)

sábado, 19 de abril de 2014

Fernanda Lima

A beleza de Fernanda Lima não tem pressa. Ela se demora, como os dedos do sol num vestido de seda estendido na cama, o espreguiçar de uma gata no sofá ou os olhos de um pintor sobre a paisagem ideal. A beleza de Fernanda Lima não é das que duram o breve percurso da passarela.

Nota dissonante

O poético às vezes é o que há de mais incompatível com a poesia.

Falsidade ideológica

Não acreditaram que ele fosse poeta nem na noite em que as árvores do seu jardim apareceram carregadas de estrelas.

Soneto do preço que custa o amor

Tivéssemos nós sabido
Que cada abraço, que cada
Carícia compartilhada,
Que cada beijo bebido,

Que cada fruto colhido,
Cada delícia provada,
Cada semente lançada
Tinham um preço devido.

Soubéssemos que com dor,
E dobrado, todo o amor
Que tivemos pagaríamos,

Ainda que nos doesse mais,
Eu sinto, eu sei que jamais
Nós dele desistiríamos.

CEP

Teu endereço perdi,
E o telefone. Que importa?
Minha esperança está morta
E também eu já morri.

À porta

Sou tolo. Te bato à porta
Com uma frase medrosa,
Uma flor (nem sequer rosa)
E uma esperança já morta.

Três frases de René Char

"Aquilo que vem ao mundo para nada perturbar não merece respeito nem paciência."


"As lágrimas desprezam seu confidente."


"Não é digno do poeta ludibriar o cordeiro, investindo em sua lã."



(Do livro O eu perdido e outros poemas, tradução de Augusto Contador Borges, publicado pela Iluminuras.)

Cotação do dia (VII)

Aos sábados a alma tem sempre uma recaída e sonha de novo com um barquinho de velas brancas, branquíssimas, molhadas de chuva, secando ao sol.

Cotação do dia (VI)

Mandaram-me o amor de volta, cheio de carimbos e marcas de violação.

Cotação do dia (V)

Os ombros que exaltei, como se de seda fossem, voltaram mordidos por dentes de marinheiros.

Cotação do dia (IV)

Se me pusessem uma enxada na mão, eu talvez não resolvesse o problema agrícola do Brasil, mas poderia cavar uma boa cova, na qual coubessem meu corpo inútil e minha alma pretensiosa.

Cotação do dia (III)

Nossos sonetos de amor serão lidos, um dia, e provocarão gargalhadas, do Oiapoque ao Chuí.

Cotação do dia (II)

Para que servem os amigos, se nenhum nos diz, nunca, como somos ridículos nesta pretensão de ver estrelas nos olhos e faíscas de sol nos cabelos de uma mulher?

Fescenino

Cantarei teus olhos, sim, e também tua boca, e teus cabelos, como convém à tradição romântica. Mas devo esperar por um poeta com a face encovada pela luxúria para exaltar os teus peitos e a tua bunda?

Parque

Para ele não há verão.
Caminha sempre sozinho,
E os beijos que não dá vão
Murchando pelo caminho.

Cotação do dia

Para falar um português bem claro, sem veadagens literárias, a morte, nesta altura do campeonato, seria um puta de um lucro.

Passos

Andamos um passo, e dois
Recuamos. Já nos achamos
Bem aquém do que almejamos,
Como estaremos depois?

Aquém

Quando passares, eclipsando o arco-íris, dirão que foste amada por um poeta bisonho, incapaz de proclamar tua beleza.

Várias

Para vencer a monotonia de cair e voltar, cair e voltar, cair e voltar, a água da fonte luminosa finge todo o tempo que é várias.

Antídoto

Contra a fraqueza dos ossos,
A consumpção, a anemia,
Contra a ruína e os destroços,
Ele cultiva a poesia.

Leitmotiv

Enquanto a voz não se cansa
E a vida não me destroça,
Cantarei, conforme possa,
Teu nome e a minha esperança.

Soneto das lágrimas que regam a poesia

Por mais que me deixes triste,
Não posso esquecer, guria,
Que tu me reconduziste
Ao caminho da poesia.

E que os passos que por ti
Dei, loucos e desnorteados,
Desde que te conheci,
Não foram passos errados.

As lágrimas que semeaste
São lições que me ensinaste,
São estrofes da canção

Que à poesia me levou,
Que a campainha tocou
E que me abriu o portão.


Murilo Mendes

Se você não citou Murilo Mendes como o maior poeta brasileiro de todos os tempos, perdeu uma ótima oportunidade de acertar. Bandeira? Drummond? Que um fique à direita de Murilo, e o outro à esquerda. Quem mais? João Cabral? Desculpe, mas...

