quarta-feira, 31 de julho de 2013

Tarde

Um dia alguém te dirá
Qual foi teu maior defeito
E o que devias ter feito.
Mas tarde então já será.

Armação

Cuidamos do amor como aquilo que ele é: nosso bem mais precioso. Nós o poupamos de privações, nós o mimamos, nós o alimentamos com pão embebido em azeite de oliva. Nos entregamos a ele de mãos atadas e tudo nosso passa a ser dele, para depois podermos atirar-lhe ao rosto que ele é o culpado de nosso infortúnio.

Soneto da morte morosa

Se não há quem me conforte
Ou queira me consolar,
Respondam-me por que a morte
Demora tanto a chegar.

Me digam se há quem suporte
Vagar assim pelo mar,
Dobrado ao vento e à má sorte,
Sem porto para aportar.

E implorem a Deus que deixe
Que eu me transforme num peixe
E como prata a luzir

Chegue afinal a uma rota
Em que uma voraz gaivota
Se disponha a me engolir.

Fama

Se o que você quer é a fama, não basta subir ao trapézio e dar o triplo mortal sem rede. É preciso estatelar-se lá embaixo.

No asilo

Um ídolo da música nos anos 1960 cantará para nós numa tarde de domingo e, quando a madre agradecer e disser não ter como agradecer, ele sugerirá, constrangido, que ela poderia arranjar-lhe uma vaga ali. Ela fingirá não ter ouvido, ele repetirá o pedido e, quando de novo ela fingir, ele, com um constrangimento ainda maior, dirá ter feito só uma brincadeira. Dará mil jeitos de retardar sua despedida e acabará ficando para o jantar. Sob os olhos de censura agora explícita da madre, ele pedirá para repetir a sobremesa.

Um soneto de Camões

"Quando o Sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
Ao longo de uma praia deleitosa
Vou na minha inimiga imaginando:

Aqui a vi, os cabelos concertando;
Ali, com a mão na face tão fermosa;
Aqui falando alegre, ali cuidosa;
Agora estando queda, agora andando;

Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos tão isentos;
Aqui movida um pouco, ali segura;

Aqui se entristeceu, ali se riu.
Enfim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vã, que sempre dura."

(De Obra completa, publicado pela Companhia Aguilar Editora.)

O simples

Quando conhece todos os sinônimos - lar, habitação, morada, moradia -, o jovem escritor descobre que o melhor mesmo é usar casa. Assim como descobre que firmamento, ágape, porciúncula, adminículo, óbolo e desiderato são palavras com as quais não convém manter amizade.

O perigo

No amor, como acontece com todos os vícios, a recaída é fatal.

O caçador solitário

Aqui, ontem à noite, havia uma fogueira. Sobraram as cinzas, alguns ossos e o aroma da carne de um animal jovem. O Amor, antes de chegar o sol, pegou sua mochila, a espingarda e seguiu caminho. Hoje à noite, se vires na mata uma fumaça, ali estará o Amor, enterrando os dentes numa carne que lamentas nunca ser a tua.

No asilo

Uma vez por bimestre virá tosar-nos um barbeiro que, instruído pelas irmãs de caridade e pela psicóloga, dirá sentir inveja de nós, por termos nossas refeições na hora certa e estarmos protegidos do mundo cruel.

Maria Antonieta

Quando soube que as hordas clamavam por pão, Maria Antonieta se indignou: "Ora, pipocas, se não têm pão, que comam minhocas." Das duas vezes em que perdeu a cabeça, essa foi a primeira. A segunda foi mais séria.

Soneto dos encontros

Toda vez que nós nos vemos
Parece sempre a primeira,
Pois sempre igual é a maneira
Com que nós dois procedemos.

Tomamos café, falamos
De coisas tolas, banais,
Depois te digo até mais
E no rosto nos beijamos.

Quando de mim te despedes
Que eu fique em paz tu me pedes
E esteja sempre com Deus.

Deus é boa companhia
Mas (desculpe-me a heresia)
Eu prefiro os braços teus.

Se

Se minhas mãos
te mereceram um dia
já tanto tempo faz
tantos anos já morreram
que a memória menos lembra
do que imagina

Eu era ainda um rapaz
eras já quase uma menina.

Uma estrofe de Herberto Helder

"E eu desejaria levantar-me levemente
sobre as paisagens que se enchem de chuva
apaixonada.
Desejaria estar em cima, no meio da alegria,
e abrir os dedos tão devagar que ninguém sentisse
a melancolia da minha inocência.
Tanto desejaria ser destruído
por um lento milagre interior."

(Do livro Ou o poema contínuo, publicado pela Girafa.)

terça-feira, 30 de julho de 2013

Sinal

Se tudo vai sempre mal
E nada nunca vai bem,
Pode haver melhor sinal
De que a morte nos convém?

No asilo

Num dos dias de festa, um jovem pianista voluntário virá entreter-nos. No meio de uma das músicas, uma das velhinhas dirá ser um dos noturnos de Chopin, mas um velhote afirmará tratar-se de um samba de Pixinguinha.

Os outros e Tchekhov

O jovem que pretende escrever contos deve ler os melhores do gênero e Tchekhov. Ou então ler só Tchekhov.

Lembrança

Cada um que me oferece lugar no ônibus ou no metrô me faz lembrar tristemente meus melhores anos.

Tarefa

Os deuses me impuseram a busca da beleza, e eu só a encontro nos outros.

Um trecho de J.M. Coetzee

"Sabe que, se quiser ser um grande homem, deverá ler livros sérios. Deveria ser como Abraão Lincoln ou James Watts, estudando à luz de vela enquanto todo mundo dorme, aprendendo sozinho latim, grego e astronomia. Ele não abandonou a ideia de ser um grande homem; promete a si mesmo que logo começará leituras mais sérias; mas por enquanto só quer ler histórias.
   Lê todos os contos de mistério de Enid Blyton, todos os dos Hardy Boys, todos os de Biggles. Mas os livros de que mais gosta são as histórias da Legião Estrangeira francesa, de P.C. Wren.
   - Quem é o maior escritor do mundo? - pergunta a seu pai.
   - Shakespeare - responde o pai.
   - Por que não P.C. Wren? - ele indaga. Seu pai não leu P.C. Wren e, apesar de seu passado militar, não parece interessado. - P.C. Wren escreveu quarenta e seis livros . Quantos livros Shakespeare escreveu ao todo? - ele desafia e começa a recitar os títulos.
   Seu pai diz 'Ah' de modo irritado, mas não sabe a resposta.
   Se seu pai gosta de Shakespeare, então Shakespeare deve ser ruim, ele conclui. No entanto, começa a ler Shakespeare, na edição amarelada com bordas gastas que seu pai herdou e que deve valer muito porque é antiga."

(Do livro Cenas de uma vida, traduzido por Luiz Roberto Mendes Gonçalves, publicado pela Editora Best Seller.)
 

Nostalgia

Tranquilo tempo aquele em que as crônicas seguiam lentas como os bondes e nunca saíam dos trilhos. O cronista tinha tempo então de fazer o que os textos antigos, possivelmente por eufemismo, chamavam de cofiar a barba.

História

Eu em história sou fraco:
O que fazia um eunuco,
O que fazia um calmuco,
O que fazia um cossaco?

Soneto da seriedade

O amor nunca foi um jogo,
Nem distração nem folguedo.
Não brinquem com ele, que é fogo,
O amor não é um brinquedo.

O amor é um vício, um tormento,
Nos come, nos rói os ossos,
Nos mata de sofrimento,
Ri sobre os nossos destroços.

Se prazer dele esperamos,
Com isso apenas proclamamos
Que não passamos de idiotas.

O amor não é um palhaço,
Na corda bamba é um fracasso,
O amor não dá cambalhotas.

O esfaqueado

Mataram um homem
e os que o viram esfaqueado
e foram acudi-lo
se empenharam
em longa perquirição

Não atinavam com a razão
de alguém esfaqueá-lo
se bem que para o fato
de alguém matá-lo
não fizessem indagação.

Cotação do dia

Sente-se como um estorvo, como um corvo infiltrando-se num poema por imposição da rima ou ocupando, contra a vontade do pintor, o espaço mais azul da tela.

No asilo

Execrar o sol me custará caro, eu pressinto. Nos últimos dias, quando eu estiver no asilo, talvez nem na cadeira de rodas me levem para vê-lo no jardim. Deitado na cama, longe da janela, eu só poderei imaginá-lo - e ele nunca me parecerá tão inatingivelmente esplendoroso.

Cinco tankas de Takuboku Ishikawa

"Um cair de noite
e a vontade de escrever uma carta tão longa
que te faça sentir saudades de mim."

                    ***

"Durmo, repreendendo o coração
que sonha
com um amanhã melhor."

                    ***

"Mostrar um milagre qualquer
e desaparecer
enquanto estiverem surpresos."

                    ***

"Pobre de quem se contenta
escrevendo um romance ridículo.
Vento de início de outono."

                    ***

"Muita gente, em algum lugar,
jogos de sorte ou azar:
também quero tentar."

(De Tankas, tradução de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicação de Roswitha Kempf/Editores.)

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Meio a meio

Se vais plantar ilusões,
Plantar muitas é o que importa.
De cada duas porções
Uma sempre nasce morta.

Soneto da demasia

Não querer nada é o que conta.
Quem muito quer, com certeza,
Pela lei da natureza
Somente se desaponta.

Eu quis a beleza, e tanto,
Que até um louco veria
Que disso não adviria
Nada além de desencanto.

Se sonhar não traz senão
Tristeza e desilusão,
Que não sonhemos jamais.

Para prevenir protestos,
Sejamos sempre modestos:
Querer pouco é já demais.

Kama Sutra - CCXXXIII

Pensa que poderia passar a língua bem de leve no umbigo dela, como se fosse o de uma laranja-baía à qual ele estivesse suplicando que vertesse em sua boca um pouco de sumo.

Um trecho de Tostoi

"Ivan Ilitch via que estava se finando e o desespero não o largava. No fundo da alma, sabia bem que ia morrendo, mas não só não se acostumava com a ideia, como não a compreendia mesmo - uma absoluta incapacidade de compreendê-la.
   O exemplo de silogismo que aprendera no compêndio de Lógica de Kiesewetter - 'Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal' - sempre lhe parecera exato em relação a Caio, jamais em relação a ele. Que Caio, o homem abstrato, fosse mortal, era perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era um ser completa e absolutamente distinto dos demais."

(De A morte de Ivan Ilitch, tradução de Marques Rebelo, publicado pela Ediouro.)

Do que falar

Sei que não deveria importunar os outros com a minha tristeza, mas ela é o que tenho de mais precioso. Os ricos falam de seus jatinhos, suas casas, suas criadas poliglotas, suas viagens, suas amantes hábeis em contorções, contrações e manuseios. Eu falo das tardes melancólicas, das noites desesperançadas, de como a vida carrega nos ombros o peso de todos os ideais malogrados.

Cotação do dia

Desejo de sumir ou desaparecer - o que ocorrer primeiro e tiver jeito de definitivo.

Gps

Traçada está minha sina.
Meu gps, travado,
Aponta só para um lado:
Aqui vou eu, Vila Alpina.

As uvas

Com tantos animaizinhos tolos e de carne tenra à sua disposição, o que levou a raposa a cobiçar uvas na fábula?

Reciprocidade

Falar mal de alguém sempre faz com que eu me sinta desprezível. Para me consolar e aliviar minha consciência, ponho-me a imaginar que isso seja comum e que os outros falem mal de mim também - como se alguém fosse importar-se comigo.

Triste sem causa

Sou triste por intuição, por vocação. Não preciso de causa nenhuma para ser assim. Talvez eu tenha rido demais em outra encarnação e zombado de um deus que, travestido de bode, andava à cata de uma cabrinha especial.

Soneto dos convites recusados

Ninguém mais te vem à mesa.
Sabem o que tens a dar
E não querem partilhar
Contigo a tua tristeza.

Cansaram-se de provar
A tua eterna aspereza
No almoço e na sobremesa
E já não querem voltar.

Não há quem o teu convite
Não desdenhe ou não evite,
Sabem todos como és triste.

Expulsa a melancolia
E acolhe em ti a alegria,
Ou morre logo, e desiste.

Se estivesses lá

Nem sempre fui assim. Já estive melhor. Pena que não tivesses me conhecido então, quando aos sábados eu, com meu terno azul-marinho e meus sapatos engraxados, ia aos bailes no bairro e não dançava com ninguém. Se estivesses lá, loiríssima entre as loiras, menos coragem ainda eu teria, mas que recordação deixarias em mim.

Solamente una vez

Querer ser escritor foi um erro. Eu deveria ter me contentado em ser um leitor, assim como um homem, ao conhecer a mulher que lhe parece ideal, não deve nunca ir além do primeiro encontro.

O peixe

Sonho que estou me afogando tranquilamente, num rio de água limpa, como alguém matando a sede. Entra em minha boca, então, um peixe enorme, que se entala na garganta e me faz morrer atrozmente.

Ciúme

Se eu encontrasse alguém inferior a mim, me enciumaria.