Para merecê-las

As censuras do amor são tão pungentemente doces que, se nos faltassem, inventaríamos pecados e transgressões para merecê-las.

"Poema lírico", de Murilo Mendes

"Amiga, amiga! De braço dado atravessamos o arco-íris.
Quem nos dá esta força que nos impele acima do mar e das montanhas?
Deixamos lá embaixo os bens materiais e a violência da vida.
Amiga, amiga! Teu rosto é semelhante à lua moça,
Há nas tuas roupas um cheiro bom de mato virgem.
Tua fala saiu da caixinha de música dos meus sete anos,
E te empinas no azul com a graça dos papagaios que eu soltava.
Ó amiga! Deixamos o reino dos homens bárbaros
Que fuzilam crianças com bonecas ao colo,
E eis-nos livres, soprados pelos ventos,
Até onde não alcançam os aparelhos mecânicos.
Unidos num minuto ou num século, que importa.

Agarrados à cauda de um cometa percorremos a criação.
Teu rosto desvendou os olhos comunicantes.
Não há mistério: só nós dois sabemos nosso nome,
E as fronteiras entre amor e morte.
Eu sou o amante e tu és a amada.
Para que organizar o tempo e o espaço?"

(Do livro Melhores poemas de Murilo Mendes, seleção de Luciana Stegagno Picchio, publicado pela Global Editora.)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Aquela fruta (para o Gianluca)

O pai apontou a árvore carregada de frutas e perguntou ao filho de quatro anos qual delas ele queria. O menino ficou mostrando "aquela, aquela", sem que o pai distinguisse a fruta, até que um pássaro se soltou de um galho e o menino completou: "Aquela ali, que canta."

Teu nome

É triste, mas inevitável: daqui a alguns anos, não enxergarei nem mais esta superfície de papel em que, todos os dias, pouso os lábios ali onde ainda talvez esteja escrito teu nome, que já não consigo ler.

Na poltrona

Aprendeste a esperar. Enquanto os outros se lançam a batalhas, buscando a morte, tu a aguardas na poltrona, com a certeza de que ela virá. Quando vier, tu a censurarás pela demora e ela se justificará dizendo que esteve ocupada matando alguns jovens e presunçosos guerreiros.

Boa companhia

Não lhe conheces o nome
nem o apelido sequer

Saber o dela tu não queres
saber o teu ela não quer

És homem só
e ela só mulher
ali na cama
onde nenhum dos dois ama
nem essa é a pretensão
dos corpos enlaçados
atados pelo suor
pelo tédio da noite
pela tristeza
pela praga de Deus
pela fraqueza da carne
e pela solidão.

Pesadelo dostoievskiano

Na madrugada em que acordou de um pesadelo a tempo de se livrar de uma velha horrenda como uma bruxa, que o perseguia com uma machadinha na mão, Dostoiévski convenceu-se de que tinham razão os que, em sua adolescência, haviam tentado persuadi-lo de que a literatura não era uma atividade muito saudável.

"Vigília", de Giuseppe Ungaretti

"Uma noite inteira
jogado ao lado
de um companheiro
massacrado
com a boca
arreganhada
voltada para a lua cheia
com a convulsão
de suas mãos
entranhada no meu silêncio
escrevi
cartas cheias de amor

Nunca estive
tão
aferrado à vida."

(Do livro A alegria, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

Cotação do dia (VII)

Há mortos tão presunçosos que, no cemitério, serão capazes de responder ao canto do bem-te-vi.

Cotação do dia (VI)

Para certos defuntos, as lágrimas deveriam vir de um fundo social de caridade. Pobres parentes, infelizes amigos. Um dia, ao menos, sem sofrerem a chantagem emocional.

Cotação do dia (V)

Que esteja com luvas quem, por castigo dos fados, for segurar as alças.

Cotação do dia (IV)

Se souber ainda dizer uma frase quando chegar o dia, que eu implore para ir sozinho, sem flores. Que elas sejam poupadas de minha companhia, da qual tantos já sabiamente se isentaram.

Cotação do dia (III)

Estranho não sentir o odor de minhas feridas. Devo tê-las. Até as sombras dos ipês se encolhem quando passo por eles, no parque.

Cotação do dia (II)

Acreditar ainda nas nossas palavras, mesmo que sejamos os únicos a lhes dar crédito. Dos nossos tesouros, só elas restaram e, se as usarmos para mentir a nós mesmos, que sejamos o mais desgraçado dos homens.

Cotação do dia

Afagar a tristeza, assim como se abre uma gaveta para reverenciar um diploma muito antigo que se lutou demais para merecer.

Artista (para Mariana Ianelli)

Um pássaro traça
Um risco, um som, um rabisco,
E enfada-se, e passa.

No parque

Em cima do par que se ama,
O ipê, querendo brindá-lo,
Ou talvez para ocultá-lo,
As flores, terno, esparrama.

Diário

Hoje, 18 de abril de 2014, sexta-feira da Paixão, a maravilhosa estupefação de descobrir tão tardiamente - e ainda tão a tempo - a epifania, a poesia mágica de Murilo Mendes.

Soneto de quem vive para cantar o amor

Do amor sendo um fiel vassalo,
Não tenho intuito senão,
Com toda a minha paixão,
Louvá-lo, amá-lo, exaltá-lo.

A minha felicidade
É a de em meus cantos cantar
Que nada o pode igualar
Em brilho ou em majestade.

Apenas por isso, por
Ser intérprete do amor,
O meu coração anseia.

Não sei exprimir quanto o amo,
Por isso jamais reclamo
Quando ele me chicoteia.

Beckett

Em Beckett, quem toca a (in)ação não são protagonistas, nem personagens. Talvez pudéssemos chamá-los de pessoas, se em algum momento eles fizessem algum esforço para agradar-nos. Beckett é antiépico, anti-heroico, sufoca a esperança em cada frase e nos faz um convite que relutamos em aceitar: o de nos reconhecermos naqueles vagabundos, naqueles maltrapilhos que, com o peso incontornável da regra, nos mostram como são inúteis e grotescos todos os sonhos de grandeza e glorificação. O humano é isso, embora quiséssemos que não. Godot jamais virá - e, se vier, só confirmará essa regra. Virá comendo um pão sujo, rodeado de moscas.

Esquina

Por alguns trocados
ela te dá
e sempre dará
quando quiseres
o que outras mulheres
nem sempre te dão

Ele é boa
te roça a braguilha
e desabotoa
te afaga a virilha
e geme em mis e fás
conforme te apraz.

De ninar

Me acolhe, mar, me acalenta,
Me traz um sono profundo,
Me embala, e me leva lenta,
Lentamente para o fundo.

"Carta a um amigo", de Yu Xuanji

"Vastas, inquietas, as ruas sem bons amigos
Passam-se os dias, envergo o melhor vestido
Frágil no espelho é meu rosto, os soltos cabelos
Cobre-me em bruma leve o perfume do incenso
É primavera, o desejo encontra-me agora
Vejo-me à imagem de ilustres divas de outrora
À porta jovens ditosos param seus carros
Vergam salgueiros: à hora, flores se abrem."

(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

Evoé

Mudou finalmente de ares.
Negou o amor e a poesia,
Baniu a morna apatia
E vive nos lupanares.

Messe

Descremos de nossa messe.
Dos frutos dela, maduros,
Abrimos mão, imaturos,
E ela gorou, e apodrece.

O passo

Não tenho mais ilusão.
Andei, cheguei ao fracasso
E sei que o próximo passo
Não leva à consagração.
Só leva ao fim do cansaço,
No centro da escuridão.

Lição de autoajuda para um jovem poeta

Se em determinada manhã você acordar e, abrindo a janela, não encontrar o sol, não entre em pânico. Ligue para a amada. Quando ela atender, o sol talvez não apareça, mas você não precisará mais dele.

Soneto de como se há de implorar pelo amor

O amor há de ser querido
Como se uma bênção fosse,
A graça maior, mais doce,
O paraíso perdido.

Ele há de ser desejado
Com fé e com devoção,
E com fervor e aflição
Ele há de ser implorado.

De joelhos nós ficaremos
Diante dele e imploraremos
Que como servos nos tenha.

E que até o último dia,
No tormento ou na alegria,
Como servos nos mantenha.

Magister dixit

Imprescindíveis, os críticos. Sem eles, como saberíamos que a baleia de Melville e o aberratório inseto de Kafka são símbolos ou, na linguagem deles, metáforas? E como descobriríamos que Machado de Assis escrevia nas entrelinhas?

Retrato

É rude teu sentimento
E nele tudo que medra
É duro como cimento
E ríspido como pedra.

Metrô

Era macio o cotovelo da mulher sentada ao seu lado no metrô, e também o joelho esquerdo, que se encostou no direito dele, como um cãozinho safado procurando aconchego.

Menino

Olhou-a no skype, surpreendeu a tristeza em seus olhos e sentiu-se rejeitado como um menino que vê lágrimas no rosto da mãe e sabe que não é por ele que ela chora.

Vice-versa

Que sejas sempre lembrada
E estejas sempre comigo,
Como amiga ou como amada,
Com teu amado ou amigo.

"Poema do fanático", de Murilo Mendes

"Não bebo álcool, não tomo ópio nem éter,
Sou o embriagado de ti e por ti.
Mil dedos me apontam na rua:
Eis o homem que é fanático por uma mulher.