Autodefesa

Desde o momento em que me tornei um amante da leitura, criei simpatia, nos romances, pelos miseráveis e pelos pobres de espírito. Já era uma espécie de autodefesa prévia, imagino.

Um trecho de J.M. Coetzee

"A primeira coisa que a parteira notou, ao ajudar Michael K a sair da mãe para entrar no mundo, foi que ele tinha lábio leporino. O lábio era enrolado feito um caracol, e a narina esquerda, bem mais dilatada. Escondendo a criança da mãe por um momento, abriu-lhe a pequenina boca, que mais parecia um botão de flor, e viu, com alívio, que o palato era perfeito.
   À mãe, ela disse:
   - Devia ficar contente, isso dá sorte."

(De O cio da terra (Vida e época de Michael K.), tradução de Luiz Araújo, publicado pela Editora Best Seller.)

domingo, 28 de julho de 2013

Na hora errada

Eu não estava mais preparado para o amor quando ele veio. Pesou no meu ombro menos que um pássaro jovem, mas logo me extenuei. Dele guardei apenas os doces sons com os quais, por aquele breve tempo, ele encantou meus ouvidos quase surdos.

Factual

Jamais briguemos com os fatos,
Eles são sempre certeiros.
Os últimos ultimatos
Sucedem sempre aos primeiros.

No supermercado

"Estou te dizendo que foi assim. Eu vi na tevê!"
"Não foi assim, não. Quer saber?  Fim de papo. Você não entende nada de papa."

Com este frio,

penso no sofrimento não propriamente do Abominável Homem das Neves, mas da Infeliz Mulher das Neves, quando, à noite, ele lhe percorria preliminarmente o corpo com as mãos.

Contradição

Por que é que nós nos queixamos,
Chamando o amor de inclemente?
O amor tem unicamente
A importância que lhe damos.

Reafirmação

Alguns dias, apesar de tudo, preciso me olhar no espelho e me reafirmar incapaz. É quando me vem outra vez a pretensão de alcançar as estrelas. Estive perto de uma, é verdade, mas foi há muito tempo, e foi o que me desgraçou.

Ingratidão

A literatura tem pelo menos um motivo para me censurar: deu-me tanto, eu não lhe dei nada.

Um trecho de Alcione T. Silva

"Pode-se ouvir o silêncio. Nitidamente, porque é o único som que preenche o espaço, aqui. O silêncio é um zunido que não se saberia detectar de onde provém, porque, na verdade, é quase um corpo compacto - uma substância compacta, preenchendo o vazio despido de verdadeiros sons. O silêncio zune, zoa, num ritmo enlouquecedor, porque linear e descontínuo. O silêncio poderia enlouquecer; ou embriagar, intoxicar, levar à mesma espécie de embriaguez do azoto. O silêncio - como o "muro azul" para os mergulhadores: lá, a embriaguez da profundidade; aqui, a embriaguez letal pelo silêncio."

(Do livro Flashback - dimensão de memória, publicado pela Quatro Artes.)

Escrever...

... para quê? Quem, podendo baixar Shakespeare inteiro em cinco minutos, se deixará enganar por nós? E há, ainda, quem dê cursos sobre romance, crônica, poesia (e ganhe dinheiro com isso). Vendilhões! No Dia do Juízo Final serei cobrado pelas ignomínias que em nome da literatura a minha vaidade praticou. Deus, se eu queria ser amado e admirado, por que não aprendi a honesta arte dos malabares?

Cotação do dia

Frio na alma, como naquele bolero. Frio nas mãos, que apalparam carnes mornas e hoje se enfiam em luvas, como prisioneiras. Somos todos prisioneiros da esperança. Quando somos adolescentes, ela nos pede carona, loiríssima, na estrada em que passamos com nosso primeiro carro, quase 0 km. Nós a deixamos entrar, porque assim está sempre escrito, e ela faz escorregar sua mão esquerda em nosso joelho. É um bom começo, como todos costumam ser. Seguimos com ela, a estrada é longa como a nossa luxúria. De repente, sentimos que estamos nas últimas curvas. A mão da esperança continua em nosso joelho, mas está fria agora, como bem sente a nossa, quando pousa sobre ela. O rosto dela mudou também, como o nosso, e a noite nos espera depois da última reta.

Expressão

Há bundas que dizem mais de um caráter do que um rosto pode fazê-lo.

Pelo menos uma

Um homem sem qualidades deveria ter pelo menos uma: a de se reconhecer assim. Isso evitaria, por exemplo, a existência de tantos escritores frustrados.

Megalomania

A repugnância infinita que sinto por mim é, curiosamente, um efeito de minha megalomania: quero ser o maior em tudo.

Autocrítica

Se há um autoelogio que posso fazer tranquilamente é o de que estou preparado sempre para a autocrítica e sei, como ninguém, fazê-la resvalar para a autoflagelação. Sou um verme que sabe o que é.

No frio

No frio, é mais fácil definir o que é felicidade: um chá, talvez com rum, um cobertor bem grosso, a sensação de se estar seguro em casa, e o que mais?

O haicai

O haicai não diz, o haicai sugere. O haicai não narra momentos, o haicai é o momento. O haicai não é um pássaro, é a sua sombra. Quando o percebes, o haicai já vai longe.

Um trecho de Lobo Antunes

"Gosto das tuas nádegas caídas, gosto das tuas coxas, gosto dos ombros pendentes, das clavículas em assento circunflexo, o vapor saía da casa de banho em rolos esbranquiçados e ténues que o espelho do armário em frente devolvia, tinhas corrido a cortina de plástico e posto uma touca transparente na cabeça, distinguia-te o vulto, curvado, a ensaboar as pernas, vou penetrar-te por detrás, rasgar-te a vulva, dobrar-te os rins (atónitos) no esmalte da banheira, ergueu-se nos membros traseiros num sopro furioso."

(Do romance Explicação dos pássaros, publicado pela Alfaguara.)

sábado, 27 de julho de 2013

Web

A amores tolos, virtuais,
E a coisas do mesmo naipe
Não dê atenção demais,
Fuja deles, corra, skype.

Soneto da obediência

Às ordens do nosso amor
Sejamos sempre submissos
E a qualquer apelo omissos,
Se apelo dele não for.

Sejam nossos compromissos
Os que ele, nosso senhor,
Puser ao nosso dispor,
Seus mais do que fiéis noviços.

Somente a ele guiar-nos cabe,
Apenas ele, o amor, sabe
O que é melhor para nós.

Na dor ou felicidade,
Tenhamos nós a humildade
De seguir só sua voz.

Ogro

Quando me vejo no espelho, pergunto-me por que diabos Deus não me compensou com um intelecto melhor. Fazer quadrinhas e sonetos capengas é tudo que este rosto de Quasímodo merece?

Um trecho de Machado de Assis (21 de outubro de 1888)

"A Agência Havas acaba de comunicar aos habitantes desta leal cidade que o Imperador Guilherme II visitou Pompeia, e foi muito aclamado. Não confundam essa Pompeia com o nosso Raul; este vi-o hoje na igreja do Sacramento, e com certeza não foi o visitado. A Pompeia do telegrama é a velha cidade que o Vesúvio entupiu em 79, e foi descoberta em 1750.
   Singular fortuna, a do atual imperador da Alemanha! Até os mortos o aclamam. Os esqueletos, se ainda os há, as velhas armas romanas, as trípodes, as colunas, os banheiros, as lâmpadas, as paredes, os mosaicos, tudo o que por lá resta do mundo antigo compreendeu que ali estava o árbitro dos tempos, e tudo se inclinou e bradou: Viva o imperador! Pode ser que até falassem em alemão.

(Do livro Bons Dias!, coletânea de crônicas organizada por John Gledson, publicada pela Editora Unicamp.)

Cotação do dia

A convicção de que os grandes sonhos hão de ser sempre irrealizáveis.

Eufemismo

Sempre fui mais ou menos bonzinho em tudo que faço, na vida e na literatura. Para ser bonzinho comigo também, não me acho medíocre. Prefiro julgar-me regular.

O bailarino da 7 de Abril

Um dos personagens mais interessantes de São Paulo nos anos 1970 era visto quase todas as tardes entre a uma e meia e as duas na 7 de Abril, diante do edifício dos Diários Associados. Ele escolhia um momento em que os carros estivessem mais empenhados em ultrapassar uns aos outros e atravessava a rua entre eles, com giros e rodopios, na ponta dos pés. Parecia impossível, mas sempre chegava ao outro lado, e era aplaudido com entusiasmo, como se fosse um bailarino no Municipal. Era isso, aliás, que diziam que ele tinha sido. Havia quem atrasasse seu compromisso por dez ou quinze minutos para acompanhar o espetáculo diário. Eu, por exemplo, que trabalhava na revista Visão, na Bráulio Gomes, estava sempre com os olhos prontos para ver e as mãos preparadas para as palmas.

"Sabático"

Continuo a lastimar que uma notável realização jornalística - talvez a mais significativa dos últimos vinte anos - tenha morrido. O "Sabático" faz-me uma falta enorme.

Soneto do tempo futuro

Que possas lembrar de mim
Pelo menos com carinho
Quando o amor chegar ao fim
E eu já estiver sozinho.

E quando eu estiver triste
Que possas ainda em mim ver
Um pouco do que em mim viste
E eu pude te oferecer.

Então, quem sabe, condoída,
Entendas, minha querida,
Que mais amor não te dei

Porque uma vida somente
Não seria suficiente
Para dar-te o que ganhei.

Kama Sutra - CCXXXII

Sempre que a vê, ela lhe parece tão poderosa com seu corpo que ele se sente indigno dos seus seios, da sua boca, do seu sexo que imagina suavemente protegido por fios de ouro. Ele fica por uns momentos imaginando como gostaria de encostar os lábios numa de suas orelhas e dizer eutequeromuito e depois, para ser equânime, dizer à outra eutequerodesesperadamente. Enquanto imagina isso, ela se vai, caminhando com uma altivez que rainha nenhuma jamais teve na Terra.

Um poema de Marina Tsvetáieva

"Tu que me amaste com a falsidade
Da verdade - e com a verdade da mentira,
Tu que me amaste - mais longe
Que o espaço  - além dos limites!

Tu que me amaste mais longo
Que o tempo - direita ao alto! -
Tu não me amas mais:
A verdade em cinco palavras."

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, publicada pela Martins Fontes.)

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Soneto dos frutos tardios

Era a estação de colher,
Mas nós dois, tolos, a adiamos
Porque mais doces pensamos
Os frutos depois comer.

Julgávamos merecer
Frutos melhores, e achamos,
Enquanto o dia esperamos,
Quão belos iriam ser.

Passou o tempo, a estação
De frutos se foi em vão
E depois, quando outras vieram,

Vimos que os frutos ansiados
Eram mofinos, mirrados
E nem sequer doces eram.

Kama Sutra - CCXXXI

Mantêm o rito da primeira noite. Apagam as luzes e abraçam-se, em pé e vestidos. Ela, como na primeira vez, finge esquivar-se, e ele, com seus beijos loucos e desnorteados, ataca-lhe o rosto, o pescoço, a blusa, o colar, o brinco, os braços. Depois, sem parar de beijá-la, ele a vai empurrando de costas para o quarto, derruba-a sobre a cama e se atira em cima do seu corpo. Então ela, já receptiva, e ele, no escuro, começam a se despir, um ao outro, com a mesma sofreguidão da primeira vez, três anos atrás. Houve uma noite, nessas mil e tantas, em que não seguiram o ritual e ambos pareceram extremamente enfadonhos um ao outro.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Tchekhov disse muitas e muitas vezes, protestou, insistiu que ele não tinha problema nenhum. De fato, ele pensava que era sua fraqueza de artista. Isso o aborrecia, mas ele repetia sempre a mesma coisa. Não tinha problemas. Quando se pensa nisso, qual era o problema de Chaucer e Shakespeare? O 'problema' é uma invenção do século 19. O artista pousa longamente o olhar sobre a vida e diz, suavemente: 'Então, isso é que é a vida?' E procura expressar isso. Deixa todo o resto. Mesmo Tolstói não tinha problema, a não ser com a propaganda que fazia de suas ideias. Apesar disso, ele é um grande artista, sem dúvida alguma."

(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

Vem me cumprimentar...

... um sol friorento, tímido, como o sorriso de Caio Fernando Abreu. Se o sol me dissesse algo, seria: "Desculpe, é o melhor que consigo ser hoje." Amanhã ele talvez apareça mais animado, juvenil. Afinal, amanhã é sábado. Para Caio Fernando Abreu, nunca era sábado. Domingo, nem pensar. Caio Fernando Abreu não era jovem nem velho. Ele tinha a idade de sua tristeza. Ele a amava e pedia desculpas por não poder deixar de ser como era.