Tua ternura e tua crueldade são iguais diante de mim
Porque eu amo tudo o que vem de ti.
Amo-te na tua miséria e na tua glória
E te amaria mais ainda se sofresses muito mais.

Caíste em fogo na minha vida de rebelado.
Sou insensível ao tempo - porque tu existes.
Eu sou fanático da tua pessoa,
Da tua graça, do teu espírito, do aparelhamento da tua vida.
Eu quisera formar uma unidade contigo
E me extinguir violentamente na febre da minha, da tua, da nossa poesia."

(Da coletânea Melhores poemas de Murilo Mendes, publicada pela Global Editora.)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Lá em casa

Na esquina opacamente iluminada, a mulher - de minissaia e salto alto, com uma espantosamente grande bunda e peitos que chacoalhavam quando ela dava seis passos para a frente e seis para trás, para manter seu ponto - parou quando o menino, de uns doze anos, se aproximou: "Mãe, o pai chegou bêbado e disse que se mata se eu não levar dinheiro."

Restaurante

Um pouco de chantili ficou no lábio dela, mas ele não avisou. Enquanto ela falava, ele ficou com os olhos fixos naquele ponto de inalcançável doçura, desatento ao som das palavras, apenas torcendo para que nenhuma sílaba fizesse a boca desmanchar o encanto.

Estúdio (para Priscylla)

Se ela sai, no estúdio as telas, os pincéis, as tintas e os esboços a esperam com uma tristeza que o sol tenta, mas não consegue atenuar, ainda que, esforçado, ensaie alegres desenhos nas paredes.

O primeiro (para o Verissimo)

Respirar é o erro fatal que todo ser humano comete logo no seu primeiro dia.

Eufemismos (para o Xico Sá)

Num mês quente ou num mês frio
Que bom seria se tu
Te fosses a Katmandu
Ou Portugal de navio.

Uma frase de Gabriel García Márquez

"Taciturno, silencioso, insensível ao novo sopro de vitalidade que estremecia a casa, o Coronel Aureliano Buendía compreendeu de leve que o segredo de uma boa velhice não é outra coisa senão um pacto honrado com a solidão."

(De Cem anos de solidão, tradução de Eliane Zagury, publicado pela Record.)

Gabo e o mestre Hemingway

García Márquez, então um repórter aspirante a escritor, viu num dia de 1957, em Paris, Ernest Hemingway na calçada oposta e, entusiasmado, berrou uma saudação: "Maestro!" Hemingway, atrapalhado, acenou: "Adiós, amigo." O diálogo ficou nisso. Se hoje ambos estivessem vivos e se reencontrassem, quem seria o maestro?

Parti pris

Não esqueçamos que essa definição - animal racional - foi cunhada pelo homem.

Enredo

Como se fôssemos
um gatinho
tolinho
o amor nos afagará

Como se fôssemos
um gatinho
chatinho
o amor nos afogará.

Soneto que fala da inutilidade do amor

Saúdo a mente sadia
Que, sempre à lógica atenta,
Das fantasias se isenta
E do vicio da poesia.

Saúdo o homem que se guia
Por sua análise lenta
E em nada mais se sustenta
Além da razão mais fria.

E saúdo sobretudo
Quem, pelo seu conteúdo,
O amor como inútil trata.

Esses jamais sofrerão
Esta dor, esta aflição
Que me atormenta e me mata.

Ótimo

Foram dizer ao chefe dos caçadores que ele, com um dos seus tiros, tinha acabado de matar a pomba da paz. "Ótimo", ele disse. "Por hoje chega. Vamos comemorar."

Marco

Gabo, começam hoje os infinitos anos de solidão.

Garimpo

Teus cabelos roçaram em minha mão, e há alguns dias venho sentindo nela uma mornidão de sol, uma faiscação de ouro, uma crepitação inquieta de pepitas, uma peneiração febril e, às vezes, à noite, acordo porque dos dedos emana um cheiro de álcool, de rum, de gim, e começo a ouvir exclamações de júbilo dos garimpeiros.

Respeito

O rio corria com mais fluência quando estava na sala. Agora, com a tela posta no quarto da dama enferma, que tanto a ama e louva por suas delicadas cores, o marulho do rio é tão inaudível e respeitoso quanto o zumbido da mosca sobre o jarro de flores.

Assim como os cães

Nas batalhas da vida, aprendi o básico: a curvar-me diante dos inimigos, a falar sua língua e a reverenciar os seus deuses. Não tendo talento para a glória nem audácia para a conquista, fiz o que convinha: tornei-me dócil e, se não pude erguer espadas nem troféus, consegui ao menos a honra de encher o cálice dos vencedores e - para quem acha essa uma tarefa vil - digo que tenho sido invejado por isso. Não sendo um vitorioso, sou visto ao lado deles e às vezes recebo tanto afeto quanto o que eles dedicam a seus cães. Quando morrer, talvez me caiba uma sepultura tão digna quanto a de um desses soberbos animais que alegram e enobrecem seus donos.


"O adorno", de Yves Bonnefoy

"Neva. Alma, o que querias
Que não tiveras de nascença eterna?
Vê, tens aí
Mesmo para a morte um vestido de festa.

Um adorno tal qual na adolescência,
Dos que nas mãos se toma com cuidado
Pois seu tecido é transparente e fica rente
Dos dedos que o desdobram sob a luz,
Sabe-se que ele é frágil como o amor.

Mas nele estão bordadas certas folhagens,
E já se faz ouvir a música
Ali na sala ao lado, iluminada.
Misterioso ardor te toma a mão.

Vais, coração batendo, na nevasca."

(Do livro Obra poética, tradução de Mário Laranjeira, publicado pela Iluminuras.)

Refrão do pequeno afogado

Me ensina o caminho, pluma,
Me mostra e, leve, me leva.
Não tenho medo da treva,
Do mar, das ondas, da espuma.

Até dela

Quando tiverem passado
As mágoas das horas más,
Estiver tudo perdoado
E tudo entre nós for paz,

Terei saudade dos dias
De fúria e de tempestade,
Das dores, das agonias
E até da tua crueldade.

Em vão

Chegou ao fim da vida e descobriu, depois de tanto esforço para mantê-la, que ela não vale a pena - seja grande a alma ou pequena.

O suicida

Em cento e vinte e um bilhetes ele ameaçou matar-se. No dia em que estava escrevendo, com definitivo esmero, o centésimo vigésimo segundo, a Morte, já com motivos para julgá-lo um poltrão, fulminou-o com um enfarte.

O que somos

De sangue somos, de artérias,
De pústulas e de fezes,
E produzimos misérias,
Desgraças, pragas, reveses.

Jogo

Fui eu que inventei o jogo
E que a jogar te ensinei,
Fui eu que ateei o fogo
E eu, eu só, que me queimei.

Perdão

Humilde, peço perdão.
Fui rude, eu sei, fui ingrato,
Mas pode alguém ser sensato
Em coisas do coração?

Soneto do golpe que atingiu o amor

Tudo ocorreu de repente
Sem aviso nem sinal,
Tudo bem óbvio e banal
Como ocorre normalmente.

De sua messe dourada
O amor os frutos colhia
E sobre os louros dormia
Sem recear ninguém nem nada.

Hoje ele um golpe sentiu,
Pôs a mão no peito e viu
O solo todo marcado.

É o sangue dele que corre,
É a vida dele que morre
Como um menino estuprado.

Déspota

O amor é um desses tiranos
Que nenhum golpe ou clamor
Nem a passagem dos anos
Jamais conseguem depor.

Justiça

Se Capitu não traiu Bentinho, francamente, não há justiça nem na ficção.

Um poema de Giuseppe Ungaretti

"SAN MARTINO DEL CARSO
Valloncello dell'Albero Isolato, 27 de agosto de 1916

Destas casas
nada sobrou
senão alguns
pedaços de muro

De quantos
me foram próximos
nada sobrou
nem tanto

No coração porém
nenhuma cruz me falta

É o meu coração
a região mais destroçada."

(Do livro A alegria, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Fernanda Lima

Agora só diz o nome de Fernanda Lima em casa, e baixinho. Disse alto, ontem, na Paulista, e imediatamente passou a ser seguido por uma alegre revoada de abelhas, borboletas e bem-te-vis.

Exercício número um

Soprar-lhe a nuca, afagar-lhe
A orelha, apalpar-lhe o rosto.
Depois, com volúpia e gosto,
A boca e os olhos beijar-lhe.

Consolo

Em meu ombro ponho a mão,
Falo comigo baixinho
E dou-me o morno carinho
Da autocomiseração.

Louco

Foi louco, sonhou demais,
E vendo o sonho frustrado
Chorou por não ter ousado
Ser mais louco e sonhar mais.

Conclusão

Olha, pelo que entendi,
Presumo que seja assim:
Não posso viver sem ti,
Mas podes viver sem mim.

Escolha

Quando ela alisa os cabelos com aquela descuidada ternura, ele não sabe se preferiria ser as mãos ou os cachos.

Veneno

Perto do seu braço direito e do copo, havia uma mosca, também morta.

Se

Se o que eu te disse de ruim
Olvidado por ti fosse
E só lembrasses, de mim,
O que te disse de doce.

Se em mim de novo tu cresses,
Como antigamente crias,
Não tristes, como agora esses,
Seriam os nossos dias.

Ao léu

Embaixo da lua enorme,
Deitado no frio chão,
Sonhando com um poema vão,
O amor enjeitado dorme.