Sebo

Poucos prazeres se comparam ao de entrar num sebo daqueles bem sombrios e buquinar. Que emoção há em puxar devagarinho de uma estante velha um livro de que se ouviu falar a vida inteira e já não se tinha esperança de encontrar. Equivale à ansiedade do jogador que, necessitando de um ás para fechar uma sequência, o vê surgir de repente do baralho, como se estivesse ali há séculos esperando o momento de servi-lo. É o momento em que o amante de livros segura aquele, especial, e o traz ao peito, como quem traz ao peito a mulher amada, aquela única, que por deferência os deuses puseram em seu caminho

A tristeza em Lobo Antunes

Em Explicação dos pássaros, de António Lobo Antunes, encontro uma tristeza aguda e insuportável, construída toda sobre a tediosa vida dos personagens. Não é a tristeza dos grandes ideais fanados, a dos protagonistas que se julgam maiores do que são. É a tristeza chã, de quem suportaria melhor a vida se lhe servissem um café um pouquinho menos amargo. A tristeza dos personagens de Lobo Antunes não é a das altas cogitações, mas a de quem, ciente da simplicidade da vida, mesmo assim não consegue adaptar-se a ela. A todo instante, a leitura me faz lembrar a angústia que Fernando Pessoa consegue nos passar no poema em que deplora terem lhe servido uma dobradinha à moda do Porto fria.

O milagre

Tantos maravilhosos livros, que não chegarei a ler, e no entanto eu gasto meu tempo andando para cima e para baixo com meu bloco e a canetinha, como se a qualquer momento pudesse realizar-se em mim o milagre da literatura.

Anverso e verso

Cantemos - e por que não? -
A mulher casta e divina
E também a ratuína,
Se as duas amor nos dão.

O melhor livro

Quando eu escrevia para a faixa dos seis aos dez anos e em um colégio algum menino me dizia que um livro meu era o melhor que ele tinha lido, eu não perguntava se aquele por acaso não seria o único que ele conhecia em sua curta vida de leitor, para não ouvir que sim, que por acaso era.

Kama Sutra - CCXXX

Visto-me com o pijama que me deste antes de ires embora. Deito-me com ele, sobre ele, meu ventre o pressiona. A seda escorrega, tenta escapar-me, mas eu a mantenho presa e quase já posso iniciar os movimentos no fim dos quais estarei sussurrando o teu nome.

Um trecho de Lobo Antunes

"Nos primeiros tempos, pensou, trazias-me o pequeno almoço à cama, Queres café com leite ou chá?, de roupão, penteada, risonha, beijavas-me o pescoço, comias-me as migalhas das torradas no peito, descias-me a palma, sobre os cobertores, até às ancas, avaliavas-me o pénis numa careta divertida, esquecida de Marx, de Visconti, da poesia concreta, do terrível e histórico combate para a libertação da mulher: Há quantos meses a ventosa morna e mole da tua língua me não passeia nas costelas, há quantos meses a tua cabeça se me não confunde com o púbis, há quantos meses não entro em ti, de um só golpe, num impulso raivoso, apaixonado das virilhas?"

((Do romance Explicação dos pássaros, publicado pela Alfaguara.)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Um soneto de Camões

"Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte,

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte."

(Do livro Obra completa, publicada pela Companhia Aguilar Editora.)

Gatos

Se o tempo que gastou para fazer o homem tivesse sido empregado por Deus para conceber outras espécies de gato, o mundo seria muito melhor.

Tardio

Quando Cyrano de Bergerac e seu formidável nariz nasceram, infelizmente fazia muito tempo que Arquimedes lançara seu apelo: "Deem-me uma alavanca e um ponto de apoio, que eu moverei o mundo."

O que o amor não é

O amor não é um pirata,
Aos oceanos não se lança
Movido pela esperança
De arrebatar ouro e prata.

O amor não se atira aos mares
Nem a saques se abalança
E em batalhas não se cansa
Por pulseiras ou colares.

O amor é simples, singelo,
E para mostrar-se belo
Prescinde do artificial.

Os mais dourados anéis
Para o amor são ouropéis
E todo luxo é banal.

Do tema na literatura

O escritor jovem não deve martirizar-se em busca de assuntos originais. Isso não existe. As grandes obras da literatura não têm no tema sua força. As histórias são todas banalmente iguais. O que importa na literatura - e na arte em geral - é o modo de narrar ou de fazer. Façam, narrem, escrevam. Para os poetas, então, a liberdade é total. Com exceção dos ultrapassadíssimos poemas épicos, que têm sempre um prot6agonista tão chato quanto o tema, a poesia pode falar de tudo e de qualquer coisa - uma árvore, um gato, o mar - ou de nada. Falar de nada, ou de algo que não se sabe bem o que é, rende os melhores poemas.

Um trecho de Lobo Antunes

"Demasiado egoísta, demasiado burguês, demasiado medroso. Faltava-lhe coragem, nervo, fibra, convicção, capacidade de luta. Distribuía uns panfletos, colava uns cartazes, apaziguava a má consciência, pouco mais. Um verdadeiro comunista, camarada, não se suicida."

(Do romance Explicação dos pássaros, publicado pela Alfaguara.)

Bom dia

Há de ser um bom dia, sem grandes indagações, sem agitações da alma. Há de ser um dia que nos mostrará o que nem sempre queremos ver: que a vida é simples, se nós nos dispusermos a vê-la assim. Devemos perder a mania de querer que tudo ao nosso redor seja constituído sempre de notáveis acontecimentos. Não somos personagens épicos. Bom dia.

Na fria madrugada,

o Amor foi levado ao abrigo de indigentes. Deram-lhe uma cama e, de manhã, acordaram-no para lhe oferecer a primeira alimentação do dia. Sentado à imensa mesa, ele recusou o café, o pão, o queijo, o suco de laranja. Tirou do bolso da camisa encardida um bloco, uma canetinha e começou a escrever um poema.

Seis versos de John Donne sobre o amor

"Em todos e tão doces passatempos, como nestes,
Foi o amor sutilmente apanhado, tal doença;
Mas, depois de apanhado, é um doce tesouro,
Mais difícil de defender que conquistar:
Não deve ser profanado por qualquer das partes,
Pois, sendo apanhado por sorte, mantém-se pela arte."

(De Elegias amorosas, tradução de Helena Barbas, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

À alma

À alma agradam dias assim, gelados, brumosos, envoltos em melancolia. Ela se encolhe com suas tristezas, aperta-as contra o peito, agasalha-as com o calor que lhe resta. A alma nasceu para estas neblinas, para o nariz escorrendo, para os passos friorentos. Ela aproveita para se prover de alimento nessas raras ocasiões em que o burburinho da vida não a sacode pelos ombros e não lhe cobra: "Ei, você, por que só você não dança? Você se acha melhor do que nós? Quer um gole de vinho?"

Simples assim

Uma certeza que tenho é a de que viver seria fácil, se eu soubesse.

Cotação do dia

Um filete amarelo escoando-se, com pretensão a arroio. O encarregado de limpar o mictório não vem trabalhar há uma semana.

Frio

O frio foi tanto que a ameixeira ficou batendo os dedos na janela, de madrugada, suplicando para entrar.

O amor no jardim

Que boa ideia tivemos
Quando naquele momento
Ao alvissareiro vento
O nome do amor dissemos.

Assim que isso nós fizemos,
Vimos com encantamento
Que ele entendeu, muito atento,
A incumbência que lhe demos.

E, dizendo-o no jardim,
O nome do amor assim
Transformou em mil amores.

E as árvores, dadivosas,
Cobriram-nos prazerosas
Com a seda de suas flores.

Queixas & reclamações

E este frio da puta, indecente, devo creditá-lo ou debitá-lo a que esfera de governo: estadual ou federal?

Daltonianas

As mulheres dos contos de Dalton Trevisan borrifam o corpo com perfume comprado no camelô e raspam as axilas com a gilete do amante.

E ainda isso

O pior que podem fazer comigo - e fazem sempre - é me dizerem que não sou tão desprezível quanto me proclamo. Quando procedem assim, me sinto não só desprezível, mas também mentiroso.

Penúria

Quem tem livro de cabeceira geralmente não leu mais do que dois ou três além desse.

Dalton Trevisan

Se Dalton Trevisan jamais foi à Bienal de Frankfurt, a Bienal de Frankfurt já há muito tempo deveria ter vindo a Dalton Trevisan.

O haicai

Caio Fernando Abreu falava em pequenas epifanias, e a quem julgar a expressão uma contradição em termos eu respondo com o incontestável argumento do haicai, talvez o exemplo supremo de uma pequena epifania.

Três tankas de Takuboku Ishikawa

"Nas mãos, um punhado de areia.
Lágrimas a escorrer pelas faces.
Como te esquecer?"

                    ***

"Deitado de bruços na duna
com um passado distante
a dor do meu primeiro amor."

                    ***

"Quando todos os amigos
parecem me superar, compro flores
e o íntimo reparto com minha mulher."

(Do livro Tankas, tradução de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicado pela Roswitha Kempf/Editores.)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Superfluidade

Nunca digas que amas loucamente. É um pleonasmo. A loucura é um atributo do amor.

Msn

Enquanto eu olhos tiver,
Que eu não os gaste jamais
Lendo revistas, jornais,
Nem mensagens de mulher.

Eu quero, enquanto puder,
Ler as obras essenciais
De grandes gênios mundiais,
Shakespeare, Rousseau, Voltaire.

Nunca mais ler baboseiras,
Textos sem eiras nem beiras,
Recados tolos de amor.

Que Deus me julgue e condene
Se eu voltar ao msn,
Seja a que pretexto for.

Suicídio venturoso

A borboleta voa em torno da lâmpada e, embriagada de luz, pousando na borda do cálice, escorrega voluptuosamente para dentro do vinho.

Minha alma

Não precisas perguntar à minha alma se ela sofre. Basta que te aproximes e num gesto rápido puxes suas mangas. Os cortes te responderão.

As etapas

Minha irmã Estela, que morreu este mês, me dizia que não lhe agradaria voltar a ser jovem. Para ela, o que se viveu deveria ser esquecido, tanto as coisas boas quanto as más. Eram, bem ou mal, etapas vencidas. Ela acreditava que todos nós nascemos com um número predeterminado de etapas a cumprir e que feliz seria quem chegasse logo à última.

A dúvida

E se, como planejas, saltares do vigésimo andar e lá pelo décimo quinto te nascerem asas e te puseres a flutuar? Melhor que pules do sétimo, ou do sexto, para não dares tempo a surpresas.

Um trecho de Caio Fernando Abreu

"Ah: fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas na tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro o cheiro preciso dele."

(Do conto "Natureza viva", do livro Morangos mofados, edição do Círculo do Livro.)

Pior é...

... o frio na alma. Ela, como uma gaivota que não se sabe muda e surda, apela, e seu grito não faz mais que provocar cócegas na sua garganta. As outras riem dela.

De um bilhete

"Te darei adeus um dia, sei que darei, ainda que tua indiferença não se dobre e me obrigue a dá-lo olhando para a tua foto."

Kama Sutra - CCXXIX

Deitou-se com urgência extrema sobre a mulher e, segundo seu relato, se ela não tivesse aberto imediatamente as pernas, ele faria no colchão um buraco que iria até o assoalho.

Será um dia triste,

certamente, como têm sido quase todos os que vivo há três anos e meio, quando começou para mim a era PP (Post Priscyllam). Deles eu salvo três, na verdade. Eles foram tão esplendorosos que compensam ainda a escuridão e o frio dos outros mil e tantos. Se me queixo constantemente, é mais para lembrar-me desses três dias de fulgor. Visto assim, com a beleza desse contraste, será um bom dia.

Sonho

Estou num ambiente dominado por senhores austeros, que parecem de outros séculos. Alguns deles sentam-se comigo à mesa, da qual ocupo o centro. Um deles lê um papel e menciona meu nome. Aplausos. Não entendo a língua que fala, mas deve estar me elogiando, porque, quando volto a ouvir meu nome, novos aplausos, educados, soam. Ele mostra então, sentada à minha direita, no canto da mesa, uma mulher muito bonita que se levanta, também com um papel na mão. Começa a ler e julgo descobrir que, assim como o homem que a precedeu, fala sueco. Concentro-me, nem tanto no que ela diz, mas em seus lábios e seus cabelos de ouro. Quando cita meu nome, novamente me aplaudem. Quando ela diz a palavra final e me aponta, as palmas parece que vão derrubar o auditório. Priscylla Mariuszka Moskevitch me entrega então o prêmio que mereci pela tolice de amá-la. Eu agradeço, comovido.

Ego sum qui sum

No meu caso, a velhice jamais poderá ser confundida com maturidade.

O último na escala

O recado que dou às pessoas é quase cristão. Digo a elas que nenhuma jamais se considere o ser mais desprezível do planeta. Esse, por direito, sou eu.

O ato de morrer

No ato de morrer deveria haver sempre uma delicadeza livre de espasmos, de gorgolejos, de babas. O ato de morrer deveria ser uma doce omissão.

As categorias

Os homens se dividem em duas categorias: os bem-sucedidos e os ressentidos. Costumam alternar-se. Ora estão numa, ora na outra. Alguns, eternas exceções, não mudam nunca. Eu estou sempre na segunda.