Nossa Stratford

Nos bares da Vila Madalena será difícil encontrar um escritor igual a Shakespeare. Mas superior a ele haverá pelo menos meia grosa, nas noites de quinta-feira.

Vossa voz

Solene voz majestosa,
Igual a nenhuma voz,
Profunda voz, e preciosa,
Augusta como sois vós.

Wertheriano

Dorme o dia todo. Quando
Contra o seu desejo acorda,
Só chora e fica pensando
Em tiro, em veneno, em corda.

Soneto da verdade inaceitável

Foi tanto amor, tanto, que eu,
Que só por ele vivi,
No que aconteceu não cri,
No dia em que ele morreu.

Que sangue-frio tiveste.
Ninguém queria dizer-me,
Contudo tu vieste ver-me
E foste tu que disseste.

Meus olhos tristes te olharam,
Aflitos te interrogaram
E crer nos teus não queriam.

Não podia ser verdade
Tão grande infelicidade.
Mas teus olhos não mentiam.

"Eros suspenso", de René Char

"A noite cobrira metade do seu percurso. Neste segundo, o acúmulo dos céus ia caber inteiro em meu olhar. Eu te vi, primeira e única, fêmea divina, nas esferas transtornadas. Eu rasgava teu vestido infinito e te reconduzia nua no meu chão. O húmus vivo da terra esteve em toda parte.
      Voamos no espaço cruel, dizem tuas servas - ao canto da minha trombeta rubra."

(Do livro O nu perdido e outros poemas, tradução de Augusto Contador Borges, publicado pela Iluminuras.)



O Freud de Manhattan

Woody Allen é um psicanalista e tanto. Ele já me fez ver, mais de uma dezena de vezes, que meus dramas estão menos para uma tragédia grega que para um pastelão.

Soneto do amor sobrevivente

Quero dizer que apesar
Das noites atormentadas,
Das lágrimas derramadas,
De toda a dor e o pesar,

Que após ao amor lançar
As maldições mais iradas,
E as mortes mais desgraçadas
Para ele vaticinar,

Reconheço hoje que errei,
Que fui estúpido, eu sei,
Como sempre tenho sido,

E graças dou ao amor
Por ser como ele é, e por
Ter a tudo resistido.

Cinema

Os lábios dela traziam
Um gosto bom de batom,
De morango e de bombom,
Que os lábios dele lambiam.

Errar com acerto

Beckett nos incitou a errar com método e perseverança, errar sempre e melhor, em busca do erro impecável, perfeito, um objetivo tão desejável e inatingível quanto o acerto total.

Horizontal

Serei, acho, um belo morto,
Um bem-composto finado,
No meu novo estado absorto,
Tranquilo e compenetrado.

"A noite toda", de Yves Bonnefoy

"A noite toda a besta se mexeu na sala,
Que é esse caminho que não quer findar?
A noite toda a barca tem buscado a praia,
Que são esses ausentes que querem voltar,
A noite toda a espada conheceu a chaga,
Que é essa aflição que há de nada captar,
A noite toda a besta gemicou na sala,
Ensanguentou, e denegou a luz das salas,
Que é essa morte que não vai nada curar?"

(Do livro Obra poética, tradução de Mário Laranjeira, publicado pela Iluminuras.)

Destino

Formosa como um navio
Flutuando sob o luar,
Navegas pelo meu rio,
Mas de outros buscas o mar.

Bestialógico (para o Verissimo e o Xico Sá)

Digo sem nenhum desaire:
Quando Espinosa estava indo,
Rousseau já tinha ido e vindo
E Kant estava a voltaire.

Pelo pior

Se tens de dor a alma cheia,
Aguarda uma dor maior.
Em nós há algo que anseia
Sempre por algo pior.

Coloque-os

Por Deus, por mim, me socorra.
Coloque os braços em mim,
Coloque--os agora, assim,
E deixe-os, até que eu morra.

Submissão

Para fruir meu quinhão
De dores e de agonias
Acordo todos os dias
Tolo e feliz como um cão.

Menos

Ser diferente hoje. Falar de flores, sim, como sempre, mas não as comparar contigo, para que finalmente elas comecem a perder um pouco de sua presunção.

Acerto

Não há verdade mais clara
Nem evidência mais certa:
O tempo tudo repara,
A morte tudo conserta.

Alívio

Por itinerários tortos
Ou por caminhos normais,
Nós logo estaremos mortos
E não sofreremos mais.

Soneto da discrição

Talvez não queiras dizer-me
Que já são outros os dias
E que não sentes ao ver-me
Aquilo que antes sentias.

Talvez receies contar-me,
Temendo que o sofrimento
Seja capaz de matar-me,
Que de outro é teu pensamento.