Cautela

O único cuidado que se deve ter ao falar mal do próximo é fazer isso em voz baixa.

Antes tarde

O que eu mais quis na vida foi ser cronista, e cheguei mesmo a sê-lo (!!!), no Estadão e na Veja. Felizmente para os leitores, depois de mil e quinhentas crônicas descobriu-se que não tenho vocação para isso.

À luz de velas

Não sei a que esfera agradecer - se à federal ou à estadual -, mas esta noite eu me senti como Gustave Flaubert: escrevi à luz de velas. Meu estilo não melhorou, mas, como se diz, valeu o esforço.

Os nexos

Na vida, há o nexo causal e o nexo casual. Para o filósofo, o que importa é o primeiro. Para o artista, é o segundo, que tem um fascinante sinônimo: destino.

O furacão

Não sabe se o fato de o furacão Priscylla ter derrubado também a casa de outros homens há de lhe servir de consolo.

No asilo

Será uma noite de domingo. Ele não terá recebido visita, mas, ao se deitar, virá da sala o eco de vozes e risos nos quais, a tarde inteira, ele terá tentado reconhecer um som familiar. Ele se arrependerá por ter implorado que não o visitassem nunca - mais uma entre tantas decisões erradas na sua vida.

Segunda natureza

O insucesso já faz parte dos seus hábitos, como o cafezinho depois do almoço, sem o qual não passa.

Cotação do dia

Frio, omisso e indiferente como um defunto. Finalmente! Há muito já venho merecendo isso.

Um trecho de crônica de Machado de Assis

"Bons dias! Pego na pena com bastante medo. Estarei falando francês ou português? O Sr. Dr. Castro Lopes, latinista brasileiro, começou uma série de neologismos, que lhe parecem indispensáveis para acabar com palavras e frases francesas. Ora, eu não tenho outro desejo senão falar e escrever corretamente a minha língua; e se descubro que muita coisa que dizia até aqui, não tem foros de cidade, mando este ofício à fava, e passo a falar por gestos.
   Não estou brincando. Nunca comi croquettes, por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei filet de boeuf, é certo, mas com a restrição mental de estar comendo lombo de vaca. Nem tudo, porém, se presta a restrições; não poderia fazer o mesmo com as bouchées de dammes, por exemplo, porque bocados de senhoras dá ideia de antropofagia, pelo equívoco da palavra. Tenho um chambre de seda, que ainda não vesti, nem vestirei, por mais que o uso haja reduzido a essa simples forma popular a robe de chambre dos franceses,"

(Crônica de 7 de março de 1889, extraída do livro Bom dias!, coletânea organizada por John Gledson, publicado pela Editora Unicamp.)     

terça-feira, 23 de julho de 2013

Justo ela

Curioso é que justamente a pessoa que mais censurava minha tendência de me autodepreciar foi quem sempre mais contribuiu para ela e quem acabou por provar, mais do que cabalmente, que eu estava certo.

Furacões

Os meteorologistas são sábios. Darem aos furacões nomes de mulher é uma prova disso. Todo homem tem um furacão que destroça sua vida. O meu chamava-se Priscylla.

Suicídio poético

Descobrindo enfim um uso prático para a lei da gravidade, pendurar-se pelo pescoço num galho de macieira e morrer provocando uma avalanche de frutos.

Mantra para acompanhar a siririca

Mariquinha, Maricota, com a direita e com a canhota.

(Repetir, até atingir o orgasmo.)

Um trecho de Thomas Bernhard

"As palavras alemãs pendem da língua alemã como pesos de chumbo, disse a Gambetti, e toda vez oprimem o espírito a um nível que é prejudicial a esse espírito. O pensamento alemão e o discurso alemão bem rápido se paralisam sob o fardo desumano de sua língua, que reprime tudo o que é pensado antes mesmo de ser expresso; sob a língua alemã o pensamento alemão só pôde se desenvolver a custo, e jamais se desdobrar plenamente, ao contrário do pensamento latino sob as línguas latinas, como demonstra a história dos esforços centenários dos alemães."

(Do romance Extinção, traduzido por José Marcos Mariani de Macedo, publicado pela Companhia das Letras.)

Cada um dos que têm...

na literatura o pão de cada dia se sente como Jean Valjean. Tudo que se escreve já foi escrito e nossa única desculpa é sempre aquela: temos fome.

O infatigável Juca Chaves

Um chamado traço marcante de Juca Chaves é o empenho com que, desde jovem, se atirou ao trabalho. Em 50 anos de carreira, já compôs meia dúzia de cantigas e uma dúzia de piadas, tão boas que não precisou fazer nada além disso. Elas bastam, ainda hoje, para as duas horas de show com que bissextamente encanta ainda seus fãs. Na década de 60, Juca esteve ativo também na literatura, como se lê numa publicação da Editora Abril (Literatura Comparada, salvo engano). Segundo ela, Juca pertenceu na época, com destaque, a um movimento na Biblioteca Mário de Andrade: o simplismo. Nesse tempo eu praticamente vivia na biblioteca e, se vi Juca por ali, foi passando com seu carro esporte, a caminho de Verinha. O simplismo deu mídia por algum tempo e nem sequer chegou a se esvaziar, porque já nasceu vazio. Viríamos a descobrir sua importância anos depois, quando Juca declarou ter participado dele. Podemos dizer que foi uma honra para nós.

O salteador

Digam o que disserem
o amor é o que é
um salteador

Segue-nos
persegue-nos
assalta-nos
mata-nos

E se não fizer isso
nos pomos a perguntar
que droga é essa
de salteador
se não sabe seguir
nem perseguir
nem assaltar
nem matar?

Escritores de coquetel

Há escritores que um dia estão em Madri, no outro em Frankfurt e no seguinte em Bolonha. Empenham-se em divulgar a literatura, é o que dizem, e são reverenciados por isso. Terão tempo, ainda, de escrever? De vez em quando suas editoras, também devotadas ao trabalho de divulgação, anunciam o lançamento de um livro de crônicas ou artigos publicados no espaço de três anos nos jornais: mirradas setenta páginas. Viajar é preciso, escrever nem tanto. Um desses escritores não arranja quinze minutos nem para ocupar sua coluna quinzenal e é comum os leitores encontrarem a desculpa de que excepcionalmente seu texto não os encantará naquele dia. Como ele mais não escreve do que escreve, seria o caso de a desculpa vir nos raros dias em que seu texto aparece no jornal: excepcionalmente, publicamos hoje a crônica de Fulano de Tal. Houve um tempo em que os jornais eram mais importantes que os escritores.

O que pode fazer uma mulher

Sim, uma mulher pode enlouquecer um homem. As mulheres de verdade, que Deus as abençoe, costumam fazer isso.

Sobre a simplicidade de viver

Vamos vivendo. Respiramos, andamos, dormimos. Tudo é simples, se não metemos na cabeça que poderíamos talvez fazer alguma coisa grandiosa. Shakespeare? Ele também respirava, andava e dormia. Ou não?

O verdadeiro cético

Thomas Mann dizia que, para ser autêntico, um cético deveria ser cético também em relação ao seu ceticismo.

A única palavra

Amor era tudo o que tínhamos a nos dizer. Nós nos dissemos. Não foi suficiente. Talvez tenha nos faltado convicção ao dizê-la.

De Rosa Montero, sobre Verlaine e Rimbaud

"Quando eles se conheceram, Paul Verlaine tinha 27 anos, estava casado e era um poeta bastante famoso, enquanto Jean Arthur Rimbaud tinha 16 anos e era um obscuro provinciano que escrevia versos perturbadores. Encontraram-se em Paris, em setembro de 1871; dois anos mais tarde, Verlaine tentou matar Rimbaud a tiros. Nesse meio-tempo estende-se a agonia de uma paixão perversa e degradante. Foram, como disse Rimbaud, companheiros de inferno."

(De Paixões, traduzido por Maria Alzira Brum Lemos e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Num dia qualquer de 2066,

um vento pós-bíblico matará todos os fornicadores do mundo. As 232 mulheres e os 59 homens puros serão convocados por Deus para enterrar os mortos. Se for preciso, Deus prorrogará seu tempo de vida, para que se desincumbam bem da tarefa.

Vargas Llosa

Gosto muito de Vargas Llosa, de seus romances e de seus artigos sobre arte, mas, francamente, saber o que ele pensa sobre política me interessa tanto quanto saber o que Zeca Pagodinho pensa de Mozart. Quem conseguiu perder uma eleição para Fujimori deveria agradecer para sempre por isso e jamais tocar no assunto. Os artigos de Marito sobre política são paulificantes.

As fornicações hão de...

... sacudir todas as camas, todos os quartos e todos os motéis. Hão de cair uma a uma as letras de néon, e os porteiros, telefonando-se uns aos outros, descobrirão que a luxúria terá produzido, na região central da cidade, um número capaz de encher de orgulho a masculinidade paulistana: 4,6 graus na escala Richter. Fotos de fundadores de empresas desabarão dos caixilhos, na Paulista, e amanhã de manhã se descobrirá que terão sumido os bigodes e os cavanhaques de quem os ostentava. O fenômeno se estenderá à periferia, finalmente lembrada num grande acontecimento, e Borba Gato será encontrado de joelhos em Santo Amaro, punido afinal por sua feiura. Uma beata dirá que o fenômeno, apelidado de noite de arromba por um jornal popular, será sempre uma vergonha para nós, brasileiros, justamente agora, com a visita do papa, e outra, suspirando reminiscentemente, falará da impetuosidade do marido, morto há 20 anos numa noite em que, com a colaboração dela, fez tremer o armário do quarto, numa época em que não havia ainda a mania das estatísticas. Todos os homens caminharão pálidos amanhã, e também as mulheres, ainda que pintem o rosto. Haverá uma fome redobrada nos rodízios e virão equipes de reportagem de todos os países para relatar o fenômeno. Daqui a nove meses nascerão meninos robustos e meninas gorduchas. O dia 22 de julho passará a ser comemorado com a devida devassidão, mas jamais se alcançará o mesmo brilho. Será mais um evento comercial na cidade, e daqui a vinte anos nem os participantes da epopeia sexual se lembrarão de como tudo tremia e ameaçava desabar, de como, por uma hora gloriosa, entre as dez e as onze, pareceu possível destruir a cidade com os solavancos da luxúria.

Os bons escritores e os gênios

Um bom escritor geralmente provoca em quem o lê o impulso de escrever também. Quem sabe? O escritor genial é diferente. Ele mostra que o leitor, se quiser, pode tentar, com uma chance em um milhão, chegar perto. Quando se trata de Dostoievski ou Shakespeare, essa possibilidade se reduz e passa a ser de uma em um bilhão.

Troco

Surgiu em Buenos Aires a primeira reação à notícia de que a Record está proclamando a existência de um "Borges brasileiro". Pelé passou a ser chamado de "Maradona do Brasil".

Os que enlouquecem por amor...

... enlouquecem lentamente. Há neles esse gozo, essa quase safadeza de enlouquecer. É um enlouquecimento que vai se apossando do corpo, poro a poro, gota a gota, pelo a pelo. É um desfalecimento, um afrouxamento, um desmaio adiado de todos os sentidos. O êxtase do amor é místico, não vem só do sangue, mas também da alma, e, assim como o dos mártires, tem algo de demoníaco. É como o prenúncio do castigo, que há de vir e que, em vez de ser temido, é estimulado. O castigo faz parte desse prazer que, embora possa ser descrito pela poesia, está mais próximo daquele inigualável, que sente o enfermo que, tendo chamado a enfermeira várias vezes de madrugada, resolve, depois do primeiro jato, deixar correr toda a morna e libertária urina pelas coxas.

A representação do amor

Se eu fosse artista plástico, possivelmente representasse o amor como um eunuco diante de uma cama em que, nua, estivesse deitada uma princesa. Ela não estaria como uma messalina. Não teria, nem na mão nem nos lábios, um cacho de uvas ou uma cereja. Seu olhar seria como o do eunuco, triste, e nos seus lábios estaria a palavra vem. Um de seus braços reforçaria esse apelo. Haveria seda, muita seda na cama, e uma meia-luz conivente. O que se seguiria não estaria na tela, mas a perícia do artista consistiria em insinuar que aquele não era o primeiro encontro da princesinha com o eunuco e que o encanto que tinham desfrutado e voltariam a desfrutar entre as sedas ciciantes era o da união incompleta e agridoce, exaltada como um martírio.

Kama Sutra - CCXXIX

Do quarto vizinho começaram a vir sussurros, ganidos de mulher gemendo um nome que identifiquei na terceira vez em que foi pronunciado: Homero. Soava falso ali, no hotel de terceira, ainda que de momento a momento a batalha amorosa no quarto ao lado começasse a ganhar sons épicos, com a cama lançando também interjeições ao ar. Homero, gemia a voz, acrescentando agora mais, mais, mais. Não conseguindo alhear-me, decidi participar, ou minhas mãos decidiram. Me assumi como Homero e, quando o homem, fazendo ouvir finalmente sua voz, disse Luana, ai, Luana, ai, eu, inteiriçando-me talvez tanto quanto ele, repeti Luana, ai, Luana, ai, ai.

O amor como obsessão

Só entendo o amor como uma obsessão. Nesse sentido, é óbvio que o amor não há de ter esperanças e, se as tiver, elas devem ser irrealizáveis. Um amor todo certo e programado não é, nunca foi aquilo que eu tive em mente ao pensar em amor. O amor concebido como um fato social, com sua frequência e regularidade anotadas em caderninho, me seduz tanto quanto seduziria um hobby.

Três tankas de Takuboku Ishikawa

"Animal adoentado
o coração fica manso
ao ouvir coisas de minha terra."

               ***

"Este tormento, de vez em quando,
em meu coração, como um trem
por um campo vazio."

               ***

"Um penhasco
o coração aos saltos
como acabar com esta vida."

(Do livro Tankas, tradução de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicado por Roswitha Kempf/Editores.)

Que seja um bom dia e...

... que cada um de nós esteja preparado para aquele instante no qual o amor nos doer no peito. Estejamos prontos para essa epifania e lamentemos se nesse momento, nas ladeiras da memória e nas são joões, o ruído da cidade abafar o violino, que certamente soará. Não recorramos ao lenço, nessa hora. Nossos lábios merecem beber a água há tanto tempo guardada em nossos olhos.

É uma dessas criaturas...

... perturbadas pelo amor. O amor é o seu trabalho. Acorda às sete, toma banho, apronta-se e sai. Há alguns anos não fala com ninguém. Diz só uma palavra, que repete com a obstinação de um boneco movido a bateria. De cinco em cinco segundos, quem estiver perto ouvirá: amor, amor, amor. Ele atravessa a rua, ele pega o metrô, ele desce na estação Paulista, ele entra, sobe a escadaria, e deixa no ar, com os olhos úmidos e o capricho com que um ipê joga as flores ao vento: amor, amor, amor. Enfia-se na galeria, entra na Cultura, percorre a estante de romances estrangeiros e vai aspergindo amor com sua voz gutural. Volta à noite, como alguém que ganhou honestamente seu dia. Já na esquina da sua casa, sabem que é ele que vem: amor, amor, amor.

Quando o sol...

... surge, é a hora em que o amor, sombrio como uma alma penada, volta para casa. São poucas as pessoas que ele encontra no caminho, e todas desviam dele o olhar. O amor vem macilento, lívido, como um cadáver erroneamente exumado. Andou de madrugada farejando todos os quartos, todas as camas redondas, e inibiu todos os abraços, todos os beijos e todos os encontros carnais, com sua cara amarga de pedinte faminto. Os porteiros de todos os motéis o perseguem, mas ele, como um espectro maligno, consegue estar toda a noite em qualquer lugar em que um homem e uma mulher queiram entregar-se à recíproca exploração dos corpos. Ele pede, ele implora, ele suplica, ele exige. O amor modernizou-se, viciou-se em sexo e ameaça rasgar as veias se não o deixarem ao menos resvalar a mão por uma coxa ou aspirar o mormaço das entrepernas. O amor põe-se a babar se vê um umbigo, um ninho de pelos encaracolados, um pescoço branco, um seio leitoso. O amor quer deitar-se em todos os leitos e embriagar-se com todas as luxúrias.

Ao menos uma

Ao contrario do que se supõe, o suicida não abdicou de todas as esperanças. Ele mantém pelo menos uma, guardada na manga como um ás de ouros.

Idade

O menino que eu fui certamente não apreciaria ver o velho inútil em que o transformei.

A beleza

Devemos acreditar na grandeza - ainda que a encontremos apenas nos outros. Devemos acreditar nos artistas e na sua capacidade de exprimir a beleza. A única riqueza verdadeira a que o homem deve aspirar é a beleza. Shakespeare a expressou para nós, e Van Gogh, e Ravel. É uma bênção podermos reconhecê-la, ainda que não consigamos criá-la.

Da arte de falar mal

Os escritores - de um modo geral os artistas - talvez sejam as criaturas mais mesquinhas do planeta. Criticam-se uns aos outros, sempre, e não se limitam aos vivos. Se Pirandello, Proust, Henry James soubessem o que deles diz o vencedor do XXII Concurso de Contos de Barra do Barbante, teriam se esmerado mais na execução e no acabamento de suas obras.

Resposta automática

Você se acostuma tanto ao infortúnio que, se estiver distraído e alguém perguntar como vai, é provável que você diga: "Estou ótimo."

O mordomo

Se não acreditarmos na existência de Deus, a quem dirigiremos nossas indagações, nossas súplicas e, principalmente, nossas queixas? Sem Deus, a quem culparemos por nossa incapacidade e incompetência? Deus é o nosso Mordomo perfeito e, como os aristocráticos assassinos de Agatha Christie, traz sempre uma adaga de prata ensanguentada, na qual jamais encontrarão nossas digitais.

Um trecho de Rosa Montero

"Todos levamos dentro de nós, à espreita, nossa própria possibilidade de perdição, o abismo íntimo no qual podemos despencar; e frequentemente a chave que abre a porta do fatídico poço é uma relação sentimental. A história de Amedeo Modigliani e Jeanne Hébuterne é a história de uma dupla destruição. É um relato que espanta, porque está cheio de degradação e violência. Na marginalização real não há épica. Só há miséria, destruição e desconsolo."

(Do livro Paixões, tradução de Maria Alzira Brum Lemos e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)

domingo, 21 de julho de 2013

Se o amor...

... estiver andando pela noite de São Paulo, que seja por onde você não passar. Ninguém, nem mesmo ele, tem o direito de estragar, com sua triste figura e sua indiscreta memória, o seu jantar e a sua digestão. O amor é aquele chato que fica olhando para você e contando quantas eructações e quantos borborigmos saem de seu adorável tubo digestivo.

... ou nunca mais

O suicida é aquele tipo que, havendo falhado em tudo, resolve se conceder uma última chance.

Opinião técnica

O policial olhou para o rapaz pendurado na corda: "Suicídio. Se bem que o rosto dele, pelos padrões lombrosianos..."

Fracasso

O suicida é um exibicionista que nunca chega a ouvir aplausos pelo seu desempenho nem se dirige à plateia para agradecer.

Semântica

Não sei se é apenas mais uma das cogitações de minha mente suja, mas tenho uma teoria para explicar o surgimento da expressão ficar na mão, e que é esta: deixado pela mulher, um homem, sem poder mais contar com o prazer que ela lhe proporcionava, precisou recorrer à fantasia e aos movimentos sincronizados da mão.

Kama Sutra - CCXXVIII

Quem fala em vício solitário menospreza a imaginação e o poder das páginas centrais  das revistas.

Um poema de Marina Tsvetáieva

"O sol é um só. Por toda parte caminha.
Não o darei a ninguém. Ele é coisa minha.

Nem por um raio. Nem por um olhar. Nem por um instante. A ninguém. Nunca.
Que morram as cidades numa noite constante!

Nos braços vou apertar, que não possa girar!
Faço as mãos, os lábios, o coração queimar!

Se desaparecer na noite infinita, no encalço hei de correr...
Meu sol! A ninguém o darei!"

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardoni, publicado pela Martins Fontes.)

Que seja uma boa tarde para...

... todos. Quanto a mim, eu há muito já não sei o que é isso, e já nem esperanças tenho. No dia em que me aparecer uma boa tarde, nem saberei reconhecê-la. Imagino que será diferente de todas as que tive nos últimos três anos. Talvez eu, por via das dúvidas, exija dela um certificado de garantia. Os sentimentos se tornaram tão mensuráveis, tão qualificáveis, que o Procon há de ter uma tabela para esse tipo de produto. Para o amor também já deve haver algo assim, um ISO qualquer. Tudo nosso há de ser avaliado em escalas de um a dez. Ao diabo com isso. Internem-me, mas eu lhes digo que o amor jamais se enquadrará em nenhuma classificação. O amor, sei lá, é um condor atravessando soberanamente uma cordilheira. O resto é sexo e putaria.

Um conselho

Se um enjeitado pedir um momentinho da sua atenção, caia fora. Se for preciso, chame um guarda. A expressão é desagradável, mas justa: um enjeitado é um cancro social. E um enjeitado com iniciação poética é um perigo para a paz pública. Uma enxada para cada um deles, isso é que deveria ser feito, se houvesse governo nesta terra. Mas como, se aquele senador às vezes maranhense e às vezes amapaense se diz poeta e, agora, até o vice-presidente da República não se esquiva de confessar ser também praticante?

Se um enjeitado...

... estiver no seu caminho, mude de calçada instantaneamente. Os enjeitados são hábeis no pedir, sabem como fazer uma cara triste e, se você deixar que digam uma palavra, logo estarão reivindicando afeto, compreensão e solidariedade. Alguns, mais descarados, chegam a suplicar amor. Não lhes dê nada - nem a esmola de um sorriso. Gente sórdida, esses enjeitados.

Os enjeitados...

... olham para o chão. Sabem que não merecem as estrelas. Se chegam a ver alguma, é refletida na água barrenta da rua, depois de uma chuvarada. Se todos os enjeitados do mundo se unissem, ninguém aguentaria seus lamentos. Os enjeitados seriam toleráveis, desde que vivessem à parte. Um enjeitado estraga o domingo de qualquer um, com sua cara de mártir. Dê um pedaço de pão a algum deles e você verá: ele vai perguntar se você não tem também uma fatia de queijo. Quem os enjeitados pensam que são?

Cotação do dia, atualizada

Sinto-me como aqueles meninos que já passaram da idade de ter algum atrativo para os casais que pensam em adoção Quando eu tinha olhos verdes e sabia fazer certas coisas graciosamente, não me notaram. Já nem olham para mim, nos dias de visita. Ninguém me põe a mão na cabeça e já há quem me ache um funcionário. Se eu fosse um cachorro, teria alguma chance. Latiria, até, se fosse preciso.

Eu gostaria de ser...

... outro. Não sei exatamente como seria, mas seria exatamente como não sou.

Cotação do dia

Sinto-me como o mendigo que, com a mão estendida há horas, recebe enfim algo: uma gota que poderia ser de chuva, se não houvesse nela a espuma saliventa do morador do terceiro andar.

O bruxo do Cosme Velho

Jamais me empenharia em ser o novo Machado de Assis. Me contentaria em ser o velho.

Eu, Fulano de Tal, declaro que...

As papelarias deveriam ter, entre seus formulários, um que facilitasse a vida (ou, mais propriamente, a morte) daqueles que pensam no chamado ato extremo. Alguns desistem porque ficam às vezes anos escolhendo as palavras adequadas e as expressões corretas. Se o suicida for um revisor de textos, provavelmente se encontrarão, nas gavetas de sua casa e no micro, dezenas de versões da carta-despedida, além das previsíveis gramáticas, desde as de Eduardo Carlos Pereira, Silveira Bueno e Napoleão Mendes de Almeida, até as mais recentes, como a do professor Pasquale. A carta de suicídio, do ponto de vista da pureza do idioma, traz mais dificuldades do que se possa imaginar, começando pela clássica pergunta: nós nos suicidamos ou nós simplesmente suicidamos?

Autoajuda

O aspirante a suicida deve encarar o ato pelo qual anseia como se fosse algo simples e natural, como respirar - ou deixar de respirar.

O noivo e o suicida

Certos suicidas podem se comparar ao noivo que, vendo-se finalmente na lua de mel diante do voluptuoso objeto de seu desejo, não acredita na própria sorte e, em vez da firmeza de que precisaria, encontra apenas desculpas frouxas.

Das traições da tristeza

A história é comum, vive acontecendo. O homem se afasta de tudo, renuncia aos pequenos e aos grandes prazeres e às luzes do mundo para poder cuidar exclusivamente de sua tristeza. Ele a nutre, ele cuida dela com fanatismo e orgulho de mãe. Ele a cura, quando ameaçam atacá-la acessos de alegria. Ele a põe no peito, a embala para que durma, diz-lhe as melhores palavras - e no entanto sempre acaba chegando um dia em que, esquecendo-se de toda essa devoção, ela espera que ele cochile e, no sonho, depois de tomar todas, desata a rir e a esfregar-se em todos os homens da festa, sob o alcoviteiro som de melosos boleros.

E Angola?

Tive no jornal um amigo, revisor também, que gostava de brincadeiras vocabulares, de paradoxos verbais. Quando eu me despedia na hora inevitável em que o bar fechava, ele (seu nome era de uma aristocracia irreprochável, Octávio Márcio de Camargo Guimarães) sempre dizia: "Que pressa é essa? É tarde ainda, fica mais embora." Certa madrugada, depois de mais uma vez termos sido despejados do velho Mutamba, eu, querendo esticar a madrugada, perguntei: "E agora?" "E Angola?", respondeu ele, com outra pergunta. "Angola vamos procurar outro boteco."

As artimanhas do amor

As sugestões que o amor dá
Ou são instigações fúteis
Ou são conselhos inúteis,
Nenhum valor neles há.