Não temas. Se o que eu vivi
Vivi só graças a ti,
E a ti liguei minha sorte,

Posso acaso lamentar
Se tu me vieres a dar
Após tanta vida a morte?

"A melancolia", de Georg Trakl

"És poderosa, boca escura,
No íntimo, imagem formada
De nuvens de outono,
Silêncio dourado da tarde;
Grande corrente de brilho verde
Na região de sombras,
De pinheiros quebrados;
Um lugarejo
Que desfalece abnegado em imagens marrons.

Eis que saltam os cavalos negros
Em prado brumoso.
Soldados!
Da colina onde o sol rola morrendo
Jorra o sangue que ri -
Sob carvalhos
Atônitos! Oh, rancorosa melancolia
Do exército; um elmo cintilante
Caiu tilintando de fronte purpúrea.

Noite outonal vem tão fresca,
Brilha com estrelas
Sobre quebradas ossadas de homens
A silenciosa monja."

(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicado pela Iluminuras.)

terça-feira, 15 de abril de 2014

Soneto do difícil adeus

Difícil é dizer adeus se o dia
Banhado em pleno azul de primavera
Relembra o amor como ele outrora era
E a alegre tarde música anuncia.

Difícil crer que a amada poderia
Dizer que as dores e que a longa espera
Foram todas em vão, só uma quimera,
Um erro bobo que se esqueceria.

Difícil, impossível se pensar
Que aquela que juramos sempre amar
E o nosso juramento retribuiu

Possa num dia assim, de um sol tão pleno,
Dizer que o mel antigo foi veneno
E que a chama do amor se consumiu.

Tão... tão

Para tão grandes tormentos,
Desgraças tantas, e dor,
Eu tão escassos momentos
Vivi, tão curtos, de amor.

Jalne (para Priscylla)

Bem vi que o sol te acariciou os dedos antes de subir para o teu rosto. Não sei o que ele te cochichou, mas pressinto um amarelo mais vivo explodindo em tuas próximas telas.

Juventude (para Ivna Alba)

Esplêndida juventude,
Pudesse um dia reaver-te
Tão fácil quanto perder-te
Desgraçadamente eu pude.

Haicai (para Mariana Ianelli)

PAISAGEM

Silenciosamente
Flutua o cisne: outra lua
No lago dormente.

Soneto da arte de louvar

Que eu tenha em mim alguma arte
Com a qual, ou grande ou pequena,
Ou desvairada ou amena,
Eu possa sempre louvar-te.

E que eu consiga explicar-te
Que, sendo ventura ou pena,
Procela ou tarde serena,
És de mim a melhor parte.

E que eu possa noite e dia
Cantar a dor e a alegria
Que encontro apenas em ti.

E que, quando eu me calar,
Suspires e, com pesar,
Saibas que enfim eu morri.

Os homens da casa

O menino, cinco anos, espera diante da porta do quarto onde a mãe geme profissionalmente sob o corpo de um dos homens que toda noite ela recebe na cama de estrado lamuriento e colchão manchado. Quando o homem sair, o menino perguntará, tímido e esperançoso como sempre: "Pai?"

Elegância

Já separei o meu terno,
O escuro, o mais adequado,
Meu terno de ocasião,
E vou para o sono eterno
Com meu sapato lustrado
E meu mais sóbrio plastrão.

Soneto do tempo e do espaço

Minha ilusão te imagina
Caminhando pela rua
Com essa graça toda tua,
E te segue, esquina a esquina.

São três horas e já sei
Que tomarás o café
E irás depois ao balé,
E lá te imaginarei.

Contigo estando no tempo,
Enfrento um só contratempo,
Padeço de um só fracasso:

Estando sempre contigo,
Te vejo sempre comigo,
Mas nunca no mesmo espaço.

Gelo

São todos frios, bem frios,
São todas frias, bem frias,
Os dias todos sombrios,
As noites todas vazias.

Tributo

Talvez tenhamos sabido
Em tempos imemoriais
Dar ao amor o devido,
Porém não sabemos mais.

Apesar de (para o Verissimo e o Xico Sá)

Respira ainda, e o angustia
De manhã, ao acordar,
A atroz, a torpe ironia
De, após a morte invocar,
Noite a noite, dia a dia,
Poder ainda respirar.

Essa bênção

Que doce infortúnio, grata
Desgraça, morte querida,
Quando é paixão que nos mata
E amor que nos tira a vida.

Ornitologia

Se eu digo que é bem-te-vi,
Entendes sempre canário.
Amor, eu pergunto a ti:
Mudaste o teu dicionário?

Velhaco

O amor é um tipo finório.
Tem para cada ocasião
Um truque, ou uma porção,
Prontinhos no repertório.