Teriam valor somente
Se provas nós não tivéssemos
E há muito já não soubéssemos
Que ele sempre trai e mente.

Quando pede que confiemos
De novo nele e nos demos,
Devemos nos convencer?

Quem uma vez nos traiu,
Quem uma vez nos mentiu,
Que fé pode merecer?

De amor e de sexo

Felizes são os jovens, que desconhecem o amor. Basta-lhes o sexo, que preenche suas necessidades de exercício físico e de entretenimento. Falta ao sexo, é verdade, o que hoje mais atrai a juventude: a adrenalina. De resto, ele é perfeito.

Abertura de "Crônica de uma morte anunciada", de García Márquez

"No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30 da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros."

(Tradução de Remy Gorga, filho, publicado pela Editora Record.)

sábado, 20 de julho de 2013

Li na "Folha" hoje...

... que uma editora brasileira, apostando no produto nacional, tem tanta fé em um escritor que já o apresenta, na campanha publicitária, como o Borges brasileiro. Tomara que seja, embora o próprio escritor, se tiver algum juízo, deva estar preocupado com o tamanho da tarefa.

A alegria dos sábados

Luciano Huck prova toda semana que é sempre possível, com boa vontade, dar às pessoas carinho e ajuda. Nesse esforço de benemerência, ele às vezes põe o carro à frente dos bois e oferece um fogão de seis bocas a quem não tem como alimentar sequer uma.

Kama Sutra - CCXXVII

Nas suas incursões em busca do amor mercenário, ele sempre, quando a mulher se despe da calcinha e deixa à mostra os pelos suavemente encaracolados, sorri ao imaginar o que diria o cardiologista, que em cada consulta renova sua proibição ao consumo de sal.

Desonra

A maior vergonha para um suicida convicto é morrer de velhice.

Preservacionismo

Um suicida defensor da preservação ambiental é aquele, por exemplo, que se deixa devorar por um jacaré.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Gostaria que você entrasse aqui, agora, neste momento, e a gente tomasse um chá e conversasse. Aqui não há nada, a não ser a minha tosse. Ela é como um cão selvagem, que um dia me seguiu até em casa e se apegou a mim de um modo muito desagradável. Na semana passada esteve bem mais selvagem do que nunca. Está chovendo, mas não é ainda a chuva de inverno."

(De Diário & cartas, traduzido por Julieta Cupertino e publicado pela Editora Revan.)

Hora de ir à feira,

às alfaces e aos pastéis. Hora de ver gente, gente de verdade, gente viva, ruidosa. Nunca aprenderei a ser como eles, esses homens e mulheres que jamais esquecerão a arte do sorriso, mesmo quando já estiverem sem dentes. Tentei assimilar a lição que há tanto tempo me passam, mas sou incompetente até nisso, nesse simples movimento que se faz com os lábios para que eles se abram ou ao menos se entreabram. Sou um retardado, nasci sem DNA para a alegria. Talvez minha única virtude seja essa, a coerência com que me encastelo em minha tristeza. Sou sincero, embora tenha havido um tempo em que pensei em me abrir para a felicidade, mesmo que para isso precisasse mentir. Foi um tempo muito curto, tão curto que só posso atribuí-lo a um descuido de minha mente. Logo ela voltou ao normal. Bom dia.

Aprendi que ...

... minha única chance de ser original são os advérbios. O resto não muda. Digo hoje, como venho dizendo há três anos, que estou intoleravelmente, insuportavelmente, desgraçadamente, infinitamente, honestamente, sinceramente e merecidamente triste.

Parece paradoxal,

mas no fim da vida vai descobrindo que tudo está ao alcance do seu livre-arbítrio. Talvez porque a opção seja apenas uma, embora sejam inúmeros os instrumentos para consumá-la.

Ele reza para que saiba...

apertar o laço, que sejam dóceis seus pulsos, que as mãos não se neguem a abrir o vidro de comprimidos, que seu indicador não se recuse a provocar o estrondo derradeiro, que a acrofobia não o faça fugir do viaduto no instante em que ele finalmente se decidir.

Não pode, não...

... deve abrir a janela e olhar para o azul. Sabe que a palavra azul é uma fraude tão grande quanto as palavras amor e esperança. A cor que lhe convém é o cinza. O cinza sempre tem algo a oferecer à sua melancolia. Só esta lhe importa, já há algum tempo. Deve arranjar-lhe alimento com regularidade, o que não é difícil. Previdente, acumulou na memória decepções de todo tipo, às quais sempre pode recorrer. Não há de olhar para o azul, não há de falar com ninguém. Seria injusto, depois de tanta dedicação à tristeza, ser aquinhoado no fim da vida com a alegria. Um riso, um simples sorriso seriam, para ele, marcas de traição ao seu ideal. Há de ser fiel até o fim ao seu desprojeto de vida.

Cotação do dia

Sente-se como o último pão doce no balcão. Os que, como ele, foram feitos anteontem, já se foram, levados por mãos gulosas. Os de ontem, também. Ele, por um descuido de quem está encarregado de repor os pães doces, continua ali, sozinho, como se o tivessem escolhido para indicar onde os outros devem ser diariamente postos. Já não sonha com dedos afoitos nem com lábios juvenis. Se uma mosca o tocasse, seria capaz de produzir um fenômeno: o primeiro pão doce, desde os primórdios da humanidade e da indústria de panificação, a chorar de alívio e de alegria.

"Boa noite, benzinho"

Recorda com saudade a época em que frequentava as chamadas mulheres da vida. Era pegar, pagar, agradecer e receber de volta aquele "obrigada, bem" e, às vezes, o quase comovente "desculpa alguma coisa, querido". O beijinho no rosto, já no térreo, era também uma coisa bonita, um toque de inimaginável pureza. Nenhuma daquelas mulheres lhe exigiu a alma.

Se

Se um dia decidir fazer aquilo, e resolver que será com um revólver, encherá de algodão os ouvidos, para se livrar nem tanto do estrondo, mas dos comentários que farão sobre seu corpo sentado no sofá.

Kama Sutra - CCXXVI

Finjo que estou morto. O amor finge que acredita e me acaricia o rosto e me beija os lábios suavemente, como eu sempre quis que ele os beijasse. Finjo para mim que o amor também está morto e me completo, e nos completamos de uma ternura que só pode haver entre aqueles que aprenderam a acalmar o sangue.

Autoanálise

Quem, afinal, foi que disse
Que és o que tu pensas ser,
Quem pôde essa ideia ter,
Essa completa tolice?

Quem haverá de em ti ver
Novidade onde há mesmice,
Calor onde há casmurrice,
Quem nisso haverá de crer?

És mísero, abominável,
Grosseiro, tosco, execrável,
Nojento, reles e abjeto.

Quem há de os olhos fechar
E em ti um dia enxergar
Um homem digno de afeto?

A droga

Ela é abordada por um marinheiro neerlandês, cantada por um cantor indiano, convidada a ir ao camarote do capitão apátrida de um navio cipriota. Ele trabalha essas cenas com sua imaginação e sua tristeza de derrotado, exacerba-as, até ouvir gemidos e gritos de júbilo. Esse ciúme é a droga que o mantém vivo e escrevendo.

Kama Sutra - CCXXV

Quem lhe dera ser abraçado por uma mulher gorda, bem gorda, talvez até descomunalmente gorda. Gostaria de apalpar sua carne farta até o ponto em que ela, sacudida pelo início do orgasmo, o apertasse tanto que ele, também espicaçado pela luxúria, quase não conseguisse libertar da garganta o longo suspiro do prazer.

Sobre a hora da morte

É coisa mais que sabida,
Porém não custa lembrar
Que, custe ou não a chegar,
A morte é um fato da vida.

Conforme venha a calhar,
É bem ou mal recebida,
E suplicada ou temida
Segundo a hora e o lugar.

Não querem que ela se apresse
Aqueles que o amor aquece
Com seu festivo fulgor.

Os outros, os desamados,
Aguardam, esperançados,
Que venha quanto antes for.

De Cabrera Infante, sobre o amor

"O amor é uma das formas que a loucura adota - ou uma gripe. Um dia se descobrirá que não é mais que um vírus oportunista. Alguém, não tenho dúvida, encontrará uma vacina."

(De A ninfa inconstante, tradução de Eduardo Brandão, publicado pela Companhia das Letras.)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Arrepende-se...

... de todos os seus excessos - os de ira, os de presunção, os de esperança, os de desespero. Não quer que os outros se lembrem dele com ódio, nem com espírito de desforra, no dia em que se for. As culpas que o vêm atormentando devem ser algum sinal, talvez o último aviso para que ele tente limpar sua alma. Tem medo de que não consigam carregá-lo no dia derradeiro. Tudo nele pesa e incomoda. Lembra-se de passagens ridículas em que se mostrou insensato, incoerente, vil. Arrepende-se de todas as suas demasias, menos de uma: devia ter aproveitado todas as energias que gastou em tantas insignificâncias e concentrá-las todas no amor.

A noite o encontra...

... onde o deixou o dia: no sofá, com os livros e o bloquinho (este para anotar as obras-primas em cuja existência ele na verdade nem acredita mais). Seu sofá é seu barco, e como convém à sua presumível falta de habilidade na arte de navegar, o mar é o piso da sala, manso e sonolento. Nada muda. Acender as luzes ele ainda consegue. Pronto. Agora é voltar para os livros e esperar que lhe ocorra um texto que, assim como tantas outras coisas, ele há muito desconfia não merecer. Depois, quando o cansaço já se mostrar confiável, ele fará do sofá cama e se estenderá sobre ele. Tudo seria perfeito, se pudesse ver as estrelas. Adivinha-as, imagina-as, como tem adivinhado e imaginado quase tudo na vida, depois que o dominou a obsessão pela literatura.

Kama Sutra - CCXXIV

Ali, onde as nádegas dela se alteiam numa correta presunção de beleza, ele julga que seria capaz de deixar por toda a eternidade a mão com a qual escreve. Como a eternidade parece um artifício meramente literário, ele poderia contentar-se com menos, um minuto, para que essa mão devotada a versos e rimas soubesse ao menos uma vez a diferença entre a fantasia e a vida.

Kama Sutra - CCXXIII

Não há mais mulheres enluvadas, a não ser, ainda, nos filmes antigos. Quando ele vê um, estremece quando o protagonista roça os lábios naquele tecido fino embaixo do qual adivinha outro, ainda mais fino e palpitante. É sempre belo, aquilo, ainda que nas cenas seguintes o homem e a mulher se atirem ao sexo como cão e cadela. Por mais animalescos que venham a se mostrar na cama, aquele momento em que a boca pousou na luva os tornou previamente redimidos.

Amor e ternura

A palavra amor não é a mais querida por mim. A palavra que expressa o meu melhor sentimento é ternura. Ternura é seda, é brisa, é arrepio da alma - e no entanto é muito mais que isso. Ternura é o que sinto quando me lembro de Priscylla Mariuszka Moskevitch.

Dois parágrafos de Guillermo Cabrera Infante

"Há nos ciúmes um sexo, um sexto sentido que nos faz penetrar a trama mais espessa. As trevas da noite se faziam claras como se minhas suspeitas fossem minha lanterna trágica. Não há Iago traidor sem Otelo traído.
   Ela era incapaz de dizer uma mentira mas era óbvio que não me dizia a verdade, que ela estava me enganando, que era falsa e traiçoeira. Como explicar?"

(De A ninfa inconstante, traduzido por Eduardo Brandão e publicado pela Companhia das Letras.)

Boa tarde

Hora de acalmar o coração, de impor-lhe certa disciplina, antes que se torne ainda mais maluco e disparatado. Ir para o sofá, pegar um livro, de preferência bem triste. Voltar aos poucos aos ensinamentos de sobrevivência. Esquecer o amor. O coração, se o deixarmos tomar as decisões, se lançará novamente a abordagens amorosas, como um pirata invadindo conveses. Já chegou o tempo de abençoar a tosse que se torna mais branda e o medicamento que vai dando certo. A vida é isto mesmo: a resignação, o chinelo à disposição, um cochilo à tarde. Aquele que sonha besteiras acordado é outro, um homem em cuja companhia não se deve andar nunca.

Em algum lugar...

... entre a Paulista e a Augusta, deve haver uma flor, nascida numa fresta da calçada. Imagino que tenha três anos, e é tão delicada e modesta que ninguém, naquele burburinho, a viu. Está ali, porém, eu tenho certeza, e, como as espadas que nos contos antigos só podia ser arrancada pelas mãos indicadas pelo Destino, ela somente se dará a ver quando dois pares de olhos, os certos, a olharem ao mesmo tempo, numa dourada manhã.

Ultrapassado

Contra todas as evidências, ele ainda acha o amor a mais importante das atividades às quais um homem pode se dedicar. Quando vê uma mulher especialmente bela, tem o ímpeto de ajoelhar-se como um cavaleiro medieval, beijar-lhe a mão e dizer: "Senhora de meu coração e de minha alma, dizei-me, eu vos rogo, se me julgais digno de viver e morrer por vós."

O destino

O destino de todos os amores é o de serem aquele nome que, encontrado daqui a vinte anos numa agenda, faça quem o ler ficar em dúvida. Quem será aquele Raul? O sujeito que vivia contando sílabas poéticas nos dedos, o cara que cutucava a orelha com o mindinho ou o que dizia ser o bigode o último símbolo de masculinidade?

Salvo

Sempre que se põe a falar sobre o amor, tudo se agita nele. É aquele momento em que a camisa de força parece ser a única solução. Ele é atordoado por uma torrente de palavras que ameaçam afogá-lo de ternura. Mas, vinte minutos adiante, seu rosto sobe à tona e, voltando a respirar, ele chora porque perdeu mais uma preciosa oportunidade de morrer com a palavra amor espetada na garganta, como um anzol.

O que eu mais lastimo é...

não ter podido, quando o amor me rasgou o peito, oferecer um presente que lhe agradasse: uma conchinha recolhida no Gonzaga há cinquenta anos, uma roda do carrinho de rolimã destroçado há tanto tempo numa manobra infeliz, um gato branco. O amor rasgou meu peito em vão.

Estou quase...

acertando com os leitores uma espécie de jornada da insanidade. Seria mais ou menos assim: eu ficaria, digamos, doze horas on line, teclando tudo que fosse me ocorrendo instante a instante, com aquela sinceridade que só os loucos têm. Quando eu tiver algum assunto que não sejam o amor e seus efeitos sobre mim, poderei estender o período para vinte e quatro horas. É coisa de se pensar.

É preciso...

... levar adiante a vida, fazê-la passear pelas ruas, como um cachorrinho velho ao qual devemos alguma coisa. Enfurnar-nos em casa é privar as pessoas da justa alegria de nos apontar e dizer que somos nós, sim, o homem que faz versinhos apaixonados. "Doente mental", "descarado", "imbecil" são palavras que precisamos dar aos outros a oportunidade de usar em seu dia a dia. Alguém talvez, entre tantos, diga "coitado", mas talvez se refira ao cachorro, e não a nós.

Sempre que...

... conta ao amor uma história triste, no final é recompensado com generosas gargalhadas. O amor vê nele um humorista, desde o início, e já avisou que vai contratá-lo para divertir os convidados da próxima festa que der. Já na primeira frase seu sucesso estará garantido. Ele dirá: "Vocês sabem, o amor..." No meio dos risos dos adultos, uma garota de dez anos irá sorrateiramente abrir o dicionário na letra A.

A recaída

Quando o amor volta a dizer-lhe palavras de autoajuda (sim, é possível, você pode), ele remoça vinte anos diante do micro espantado. Abre a janela, sorri para fora e saúda os passarinhos (oi, oi, oi). A realidade custa a reinstalar-se, e às vezes ele só a restabelece depois de ir até o espelho do corredor e ver seu rosto devastado por esse mesmo amor que, por tê-lo sempre à mão, continua a procurá-lo nos dias em que, preguiçoso, não quer se cansar na busca de ombros jovens para exercitar seu chicote.

Às vezes,

recapitulando o que faz de melhor - tropeçar, escorregar, cair -, imagina que nasceu na época errada. Teria sido um ótimo bobo da corte. Quando a ideia começa a entusiasmá-lo, surgem também as objeções. Não teria vida longa na tarefa de entreter o rei e seus convidados. Logo seu lado triste o tomaria e ele, diante de duzentos convidados, abriria um papel todo rabiscado e leria um soneto de amor, dedicado à rainha, às suas alvas coxas e ao seu seio ebúrneo. Sempre se apaixona pela rainha.

Faz tudo sempre...

... errado, sempre fez tudo errado. De que lhe adiantaram as geografias, as histórias e as filosofias que aprendeu no colégio gastando o suado dinheiro dos pais? Ainda hoje seus sapatos se desamarram logo na primeira esquina, e sua camiseta exibe ao sol quase sempre a face errada. O pai e a mãe morreram, e ele já não pode lhes perguntar qual deles o ensinou a respirar. Ter aprendido isso deve ter dado muito trabalho, a ele e a eles. Às vezes culpa os dois por não lhe terem passado outras noções importantes, que o livrariam das zombarias das quais é alvo sempre que vai anotar um verso no bloco e tropeça diante dos satisfeitos espectadores. Quando pensa em atar-se a uma corda pendurada na viga, logo se desvia da cogitação. Sabe que jamais conseguiria fazer algo assim dar certo.

Cotação do dia

Quando acorda, costuma fazer comparações disparatadas. Hoje, puxando a tristeza mais para o peito, como se fosse um casaco, achou-se frágil como um cordeiro. Imaginou que no mesmo instante estivesse acordando, não longe dali, o açougueiro. Pensou no facão, nas suas vísceras expostas ao sol e às moscas da manhã, e seus olhos se orvalharam. Em seguida, porém, entreabriu um sorriso de autoironia. Assemelhar-se a um cordeiro era mais uma de suas ignomínias. Pareceu-lhe então justa a tarefa do açougueiro e justificável o facão.

Soneto da proclamação

Enquanto a boca tiver
Nos lábios algum calor,
Aquilo que ela disser
Há de proclamar o amor.

Enquanto forças houver,
Que eu seja merecedor,
Se o amor assim o quiser,
De ser seu fiel servidor.

Mas, se ele não me aceitar,
Que eu possa me resignar
E nunca o amor maldizer,

Porque ele sempre me deu,
Mesmo quando me doeu,
Motivos para viver.

Vapt-vupt


Raramente o sexo é mais do que um ato fálico.

Soneto do amor capitão

O amor é aquele tipinho
Que tendo há pouco chegado
Se julga capacitado
A nos traçar o caminho.

Com seu caráter entrão,
De quem censuras não teme,
Nos tira das mãos o leme
E diz ser o capitão.

Aponta para os escolhos,
Investe contra os abrolhos
E ri como um homicida.

No barco que o amor comanda,
Nenhum passageiro manda
E a passagem é só de ida.

Soneto do amor insano

Só pode ser um sandeu,
Um abobado, um demente,
Um homem se, assim como eu,
Confiou no amor cegamente.

Quem ao amor se rendeu
Tão tola e completamente
Ter perdido mereceu
A honra, o respeito, a alma e a mente

Nós, amantes desse vício,
Se não estamos no hospício,
É por uma falha só

De quem nos examinou
E nada diagnosticou,
Talvez por de nós ter dó.

Objeção

A morte só tem um inconveniente: antes é preciso viver.

Um trecho de J.M. Coetzee

"Sua esperança é que, das multidões sem cara em meio às quais se locomove, se destaque uma mulher que corresponda ao seu olhar, que deslize sem palavras para o seu lado, que volte com ele (ainda sem palavras - qual poderia ser a primeira palavra dela? - é inimaginável) para sua quitinete, faça amor com ele, desapareça no escuro, reapareça na noite seguinte (ele estará sentado com seus livros, haverá uma batida na porta), mais uma vez o abrace, mais uma vez, ao soar a meia-noite, desapareça, e assim por diante, dessa maneira transformando sua vida e liberando uma torrente de versos reprimidos nos moldes dos Sonetos de Orfeu, de Rilke."

(Do romance Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O Amor não telefonará,

nem mandará mensagem. O Amor é sério e, quando diz que vai castigar alguém, podem estar certos de que fará isso. Seu nome, assim como o de Deus, não há de ser pronunciado em vão, e sua ira, como a divina, sempre atinge quem não obedece a essa norma. Assim como Deus, o Amor é vingativo e rancoroso - ou apenas justo, na opinião Dele. Dobremos a cerviz e abençoemos o látego. Assim como Deus, o Amor tem sempre razão. Boa noite e que Ele nos dê um bálsamo que alivie as chagas de nossos ombros e nossas costas. Amém.

À noite,

aqueles que foram rejeitados pelo amor têm mais coragem de sair. Esgueiram-se mesmo assim, é verdade, mas isso nunca terá jeito. Já entrou no sangue, como se diz. Como os gatos pretos, esses aos quais o amor se negou passam até despercebidos às vezes e podem andar quarteirões sem ouvir uma chacota. O que os trai, como trai também os gatos pretos, é o repentino brilho dos olhos quando sobre eles incide a luminosidade de um farol. À noite, aqueles que o amor enjeitou são como gatos pretos. Quando dois deles se encontram, fingem que são cegos - uma entre tantas artimanhas que o amor lhes ensinou.

Soneto do tigre velho e do Amor

Sou um tigre velho e tolo
Que os caçadores prenderam
E não sabendo onde pô-lo
A um circo pobre o venderam.

Me deram um domador
Muito capaz e exigente
Que tinha o nome de Amor
E me adestrou arduamente.

Porém eu, velho e cansado,
Falhei nesse aprendizado
Que era o de o fogo saltar.

Quando ouço o som do chicote,
Eu me revelo um fracote,
Para o povo gargalhar.

Generoso é o amor

O amor é tão perdulário
Que em vinte dias somente
Pode gastar tolamente
Totalmente o seu salário.

O amor é tão generoso,
O amor é tão mão-aberta
Que com ele tudo se acerta
E dele nada é oneroso.

Além de tudo nos dar
Ele nos deixa guardar
Tudo que acharmos preciso.

Podemos tudo manter
Do que nos agrada ter.
Tudo, com exceção do juízo.

Obsessões

Tem três obsessões: o jogo, a bebida e o sexo. Com a ajuda de um psicanalista, tenta há cinco anos livrar-se delas. Durante o tratamento, desenvolveu uma nova fixação: a de curar-se das outras três.

Um trecho de Gabriel Perissé

"Aristóteles afirmava que o modo de convencer alguém é conquistar a sua simpatia. Dizer verdades (mesmo que parciais) requer a habilidade de torná-las amáveis. Persuadir (mesmo de uma verdade objetiva verificadíssima) exige também a capacidade de criar um clima agradável, propício à concordância. Como diz um ditado oriental, 'quem não sabe sorrir não deve abrir uma loja'. Quem, por exemplo, estiver convencido de que uma cópia xerox de uma cópia xerox fica melhor do que uma cópia xerox de um original (se é que isso é verdade), deve estar preparado para 'vender' a sua verdade com todos os argumentos, os racionais, sim, mas também com os argumentos que captem a boa vontade do leitor."

(De Ler, pensar e escrever, publicado pela Editora Arte & Ciência.)

Compensação

É coisa bem lisonjeira,
Depois de sermos tratados
Sempre como rejeitados,
Que a morte, ao menos, nos queira.

Borges dizia que...

... a velhice pode ser o tempo de nossa felicidade, porque o animal está quase morto, já, e restam só o homem e a sua alma. Eu, homem, embora já perto de não o ser mais, sinto minha alma cada dia mais sensível e amorosa. Se a frase não fosse pretensiosa, eu diria que sou cada dia mais alma e que o amor é o alimento dela, um amor que, por minha experiência, sei que não posso traduzir, mas que é maior do que todos os Atlânticos e Pacíficos aprendidos por minha geografia. Cada um de nós tem um oceano desses adormecido, esperando apenas o dia de se mostrar ao sol com as ondas que aos meninos, na praia, parecerão cavalos azuis.

Sempre poderei alegar,

se me virem declamando estrofes desvairadas para a lua, se me pegarem chorando depois de dizer um nome, se me encontrarem suspirando como um menino de quinze apaixonado por uma garota cujo nome não sabe nem saberá, porque sua timidez o impede de sequer olhar para ela, sempre poderei alegar que a demência é uma espécie de marca registrada da família. Ela é já antiga em mim. Consolida-se dia a dia e me agrada que ela se manifeste assim, sob essa forma de delírio amoroso. Não sou Raskolnikov e não tenho machadinha. Se alguma coisa eu vier a matar, serão meus sonhos, sempre estupidamente e maravilhosamente maiores do que minha capacidade de mantê-los e alimentá-los.

Uma sopinha

O tempo continua com aquela mania de andar, e eu o acompanho cada dia com mais dificuldade. Tenho sede, minha amiga, e minha boca já não acredita na água límpida que a tua lhe prometeu. Próximo está o dia em que só poderás me dar um gole de sopinha bem rala, numa colher bem rasa.

Do amor e seus cativeiros

O amor e suas correntes,
O amor e seus cativeiros
Em mim são tão recorrentes
Como abelhas em vespeiros.

Há muito já não consigo
Em outro tema pensar
Senão nele e no castigo
Que ele me obriga a enfrentar.

Que castigo doce é esse!
Tomara eu o merecesse
Até meu último dia

E que ele nunca deixasse
Que a tristeza me faltasse
Nem esta melancolia.

Cabriolas de Cabrera

Na literatura latino-americana, quem melhor brincou com as palavras foi Guillermo Cabrera Infante. Ele podia fazer isso. Amava as palavras e seu amor era correspondido. Elas não se rebelavam. Gostavam de brincar com ele. Cabrera Infante era um malabarista vocabular. Seus trocadilhos eram invencíveis - às vezes ele os fazia usando outro idioma, mesclando-o com o espanhol. Há um ditado segundo o qual um piadista perde o amigo mas não perde a piada. Cabrera Infante nunca perdia a oportunidade de colocar um trocadilho, ou uma série deles, numa frase. Um exemplo é o título de um de seus livros, Havana para um Infante defunto (um tributo ao cinema e à arte dos que, na escuridão da sala, fazem avançar estrategicamente as mãos sobre coxas e decotes). Um manual de abordagem erótica em locais públicos. Hoje, homens e mulheres, enquanto olham para a tela, preferem manusear pipocas. Ora, pipocas!