Um trecho de Walt Withman

"Todas as verdades aguardam em todas as coisas,
Não apressam a sua entrega nem a ela resistem,
Não precisam de fórceps do obstetra,
O insignificante vale para mim tanto como o resto
(O que é mais ou menos do que um contato?)

A lógica e os sermões jamais convencem,
O orvalho da noite cala mais fundo na minha alma.

(Se é assim que se torna evidente para o homem e a mulher,
Se é assim o que ninguém nega.)

Um minuto e uma gota de mim acalmam a minha mente,
Creio que a gleba úmida se transformará em amantes e em luz,
E que a carne de um homem ou de uma mulher é o compêndio dos compêndios,
E que no sentimento que partilham há um cimo e uma flor,
E que a partir dessa ligação proliferarão infinitamente até que tudo seja criado,
E até que um e todos nos deliciem, e nós a eles."

(Do livro Canto de mim mesmo, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

O Mago

Apesar dos detratores, Paulo Coelho continua realizando o prodígio de tirar da cartola substantivos, adjetivos, verbos - e, às vezes, até frases.

A gata

Viúvo, mima sua melancolia como se ela fosse uma gata velha e doente. Toca Débussy, Chopin e Ravel para ela, lê trechos elegíacos de Rilke, leva-a até a janela nas tardes sombrias e chuvosas e, à noite, depois de acomodá-la na cama, ao seu lado, conta-lhe histórias sempre tristes, para que ela não se desvirtue.

O resultado

Em tudo em que me meti
(E em tudo tenho me enfiado),
Das duas uma: ou perdi
Ou então fui derrotado.

Se tardardes

Como as noites, como as tardes
E como os dias se vão,
A vida e os sonhos se irão,
E irão sem vós, se tardardes.

Quantas dessas

Quantas dessas, cantadas em versos, desdenharam os cantos e se movimentaram prazerosamente sob o corpo de homens que traziam na boca, ávida de beijos, ainda uns restos de jantar.

Beleza

Por seres assim como és,
Por teres essa realeza,
É que te louvo, Beleza,
E me ajoelho aos teus pés.

Soneto da prestação de contas

Um dia talvez eu possa
Quando esta mágoa passar
Lembrar-me sem lastimar
Daquela afeição tão nossa.

Talvez então eu consiga
Reconhecer que fui eu
E não o descaso teu
A causa do fim, amiga.

Ou talvez, mesmo mantendo
O que sempre eu presumi,
Acabe reconhecendo,

Como devia ter feito,
Que apesar de mim ou ti
O amor foi sempre perfeito.


O nome

Na primavera florida,
Amor, teu nome chamei.
Hoje, no inverno da vida,
Nem teu nome, amor, eu sei.

Conforto derradeiro (para o Xico Sá)

Depois de tanto ir e vir
E de questões sem respostas,
Nos resta agora sorrir
E estando já de mãos postas
Um bom caixão usufruir
Que não nos machuque as costas.

Melhor

Se para quem amor tem
O fim é sempre perdê-lo,
Melhor será ficar sem,
Melhor sonhá-lo que tê-lo.

"O amante diz da rosa no seu coração", de Yeats

"Tudo quanto é feio, destruído, todas as coisas gastas, velhas,
O grito de uma criança à beira do caminho, o rangido de uma carroça que se arrasta,
O pesado andar do lavrador, passo a passo sobre o limo invernal,
Maculam a tua imagem que engendra uma rosa no fundo do meu coração.

Tão grande é a mácula das coisas torpes que não pode ser descrita;
A minha ânsia é tudo reconstruir e sentar-me num verde outeiro solitário,
Com a terra, o céu, a água renovados, como um cofre de ouro
Para os meus sonhos da tua imagem que floresce numa rosa tão profundamente no meu coração."

(Do livro Uma antologia de W.B. Yeats, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Evolucionismo (para o Verissimo e o Xico Sá)

Darwin livrou Deus da única acusação séria que Lhe fizeram: a de haver criado o homem.

Soneto dos dois velhos conhecidos

Devo ter te conhecido
Em outro tempo, outras eras.
Tu deves ter me esquecido
E eu já não lembro como eras.

Mas já nos vimos, querida,
Ou como se explicaria
Tamanho amor? Uma vida
Somente não bastaria.

Se um poema terno te escrevo
Sinto que pago o que devo
E o que há muito merecias.

E tu não sentes também
Que se me dás tanto bem
É porque há muito o devias?

Encalhe

Na prateleira de R$ 1,99, o amor há uma semana espera que alguém o leve. Nesses sete dias, teve como vizinhos caixas de grampos para cabelo, pacotes de prendedores de roupa, cofrinhos para moedas e cinzeiros em forma de vaso sanitário. Todos já se foram.