Paleontologia

O cachorro cava e faz surgir no quintal, à luz do sol, uma coxa de frango remanescente do almoço de Páscoa.

Soneto da lembrança futura

Quando eu cansado estiver
De alimentar a esperança
E para mim não houver
Nada mais do que a lembrança,

Lembrarei emocionado
Do que pudemos viver
Naquele tempo dourado
Que viu o amor florescer.

E deste tempo, também,
Me lembrarei muito bem.
O amor morreu, é verdade,

Mas dele tudo guardei
E guardado manterei,
Com devoção e saudade.

Um trecho de Guillermo Cabrera Infante

"John Ruskin sabia tudo de ruínas e estátuas quando se casou com uma estátua viva chamada Miss Gray, que era tudo menos gris. Eufemia de nome, todos a conheciam como Effie, e de alta e visível que era, podiam tê-la chamado de torre Effie. Na noite de núpcias, e à luz de várias velas, Effie tirou todas as anáguas requeridas pela moral vitoriana e expôs seu corpo nuzinho ante seu marido. Olhem só isto. Ruskin levou o maior susto da sua vida: Effie, no púbis, tinha velo púbico em privado! Até então Ruskin nunca tinha visto uma mulher despida. Como convinha a um cavalheiro consumado e a um esteta entre estátuas, viu, claro, que nas estátuas as mulheres tinham monte de Vênus e púbis e pomba. Tinham todo o equipamento sexual feminino: tudo menos pelos. Os de Effie eram louros como ela, como a penugem do milho, mas não eram menos pelos que os cabelos da bela noiva. Ruskin ficou paralisado um momento, depois saiu do quarto nupcial - e não voltou a entrar nele."

(De A ninfa inconstante, tradução de Eduardo Brandão, publicado pela Companhia das Letras.)

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Houve uma mulher que...

... não acreditou quando eu lhe disse, com o amor no apogeu, que eu continuaria a cantá-lo se um dia ele morresse. O amor já há tempos dorme na terra, preparando a seiva das rosas, mas eu continuo a exaltá-lo. Talvez seja tolice isso, talvez seja uma prova de integridade.

Soneto do desejável jugo do amor

Se queres ser subjugado
E sofrer a vida inteira,
Deixo contigo um recado:
O amor é aposta certeira.

Numa só vez, a primeira,
Ele já impõe seu reinado,
Já nos submete à coleira
E ao seu chicote dourado.

Depois que assim nos conquista,
Não há quem de nós desista
De a ele se submeter.

Se a cela aberta ficar,
Um dia, se eu escapar,
Será só quando eu morrer.

Curta história do amor

Falar do amor ternamente,
O seu encanto cantar
E sua história contar
Como ela ocorreu realmente.

Dizer como de repente,
Logo depois de chegar,
Ele soube se apossar
De mim tão completamente

E como eu, tendo me dado,
Me dei com o maior agrado,
E a servidão abençoei.

E como, tal qual surgiu,
Ele depressa sumiu,
Por que razão eu não sei.

O coelho

Eu sou um velho trôpego e já meio cego que cismou de perseguir um coelho jovem. Ele é branco e chama-se Amor. Me provoca, me instiga a correr atrás dele. Sempre que chego perto, ele aspira o ar profundamente, franze o focinho e volta a correr. O Amor é um coelho que não tolera o cheiro azedo de um velho.

Kama Sutra - CCXXII

Ver e rimar
As tetas túmidas
Com as coxas úmidas,
Beber, gozar.

Kama Sutra - CCXXI

Se a cama geme e balança,
Se a carne ferve e palpita,
Se o sexo, quando se excita,
Do seu labor não se cansa,

Se a mulher de prazer grita,
Festiva como uma criança,
E dentro dela o homem lança
A insana paixão que o agita,

Quem há de o amor invocar,
Quem dele irá precisar,
Se tudo corre tão bem?

Se quer participação,
Que o amor enxugue o colchão
E limpe o lençol também.

Talvez amor não fosse

Os anos por nós vividos,
Pela memória guardados,
Já não parecem floridos
E nem tão ensolarados.

Agora, há tanto tempo idos,
Mostram, assim recobrados,
Que ao serem enaltecidos
Foram superestimados.

O que a ilusão deles fez
A nossa lembrança soez
Lentamente dilacera.

E eu já começo a supor
Que o que chamamos de amor
Amor de fato não era.

Um trecho de Amós Oz

"Leve é sua mão sobre o feno do meu peito. Sobre sua mão
pousa a minha, enrugada. Ela está só, eu estou só.
Na varanda. De pé. O mar leva, o mar traz.
Silhueta esbelta e pequena sombra. Sombra que
se desculpa. Se afasta. Foge. O mar traz, o mar leva."

(De O mesmo mar, traduzido por Milton Lando, publicado pela Companhia das Letras.)

O amor é um burro velho...

... que jamais aprenderá coisa alguma, mesmo que tome pancada. O amor insiste ainda em violinos, quando o tempo é o da música plena de sacanagens e terceiros sentidos, feita para falar não à alma, porém à luxúria do corpo. O amor apresenta-se como Beethoven e ousa enfrentar Michel Teló. O amor é um boboca enfarpelado vendendo ingressos para um festival de valsa. O amor é o anacronismo dos anacronismos. O amor é um quixote nascido para provocar o riso de todos os moinhos. O amor distribui impressos nos puteiros, para salvar quem não quer ser salvo. Quando ele se afasta, o folheto por ele deixado serve para embrulhar os preservativos que o homem, com a ajuda da rameira, encheu com seu prazer cheio de solavancos, como os de um epiléptico.

Acreditei no amor

Acreditei no amor, e a vida, que não dera respostas a Kant, a Hegel e a tantos outros, me sussurrou que ela era o único sentido e significado. E, como acreditara no amor, acreditei também na vida, e ela me pareceu tão clara e desprovida de enigmas quanto um exercício de palavras cruzadas para aprendizes. O caminho era ensolarado como aquele que levava outrora ao país de Oz, e meus pés precisaram imbuir-se de humildade para não se acharem asas. As árvores estendiam os braços para felicitar-me e a chuva saciava minha sede com gotas extraídas do arco-íris. Falhei em algum ponto do caminho, talvez por presunção. Tropecei, caí de minha empáfia e sobre a trilha de Oz fechou-se uma treva densa que, achando-se bela, obteve permissão para tornar-se permanente.

Houve um tempo...

... em que o amor cheirava a lírios e rosas. Abria-se como um girassol e girassolava para encantar o dia quando ele, ainda menino, acabara de surgir no horizonte. Houve um tempo em que o amor, como água da fonte, podia ser colhido nas mãos em concha e bebido. Eram outras nossas narinas nesse tempo de lírios e de rosas, de água corrente e cantante. Não culpemos o amor por nossa incapacidade. Haverá ainda quem o mereça. Nossa oportunidade já se foi. Que outros, puros como éramos naquele tempo, venham ainda a aspirar o aroma e sentir na garganta e nos ouvidos o gosto e a canção da cristalina fonte.

O amor é...

... um bêbedo daqueles mais chatos que, pressentido pelo cheiro a um quilômetro, quando chega à festa ela já acabou. O amor é uma notícia ruim, um ideal indesejado, um empata-foda, um cretino que censura os prazeres carnais e os rotula de pecados, se não obtiverem previamente sua chancela. O amor é um leproso que para iludir se apresenta sob a designação de hanseniano, mas vem cercado ainda pelas mesmas moscas e espalha por um honesto quarto de motel um aroma morno de pestilência.

Cartada

Morrer é um lance arriscado.
Quem há de nos convencer
De que é impossível haver
Vida também do outro lado?

O amor é um brinquedo

Importa-me pouco, já,
Talvez nem importe nada,
Saber onde parará
Esta nossa patacoada.

Quem a sério levará
Uma garota pancada
Que nunca sabe se está
Com tédio ou apaixonada?

Quem há de confiar em mim,
Tão tolo, inseguro assim,
E quem confiará em ti?

O amor tem sido um brinquedo,
Um passatempo, um folguedo,
De uma guria e um guri.

Cotação do dia

Minha árvore, aquela em que vivo, fez um pacto com a gravidade e outro com o vento. A primeira não me puxa para o solo, e o segundo, quando passa por mim, segura o sopro. Sou a única folha amarela entre centenas de folhas verdes que de mim zombam e escarnecem. Os insetos e as pragas entraram também no conluio. Estou destinado a exibir minha vergonhosa cor até o fim dos séculos.

Fantoche

Eu vivo como um fantoche,
Ridículo e desgracioso,
E em vez do aplauso glorioso
Recebo o torpe deboche.

Quando me ponho a pensar
E uma mudança me tenta,
O amor, que me movimenta,
Me impede de começar.

Meus passos ele é que dita,
E minha dor e desdita
Ele concebe e planeja.

Que eu tropece até cair,
Que eu me quebre e faça rir,
Assim ele quer que eu seja.

Como

A filosofia, ingenuamente, continua a perguntar por quêpara quê. A arte, especialmente a literatura, ocupa-se do como e safa-se, assim, de monotonia. Para a literatura, o homem deve gozar ou sofrer, sem jamais lhe ser dito por quê ou para quê. Se goza ou sofre por uma mulher ou por desígnio dos deuses, ele jamais saberá.

Um trecho de Cabrera Infante

"Soube então que o amor não é mais que uma coincidência fatal: estar num lugar adequado num tempo torpe, inadequado e totalmente inóspito. O amor é um efeito sem causa."

(De A ninfa inconstante, tradução de Eduardo Brandão, publicado pela Companhia das Letras.)

terça-feira, 16 de julho de 2013

Será longa a noite...

... e as árvores do parque amanhecerão todas roídas. Chamarão o serviço de zoonoses da prefeitura para combater os ratos. Num dos troncos encontrarão cravado um dente grande - justamente o que começará a fazer falta  ao Amor para roer inteiramente sua aflição.

O amor em demasia

Eu quis demais. Tanto amor
Jamais poderia ser
Concebível alguém ter
E nem possível supor.

Quis tanto, e com tanto ardor,
Que não poderia haver
Modo de satisfazer
Tão exaltado fervor.

Eu quis demais, como eu quis!
Ninguém pode ser feliz
Como eu, ingênuo, queria.

Fui tolo, não me arrependo.
O amor eu só o compreendo
Assim, louco e em demasia.

Passagem

Por que é que tu, vida,
Só ficas na ameaça
E adias tua ida,
Se até a uva passa?

Ele

Na missa de corpo presente
quando o padre pronunciou
o nome do morto
ele inadvertidamente
seu estado esqueceu
e disse educadamente
fulano sou eu.

Como naquele dia

Na memória o amor não morre e sorri com aqueles dentes que, como se fossem um teclado, o sol percorria serelepe naquela manhã dezembrina: dó, ré, mi, fá, sol em mim e lá em ti adiante.

O que aconteceu

Não sei se uma a outra compensa,
Se uma a outra contrabalança:
Em ti nasceu a descrença,
Em mim morreu a esperança.

Soneto do amor surdo

Alguém veio em teu socorro,
Alguém te acudiu, naquela
Noite em que abriste a janela
E gritaste à lua: "Eu morro"?

Valeu-te a dedicação
Com que ao amor te entregaste
Se quando tu o chamaste
Ele te respondeu "não"?

Do amor querias cobrar
O que quiseste lhe dar,
Como se fosses agiota.

Saber já bem deverias
Que se no amor tu confias
Só podes ser um idiota.

Fuvest

Erasmo de Roterdã
Ouvia todos os loucos
Mas fazia ouvidos moucos
Aos homens de mente sã.

Kama Sutra - CCXX

Tudo que a veste ou adorna é, para ele e os seus sentidos exaltados, parte do corpo dela. Como se lhe apalpasse a carne, ele passa os dedos na sua blusa xadrez, anda a cavalo pelas casas sem temer o bispo, procura a rainha, e seus ouvidos se excitam com o farfalhar do tecido, e suas narinas aspiram inebriadas o aroma deixado pelos cabelos na gola, enquanto os lábios adivinham o gosto que terão o ouro da correntinha no pescoço e as pérolas dos brincos.

Soneto do nome olvidado

Hei de saber que morri
No dia em que, desnorteado,
Ao visitar o passado,
Não me lembrar mais de ti.

Teu nome, que eu repeti
Naquele tempo dourado,
Na memória procurado
Não estará mais ali.

Será tão grande a tristeza
Que (sei com toda a certeza)
Nesse dia morrerei.

Talvez então, minha amiga,
Lembrar teu nome eu consiga
E dizendo-o partirei.